fronteiras ameaçadas
Marco Aurélio Weissheimer, na Agência Carta Maior
Uma das consequências mais danosas do neoliberalismo é a precarização e supressão de direitos. Quantos direitos foram precarizados ou simplesmente suprimidos nas últimas décadas? Ninguém deve ter feito essa contabilidade, mas o número certamente é impressionante. Um número, aliás, que não para de crescer, uma vez que se trata de um fenômeno que segue se repetindo no presente. A crise econômica que atingiu em cheio a Europa e os Estados Unidos a partir de 2007-2008 é um terreno fértil para a extinção de direitos. A ideologia da austeridade que varre a Europa tem como pilares centrais a demissão de servidores públicos, a diminuição de salários, o corte de direitos sociais e trabalhistas e a repressão a lutas por direitos humanos fundamentais. Direitos estes que foram conquistas de décadas de luta e que tiveram a Europa como um de seus palcos centrais.
Empresas e governos alegam dificuldades econômicas para cortar ou precarizar direitos, invocando a necessidade de sacrifícios de quem vive do mundo do trabalho. E esses sacrifícios estão sendo impostos, aceite-se ou não. Uma das faces mais perversas e dramáticas desse processo pode ser vista hoje na Espanha com o alto número de suicídios de pessoas que estão perdendo suas casas por não poderem pagar financiamentos imobiliários. Neste caso, não se trata apenas de precarização ou perda de direitos, mas da supressão da própria dignidade, uma condição da própria vida. O retrocesso conceitual, do ponto de vista da luta por direitos humanos e sociais, é enorme. Assistimos a uma naturalização do discurso que prega a necessidade da supressão de direitos para resolver determinados problemas econômicos e sociais. Os direitos, segundo esse discurso, tornam-se entraves para a economia e para a sociedade. Teríamos, em vários casos, um “excesso de direitos”, um exagero a ser corrigido. E, de preferência, corrigidos rapidamente.
A supressão de direitos atinge também as relações de consumo. Não é um acaso que planos de saúde, cartões de crédito, operadoras de telefonia e de televisão a cabo liderem os rankings de reclamações de consumidores. A diferença entre o que é prometido na propaganda e o que é oferecido na prática é bem conhecida por parte dos “usuários”. No setor da alimentação, a situação é ainda mais grave, pois envolve a saúde e a vida das pessoas. A quantidade de porcarias que são vendidas sem o mínimo controle ou pudor, com o apoio de uma máquina publicitária que não poupa sequer as crianças, ou, pior ainda, as tem como alvo privilegiado, é uma realidade diária.
O que ameaça a liberdade de expressão
Outro traço dessa realidade de supressão de direitos é a progressiva redução do jornalismo em atividade submissa a interesses privados. A transformação dos meios de comunicação em grandes corporações com tendências monopolistas e interesses econômicos em outras áreas que não exclusivamente a midiática uniformizou as pautas e as orientações editoriais. Apesar do discurso em favor da liberdade de expressão, o que menos se vê nestes veículos é diversidade de informação e de opinião. A aversão que as grandes empresas brasileiras de mídia têm ao debate sobre um novo marco regulatório para o setor é um exemplo do espírito reacionário e atrasado que as anima.
Esse cenário implica outra violação de direito, a saber, a supressão do direito a uma comunicação de qualidade e a serviço do interesse público. O fato de boa parte das notícias e suas respectivas abordagens serem praticamente as mesmas todos os dias deveria nos dizer algo a respeito do que significa liberdade de expressão e diversidade de opinião. Se você fica restrito ao circuito da grande mídia comercial jamais ficará sabendo, por exemplo, que está em curso nos Estados Unidos uma mobilização nacional pela retomada o compromisso com a ideia de que direitos trabalhistas são direitos humanos. Quem quiser informações sobre esse movimento pode encontrá-las neste #]artigo de John Nichols, no The Nation. Encontrará aí também a íntegra do premiado documentário We Are Wisconsin, que mostra a mobilização de estudantes, professores, profissionais da saúde e de outros setores, em 2010, contra a política de demissões e cortes de direitos de servidores públicos levada a cabo pelo governador Republicano, Scott Walker.
