Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa
A edição de sexta-feira (22/3) do Globo uma reportagem que poderia estimular na imprensa tradicional o debate sobre o modelo de desenvolvimento que o Brasil persegue há pelo menos dez anos – e que anima grupos de discussão nas redes sociais digitais.
Se assumirmos que parte importante da estrutura da nossa economia foi construída a partir de 1994, podemos considerar a permanência desse modelo por quase duas décadas, o que representa a definição do que vai ser o país por praticamente a metade do século. Trata-se, portanto, de um tema que merece estar presente na imprensa e nas preocupações diárias da sociedade.
A reportagem do Globo tem como título uma pergunta – “Consumo, renda e mais o quê?” – e anuncia suas intenções com uma linha complementar: “‘Nova classe média’tem trabalho precário, pouca instrução e moradia inadequada”. Com tal enunciado, o jornal carioca introduz na agenda uma discussão sobre a opção, inaugurada por Lula da Silva, de fazer o país crescer por meio da criação de uma nova classe de renda, promovendo a emergência em massa de famílias que viviam historicamente na linha da pobreza ou abaixo dela.
O trabalho jornalístico tem como base estudos de sociólogos sobre amostras dessas famílias, nos quais se demonstra que, embora com renda mais alta e acesso a bens de consumo e mais bem-estar, esses brasileiros ainda carregam estigmas dos tempos de penúria. Algumas das constatações se referem a carências em aspectos que representariam estabilidade e consolidação do novo status social: educação, acesso aos serviços de saúde (que os entrevistados interpretam como direito a planos de assistência médica privados) e saneamento básico.
O núcleo da questão exposta pela reportagem nasce de um equívoco muito comum na imprensa, mas que no caso ajuda a colocar em debate o ponto essencial que deveria mover as críticas costumeiras da imprensa ao atual governo e ao seu antecessor. Trata-se da controvérsia que se cria naturalmente quando se vai analisar o desenvolvimento a partir dos paradigmas econômicos ou da sociologia.
Esse ponto de partida coloca sobre a mesa uma diferença de diagnósticos: os economistas constatam o fenômeno da mobilidade social pelo surgimento de uma nova classe de renda média, enquanto os sociólogos tentam identificar uma nova classe social média.
O consumo educa?
As duas visões são aparentemente inconciliáveis, e se o jornal escolhe o olhar dos sociólogos, vai certamente expor as deficiências do modelo econômico, pois, mesmo que a estratégia de injetar renda nas famílias pobres tenha dado resultados consistentes, produzindo um novo padrão de sociedade, deve-se questionar a sustentabilidade desse modelo no longo prazo.
A reportagem do Globo se inicia, portanto, reconhecendo: “As estatísticas não deixam dúvidas. Com o ganho de renda dos trabalhadores nos últimos anos, o Brasil é um país de classe média”. Prossegue dizendo que economistas calculam que 55% da população podem ser considerados assim. E introduz a questão central: “Mas que classe média é essa?”
O jornal convoca o economista Marcelo Neri, atual presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que criou o conceito de “nova classe média” quando atuava na Fundação Getúlio Vargas, e ele explica pela milésima vez que sempre se referiu a uma nova classe de renda média, não ao conceito de classe média adotado por outras ciências humanas.
Mas o esclarecimento dessa questão epistemológica não extingue o debate. Pelo contrário: estimula a participação de outros especialistas e abre uma oportunidade para a imprensa fazer suas observações críticas ao governo – ao governo atual e a todas as instâncias de poder – a partir de uma agenda mais sofisticada, e não à base de picuinhas partidárias, como acontece há dez anos.
Um dos temas a serem abordados é a longevidade de um estado de bem-estar centrado no consumo. A demonização do consumo faz muitos analistas omitirem o fato de que a aquisição de bens, principalmente de tecnologia avançada, produz um efeito positivo na educação. É preciso observar como o acesso a bens e serviços ajuda a educar essa nova classe de renda para a cidadania, e essa visão não vem de economistas ou sociólogos, mas de pesquisadores em comunicação.
Outra questão é a conscientização dessa nova classe de renda para o futuro: como preservar o atual estado de bem-estar e ao mesmo tempo assegurar esse mesmo benefício às gerações futuras. A reportagem do Globo (parte do conteúdo pode ser lido na edição digital) não avança a esse ponto, nem poderia, mas abre um bom precedente ao abrigar um debate, ainda que parcial em todos os sentidos, sobre as chances de o Brasil consolidar o crescimento e ingressar num período de desenvolvimento sustentável por longo prazo.
Sempre há uma esperança de que a imprensa venha um dia a enxergar o país, e não apenas siglas partidárias.
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