A reviravolta nas relações entre
Brasil e Estados Unidos
Antônio Lassance, na Agência Carta Maior
Por trás da escolha “técnica” dos caças para a Força Aérea Brasileira (FAB), houve e ainda há muito mais política do que se imagina. Houve não só a intenção de passar um recado aos Estados Unidos, mas uma mudança de rota nas relações com aquele país. Houve também, pela enésima vez, uma disputa entre diplomatas e militares em torno de questões estratégicas e de defesa nacional.
A decisão sobre os novos caças, que terminou com a escolha do modelo sueco Gripen, representou um desvio de rota da política externa trilhada pela presidenta Dilma, no aspecto das relações entre Brasil e Estados Unidos. Foi também um “round” ganho pelos militares na disputa permanente que travam contra outra forte corporação do Estado brasileiro: os diplomatas. Militares e diplomatas se digladiam pelo controle da orientação do Ministério da Defesa, praticamente, desde a sua criação.
Resumindo para os que não têm detalhes sobre o assunto dos caças (os que já sabem de cor podem pular os próximos dois parágrafos), a batalha dos caças foi travada entre três concorrentes: o Gripen NG, da empresa sueca Saab (a mesma que, no Brasil, fabrica os caminhões Scania); o americano F-18 Super Hornet, da Boeing; e o francês Rafale, da Dassault.
A guerra dos caças foi uma derrota importante para os interesses comerciais americanos, mas significa algo além. É mais um revés na política de aproximação que Dilma vinha buscando desde o início de seu governo, interrompida por conta das revelações escabrosas feitas por Edward Snowden, um agente terceirizado de uma empresa que prestava serviços para a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA).
A mudança nas relações Brasil-Estados Unidos partia de um entendimento compartilhado entre Dilma e Lula. Ao contrário do que se possa imaginar, não houve desavença sobre essa nova diretriz. Dilma e Lula concordavam que era importante reforçar a administração Barack Obama. Por dois motivos: consideravam que Obama poderia consolidar uma política externa mais multilateral e menos militarizada do que a dos republicanos.
Havia também a expectativa de reconhecimento, pelos americanos, do novo papel internacional desempenhado pelo Brasil, tendo em vista uma avalanche de fatos objetivos que demonstravam categoricamente que o país havia mudado de patamar.
O Brasil fora protagonista na criação do G-20; tornou-se um parceiro econômico prioritário da China; foi fundamental na retomada das negociações da Rodada Doha; havia atraído a África do Sul para os BRICS; e vinha sendo fundamental para apaziguar os ânimos cada vez mais acirrados na América Latina, que estava em plena ebulição com Chávez, Evo Morales e o peronismo kirchenista.
As antigas reuniões dos EUA com o G-8, a partir de Obama, perderam importância em relação à participação no G-20. Obama, em discursos, tratava o Brasil, ao lado da China, como um dos países onde a classe média se expandia mais rapidamente, contribuindo para dissipar a crise instalada desde 2008. Sem contar o elogio direto a Lula, “o cara”. Os sinais de simpatia estavam dados, e a alternância na presidência brasileira tornava propícia uma igual mudança de tom na política externa, sem abdicar do terreno já alcançado em torno dos BRICS, do G-20 e do Mercosul.
A nova política externa a ser encampada por Dilma, fazendo um contraponto combinado com a de Lula, facilitaria uma aproximação que poderia redundar no patrocínio explícito dos Estados Unidos ao velho sonho brasileiro por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, uma prioridade que o Itamaraty conseguiu inculcar na diplomacia presidencial de Lula.
A escolha de Antonio Patriota como chanceler já havia sido uma clara sinalização do interesse nessa aproximação maior entre Brasil e Estados Unidos. Patriota era até casado com uma americana, o que tornava o convite ao enlace ainda mais ostensivo. A doce ilusão caiu como um castelo de cartas diante das revelações de Snowden. Com o azedamento das relações com os EUA, o prestígio de Patriota também foi por água abaixo; sua figura deixou de fazer sentido. Junto com Patriota, o caça da Boeing, o Hornet, também acabou sendo abatido em meio a essa reviravolta.
