Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa
“Depois de 32 ônibus municipais serem incendiados apenas neste mês, o secretário da Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, disse que não descarta a participação do crime organizado nas ações.”
Assim começa o texto que acompanha a fotografia de um ônibus incendiado, no alto da primeira página da edição de quinta-feira (30/1) do jornal O Estado de S. Paulo. Trata-se de um primor do reboleio verbal, que a imprensa paulista costuma usar quando tenta minimizar efeitos negativos de uma notícia.
Ora, dizer que a autoridade começa a desconfiar que eventualmente pode haver uma suposta organização por trás dos ataques aos ônibus é chamar o leitor de burro. Uma rotina de ônibus atacados, sempre com a mesma tática de promover distúrbios para desviar a atenção da polícia, precisa ter uma organização por trás. Se o resultado é um crime, trata-se de uma associação criminosa. Simples assim.
Mas os jornais estão viciados em uma semântica seletiva ao descrever certos eventos, agasalhando expressões que rodeiam o centro do fato, porque a realidade é politicamente indigesta: o governo de São Paulo não sabe lidar com essas questões.
O secretário ainda não entende se é ação de crime organizado, ou “se são movimentos sociais”. Os repórteres também não se interessaram em questionar o que poderia definir essa diferença, nem parecem desconfiar de que o crime organizado pode muito bem estar por trás de mobilizações coletivas.
Por obrigação profissional, os jornalistas devem sempre estar mais próximos da malícia do que da candura. Portanto, precisam desconfiar quando autoridades se valem de platitudes para prestar contas à sociedade de problemas que não conseguem controlar.
Observe-se que não foram “32 ataques a ônibus em menos de 30 dias” como diz a Folha de S. Paulo, número escolhido também pelo outro jornal paulista de circulação nacional. Segundo O Globo, 98 ônibus foram atacados e 32 foram incendiados nesse período, ou seja, o cidadão que mora na periferia de São Paulo vive um cotidiano de riscos e insegurança que o leitor típico dos jornais nem consegue imaginar.
Por alguma razão que o leitor atento pode conjecturar, a imprensa paulista agasalha a explicação que nada explica e reduz o impacto das informações, relativizando a gravidade dos acontecimentos.
Os serviços de “inteligência”
Um texto analítico publicado pelo Estado de S. Paulo associa os incêndios a ônibus com uma resposta de cidadãos ao não atendimento de demandas da população. Os registros da Secretaria da Segurança contabilizam uma variedade de causas imediatas dessas explosões de revolta, entre as quais a ação de integrantes do grupo criminoso conhecido como Primeiro Comando da Capital, o descontentamento de usuários do transporte coletivo, inundações, mobilizações de adolescentes insuflados por criminosos ou protestos contra assassinatos cometidos pela polícia.
O secretário Grella Vieira anuncia mais operações preventivas, o que significa maior presença da polícia nos pontos terminais onde acontecem os ataques, e repete pela milésima vez a expressão que encanta jornalistas: vai usar o “serviço de inteligência”. Os jornais não parecem desconfiar que, em uma década inteira de crises intermitentes, já era tempo de as autoridades terem demonstrado a utilidade de sua “inteligência”.
Não se pode descartar o fato de que, nos extremos da região metropolitana, há muitas razões para descontentamento, e as deficiências do sistema de transporte público são o eixo dessas carências, conforme ficou claro nas manifestações de junho do ano passado. Mas não é difícil concluir que a depredação de ônibus beneficia diretamente as organizações criminosas que constroem seu poder onde o Estado se omite; portanto, queimar ônibus é uma estratégia que interessa ao crime organizado para manter isolados seus domínios.
Seja de iniciativa de associações criminosas, seja resultado do ativismo de adolescentes frustrados em seus desejos de protagonismo, seja o caso de protestos legítimos contra a má qualidade do transporte, é dever da imprensa cobrar ações das autoridades, e não aceitar ainda mais especulações como resposta.
A mídia jornalística tradicional tem faro e espírito investigativo para rastrear o cardápio da comitiva presidencial em viagem oficial ao exterior, mas aceita platitudes de outras instâncias da política quando se trata de uma grave crise social na maior cidade do país.
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