Violada a verdade, tudo é permitido
O que se viu nos Estados Unidos, a partir do estouro da bolha imobiliária de 2007-2008, e também na Europa, serve para mostrar que, assim como o sistema de direitos forma uma unidade (fruto de décadas de lutas sociais), o processo de supressão e precarização de direitos também compõe uma unidade. Ou seja, a violação de um determinado tipo de direito nunca é isolada, ela se propaga também para outros direitos. O jornalista Bernardo Kucinski disse certa vez que a primeira vítima do neoliberalismo é a verdade. Violada a verdade, tudo é permitido. Há indícios preocupantes de que se espalha hoje pelo mundo uma onda de violação de direitos em cascata: direitos humanos, sociais, trabalhistas, ambientais e culturais. Esse tema, por si só, já é suficiente para compor uma agenda e desmentir aqueles que repetem ladainhas sobre o suposto fim da distinção entre esquerda e direito, ou entre o capital e o trabalho. Essas distinções sofreram mudanças qualitativas, mas estão aí para quem quiser ver.
O Brasil e a maioria dos países da América Latina viveram nos últimos anos um processo de retomada ou mesmo de instauração de direitos até então inexistentes, graças a uma geração de governos com um DNA distinto daquele que governou a região nas décadas anteriores. Neste sentido, caminharam no sentido inverso daquele visto na Europa e nos Estados Unidos. Mas é justamente o que sê vê agora nestes países que serve de advertência eloquente a respeito dos riscos de retrocesso. A melhor maneira de alimentar esses riscos é achar que estamos livres deles, em um mundo paralelo. Os cidadãos espanhóis que decidiram por um fim à própria vida, num gesto de desesperança total, simbolizam mais que tragédias pessoais. O pano de fundo desse gesto de desespero é um mundo onde o direito à vida é subordinado ao direito de propriedade.
Há fenômenos que, tomados isoladamente, podem ter um significado circunscrito à sua própria ocorrência, mas que, vistos num contexto mais amplo, podem ser indicadores de movimentos ainda subterrâneos na sociedade. A crise na revista Caros Amigos, com greve na redação e demissão dos jornalistas grevistas, a escolha do pastor Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias na Câmara Federal, e a do ruralista Blairo Maggi para a Comissão de Meio Ambiente da mesma Câmara indicam um contexto político de grave relativização e banalização de valores e princípios que não deveriam ser relativizados e muito menos banalizados. E esses são apenas três eventos recentes. Há vários outros como, por exemplo, as ameaças a comunidades indígenas e urbanas que têm suas vidas viradas ao avesso e ameaçadas por grandes obras.
Mesmo considerando as exigências de uma certa dose de pragmatismo na política, há linhas que não deveriam ser ultrapassadas. Ao ultrapassá-las, em nome de razões pragmáticas ou de um simples desprezo pela sua importância, estamos entrando num território estranho e perigoso. E esse território, definitivamente, não é o mundo dos direitos e do Direito.
Empresas e governos alegam dificuldades econômicas para cortar ou precarizar direitos, invocando a necessidade de sacrifícios de quem vive do mundo do trabalho. E esses sacrifícios estão sendo impostos, aceite-se ou não. Uma das faces mais perversas e dramáticas desse processo pode ser vista hoje na Espanha com o alto número de suicídios de pessoas que estão perdendo suas casas por não poderem pagar financiamentos imobiliários. Neste caso, não se trata apenas de precarização ou perda de direitos, mas da supressão da própria dignidade, uma condição da própria vida. O retrocesso conceitual, do ponto de vista da luta por direitos humanos e sociais, é enorme. Assistimos a uma naturalização do discurso que prega a necessidade da supressão de direitos para resolver determinados problemas econômicos e sociais. Os direitos, segundo esse discurso, tornam-se entraves para a economia e para a sociedade. Teríamos, em vários casos, um “excesso de direitos”, um exagero a ser corrigido. E, de preferência, corrigidos rapidamente.
A supressão de direitos atinge também as relações de consumo. Não é um acaso que planos de saúde, cartões de crédito, operadoras de telefonia e de televisão a cabo liderem os rankings de reclamações de consumidores. A diferença entre o que é prometido na propaganda e o que é oferecido na prática é bem conhecida por parte dos “usuários”. No setor da alimentação, a situação é ainda mais grave, pois envolve a saúde e a vida das pessoas. A quantidade de porcarias que são vendidas sem o mínimo controle ou pudor, com o apoio de uma máquina publicitária que não poupa sequer as crianças, ou, pior ainda, as tem como alvo privilegiado, é uma realidade diária.
