Dalmo de Abreu Dallari, no Observatório da Imprensa
Uma das exigências fundamentais do Estado democrático é a publicidade dos atos do governo e da administração pública, entendidas essas expressões no seu sentido mais amplo, o que significa que nenhum setor, nenhum órgão, nenhuma entidade integrante da organização político-administrativa do Estado – ou que atua em seu nome ou por sua delegação – poderá ocultar os atos e sua fundamentação. Obviamente, o Poder Judiciário, que é um dos setores da organização estatal, também está incluído nessa exigência de publicidade. Mas o cumprimento dessa exigência pressupõe, sempre, responsabilidade e bom senso, para que não sejam produzidos efeitos negativos, opostos aos benefícios pressupostos na publicidade.
O conflito que está agora ocorrendo no Brasil, opondo, de um lado, o ministro Joaquim Barbosa e, de outro, jornalistas, é consequência de desvios no relacionamento entre ambos, com a quebra do equilíbrio e do respeito recíproco, por ambas as partes, podendo-se acrescentar que de um lado e de outro faltou bom senso, resultando desastroso o relacionamento.
Uma rápida rememoração dos principais acontecimentos que levaram às agressões recíprocas, desrespeitosas do interesse público, deixa evidente que houve erro e culpa de ambos, o ministro e a imprensa. Com efeito, os desvios de comportamento tiveram início durante o julgamento do processo que a imprensa, já com inegável desvio dos cânones da boa imprensa, que deve ser imparcial e objetiva, apelidou de “mensalão”.
Os que realmente comandam a grande imprensa acreditaram que no processo gerado por acusações a políticos ligados ao ex-presidente Lula este acabaria sendo formalmente acusado e convertido em réu. Esta é uma obsessão que tem grande parte na origem do atual conflito. Foi assim que a imprensa passou a tratar como um justiceiro o então deputado Roberto Jefferson, mesmo depois que este confessou publicamente ser agente e beneficiário de corrupção no setor público.
Intimidade devassada
Foi a partir daí que o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo no Supremo Tribunal Federal, ganhou a primeira página dos jornais e foi perdendo o equilíbrio emocional, deslumbrando-se com a grande publicidade em torno de seu nome, dirigindo-se de modo agressivo aos colegas do Tribunal e feliz porque a imprensa o apresentava como guerreiro da moralidade pública.
E os jornalistas encarregados da cobertura dessa matéria estimularam a agressividade do ministro, ao mesmo tempo em que, com seu consentimento, penetravam na sua intimidade, parecendo-me que chegou a influir no encaminhamento do processo. Com efeito, houve um momento em que um grande jornal, exatamente aquele em que trabalha o jornalista agora agredido pelas palavras rudes do ministro, publicou com antecipação o que o ministro iria dizer na sessão de julgamento, informando, com precisão, as palavras que iriam constar da argumentação do relator.
Como é evidente, ambos, o ministro e o jornalista, afrontaram as regras éticas e jurídicas do relacionamento correto do Judiciário com a imprensa. Como era inevitável, o jornalista teve acesso à intimidade do gabinete do ministro e, obviamente, ganhou prestígio junto à direção do órgão em que trabalha e junto aos colegas. Foi nesse quadro que surgiram na imprensa algumas referências a aspectos particulares da vida do ministro. Este, surpreendido e sentindo-se traído, agrediu verbalmente o jornalista que considerou responsável pela divulgação das informações, dirigindo-se a ele em público com palavras grosseiras, o que acabou gerando uma nota da assessoria do ministro à imprensa, pedindo desculpas pelo destempero de linguagem e procurando justificá-lo pela alegação de dor e cansaço do ministro em decorrência de sua notória enfermidade.
Como conclusão, pode-se dizer que houve erro de ambas as partes. O ministro deu excessiva intimidade à imprensa, permitindo que jornalistas tivessem conhecimento antecipado de seu pronunciamento no processo em julgamento. Não há dúvida de que a publicação de informações, verdadeiras ou falsas, sobre a vida particular do ministro ofendeu o seu direito à intimidade, mas sua reação foi inadequada, o que ele próprio reconheceu quando mandou que seu gabinete publicasse um pedido de desculpas.
Os jornalistas, por sua vez, cometeram excesso quando penetraram na intimidade do ministro obtendo acesso ao relatório e ao voto que este iria apresentar na sessão do Tribunal. E tendo obtido essa intimidade e podendo mostrar isso aos seus superiores e colegas, exageraram na exploração da fraqueza do ministro e quiseram mostrar que era tão íntimos que conheciam aspectos particulares da vida do ministro.
Intesses e caprichos
Evidentemente, houve imprudência e destempero de parte do ministro, que tem o dever de dar publicidade aos seus atos de ofício e seus fundamentos, para conhecimento público, como exige o Estado Democrático. Mas também houve exagero de parte do jornalista, que se valeu do deslumbramento do ministro para ir muito além da busca de informações sobre os atos ministeriais, obtendo indevidamente o acesso a eles e dando-lhes publicidade e depois ofendendo o direito do ministro ao resguardo de sua intimidade.
Ambos, ministro e imprensa, desvirtuaram os princípios da publicidade necessária dos atos de autoridade e da transmissão de informações completas e precisas ao público, com objetividade e serenidade, ambos respeitando os limites éticos e jurídicos.
Os fatos aqui referidos merecem uma séria reflexão de parte das autoridades públicas e dos que militam na imprensa, para que procurem desempenhar suas atribuições com prudência e equilíbrio, mantendo fidelidade ao dever fundamental, que é comum a ambos, de respeitar os princípios e as normas da boa convivência, deixando em plano secundário seus caprichos e interesses particulares e dando primazia ao interesse público.
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Dalmo de Abreu Dallari é jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
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