A escolha do Rafale só não ocorreu, ainda durante o governo Lula, porque o assunto foi mal conduzido na época em que o Ministério da Defesa era comandado por Nelson Jobim e porque os franceses, em momento algum, se mexeram para rever seus preços. Acabaram perdendo o “timing” da decisão no governo Lula.
Jobim falhou indecorosamente no que é chamado de apoio à decisão. A comissão da FAB (Comissão Coordenadora do Programa Aeronave de Combate), montada para analisar o assunto, deveria apresentar prós e contras de cada modelo, para subsidiar a decisão a ser levada pelo ministro ao presidente. Seria até compreensível se a comissão excluísse algum concorrente, caso fosse julgado inadequado. O governo considerava que os três jatos, sendo, como são, de primeira linha, permitiriam que qualquer decisão fosse considerada tecnicamente defensável. Superada a avaliação técnica, restaria uma decisão que deveria ser política e estratégica do ministério e da Presidência, e não da FAB.
Extrapolando suas prerrogativas, a comissão se comportou como uma espécie de comissão de licitação que analisou propostas e apontou uma decisão preferencial.
O fato de o Rafale ter ficado em terceiro lugar foi apresentado quase como uma desclassificação. A comissão, inteligentemente, ao invés de recomendar opções, amarrou e vazou para a imprensa uma conclusão: tudo, menos o Rafale. A velha mídia adorou saborear em manchetes o tropeço imposto por Jobim a Lula.
Os militares conseguiram derrotar a opção do Rafale, que não havia sido articulada por eles, de maneira astuta. Sabiam que contrariar a decisão do presidente em favor de uma opção pró-americana seria politicamente inviável. De quebra, se optassem pela Boeing, pesariam fortes suspeitas sobre que tipo de critérios e relações teriam levado os militares a uma opção mais cara, sem transferência de tecnologia e sem tradição na Força Aérea. O Rafale, pelo menos, vinha da mesma família dos Mirage (a Dassault) que até então equipavam a FAB.
A decisão de Dilma em torno do Gripen acabou sendo a melhor possível, consideradas as circunstâncias. O Gripen seria tido como uma decisão “técnica”, o que reforçaria uma das imagens que a presidenta gosta de sustentar. Impôs uma derrota aos americanos, que pagaram um preço caro pela prática da espionagem praticada contra a própria Dilma. Agradou os militares, que se consideravam pouco prestigiados até então. Foi a opção mais barata, o que também ajudava em um momento em que gastos exorbitantes em áreas supostamente não prioritárias são consideradas quase um crime de lesa-pátria (por mais paradoxal que investir em defesa possa ser considerado lesa-pátria).
É igualmente óbvio que, se Dilma optasse pelo Rafale, se diria ter sido uma decisão do Lula, e não dela. Para evitar ruídos com o ex-presidente, foi providencial o lobby do prefeito e do movimento sindical de São Bernardo do Campo, ativo em defesa dos suecos. A turma de São Bernardo conseguiu emplacar, em torno do Gripen, o compromisso de implantação, por lá, de uma fábrica para a produção de vários dos componentes do futuro caça.
De todo modo, a opção pelos suecos acabou sendo a menos pior para os americanos. O Rafale seria uma derrota maior. O Gripen, a começar por seu motor (que é da General Eletric), tem vários de seus componentes fabricados nos Estados Unidos. O sistema de radar é da Selex-Galileo, subsidiária americana da ítalo-britânica Selex ES, que fornece armamentos tanto para as Forças Armadas dos Estados Unidos quanto para a guarda costeira daquele país.
De todo modo, desde que a presidenta cancelou a viagem com honras de chefe de Estado que faria aos Estados Unidos, em outubro de 2013, e até a escolha do Gripen, a quantidade de recados enviada a Obama foi mais do que suficiente para bom entendedor. Obama falou muito sobre o assunto da espionagem, mas fez pouco. O Brasil, junto com a Alemanha, rascunhou a resolução aprovada na ONU contra a espionagem desenfreada. Obama sequer conseguiu rever suas normas internas. Segue preocupado com outras prioridades. Resta a ele torcer para que, em 2014, seja eleito para a Presidência da República alguém A que lhe preste bons serviços, por aqui, contentando-se em saber que o Brasil não figura como uma das prioridades de sua política externa. Candidatos para isso não faltam.
(*) Antônio Lassance é Doutor em Ciências Políticas
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