O que ameaça a liberdade de expressão
Outro traço dessa realidade de supressão de direitos é a progressiva redução do jornalismo em atividade submissa a interesses privados. A transformação dos meios de comunicação em grandes corporações com tendências monopolistas e interesses econômicos em outras áreas que não exclusivamente a midiática uniformizou as pautas e as orientações editoriais. Apesar do discurso em favor da liberdade de expressão, o que menos se vê nestes veículos é diversidade de informação e de opinião. A aversão que as grandes empresas brasileiras de mídia têm ao debate sobre um novo marco regulatório para o setor é um exemplo do espírito reacionário e atrasado que as anima.
Esse cenário implica outra violação de direito, a saber, a supressão do direito a uma comunicação de qualidade e a serviço do interesse público. O fato de boa parte das notícias e suas respectivas abordagens serem praticamente as mesmas todos os dias deveria nos dizer algo a respeito do que significa liberdade de expressão e diversidade de opinião. Se você fica restrito ao circuito da grande mídia comercial jamais ficará sabendo, por exemplo, que está em curso nos Estados Unidos uma mobilização nacional pela retomada o compromisso com a ideia de que direitos trabalhistas são direitos humanos. Quem quiser informações sobre esse movimento pode encontrá-las neste #]artigo de John Nichols, no The Nation. Encontrará aí também a íntegra do premiado documentário We Are Wisconsin, que mostra a mobilização de estudantes, professores, profissionais da saúde e de outros setores, em 2010, contra a política de demissões e cortes de direitos de servidores públicos levada a cabo pelo governador Republicano, Scott Walker.
Violada a verdade, tudo é permitido
O que se viu nos Estados Unidos, a partir do estouro da bolha imobiliária de 2007-2008, e também na Europa, serve para mostrar que, assim como o sistema de direitos forma uma unidade (fruto de décadas de lutas sociais), o processo de supressão e precarização de direitos também compõe uma unidade. Ou seja, a violação de um determinado tipo de direito nunca é isolada, ela se propaga também para outros direitos. O jornalista Bernardo Kucinski disse certa vez que a primeira vítima do neoliberalismo é a verdade. Violada a verdade, tudo é permitido. Há indícios preocupantes de que se espalha hoje pelo mundo uma onda de violação de direitos em cascata: direitos humanos, sociais, trabalhistas, ambientais e culturais. Esse tema, por si só, já é suficiente para compor uma agenda e desmentir aqueles que repetem ladainhas sobre o suposto fim da distinção entre esquerda e direito, ou entre o capital e o trabalho. Essas distinções sofreram mudanças qualitativas, mas estão aí para quem quiser ver.
O Brasil e a maioria dos países da América Latina viveram nos últimos anos um processo de retomada ou mesmo de instauração de direitos até então inexistentes, graças a uma geração de governos com um DNA distinto daquele que governou a região nas décadas anteriores. Neste sentido, caminharam no sentido inverso daquele visto na Europa e nos Estados Unidos. Mas é justamente o que sê vê agora nestes países que serve de advertência eloquente a respeito dos riscos de retrocesso. A melhor maneira de alimentar esses riscos é achar que estamos livres deles, em um mundo paralelo. Os cidadãos espanhóis que decidiram por um fim à própria vida, num gesto de desesperança total, simbolizam mais que tragédias pessoais. O pano de fundo desse gesto de desespero é um mundo onde o direito à vida é subordinado ao direito de propriedade.
Há fenômenos que, tomados isoladamente, podem ter um significado circunscrito à sua própria ocorrência, mas que, vistos num contexto mais amplo, podem ser indicadores de movimentos ainda subterrâneos na sociedade. A crise na revista Caros Amigos, com greve na redação e demissão dos jornalistas grevistas, a escolha do pastor Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias na Câmara Federal, e a do ruralista Blairo Maggi para a Comissão de Meio Ambiente da mesma Câmara indicam um contexto político de grave relativização e banalização de valores e princípios que não deveriam ser relativizados e muito menos banalizados. E esses são apenas três eventos recentes. Há vários outros como, por exemplo, as ameaças a comunidades indígenas e urbanas que têm suas vidas viradas ao avesso e ameaçadas por grandes obras.
Mesmo considerando as exigências de uma certa dose de pragmatismo na política, há linhas que não deveriam ser ultrapassadas. Ao ultrapassá-las, em nome de razões pragmáticas ou de um simples desprezo pela sua importância, estamos entrando num território estranho e perigoso. E esse território, definitivamente, não é o mundo dos direitos e do Direito.
Marco Aurélio Weissheimer é editor-chefe da Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)
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