A renúncia do Papa tem um significado político
Henrique Carneiro (*)
A renúncia do Papa é apresentada como uma decisão pessoal, devido à idade.
Evidentemente, é preciso buscar as razões de fundo para um gesto inédito nos
anais recentes da Igreja e que enfraquece ainda mais a sua
credibilidade.
Os pontificados ficam historicamente identificados com
alguns dos fatos ou decisões mais importantes que marcaram esses períodos. O
Papa Pio XII, contemporâneo do nazismo e aliado de Hitler na sua ascensão ao
poder, ficou indelevelmente marcado por essa aliança.
Mas no passado o
que resta na memória popular de Papas como Rodrigo Borgia, ou Alexandre VI,
senão a reputação de cruel e devasso, que nomeou o próprio filho Cesare Borgia,
além de muitos outros parentes, como cardeais? De Júlio III, a nomeação como
cardeal-sobrinho do amante de 17 anos, Innocenzo.
De Joseph Ratzinger, o
Bento XVI, o elemento mais marcante do seu pontificado, antes da renúncia,
parecia que iria ser a denúncia pública da pedofilia no clero. Poderá essa
renúncia tirar o foco desse problema e a sua sucessão lançar uma cortina de
fumaça que oculte a série de escândalos?
Trago nestes breves comentários,
de alguém que não é um vaticanólogo, apenas algumas evidências disponíveis para
qualquer leitor de jornais de que essa renúncia não é um raio em céu claro. Que
evidências são essas?
Uma crise já antiga de perda de influência
As de que o Vaticano viveu no pontificado de Bento XVI uma crise já
antiga de perda de influência social e política, agravada pela perda da
credibilidade moral com os escândalos de pedofilia.
Mas ao se tratar
dessa instituição, não se deve esquecer que ela é, do ponto de vista financeiro,
uma das maiores multinacionais do planeta, com investimentos em bancos,
corporações, reservas de ouro, etc. (MANHATTAN, 1983 mostrou a dimensão dessa
fortuna).
No ano passado, a Igreja Católica viveu outra crise com as
revelações de corrupção e negociatas feitas a partir dos documentos revelados
pelo mordomo do Papa, no que ficou conhecido como Vatileaks. Dessa vez, a culpa
não era do mordomo, que foi preso, processado, condenado e depois
perdoado.
O Banco do Vaticano (o "banco mais secreto do mundo" como diz a
revista ‘Forbes’ (JORISH, 2012) é o IOR (Instituto das Obras da Religião),
fundado em 1942. Nesse período, o Vaticano vinha de uma colaboração com o regime
nazi, por parte de Pio XII, mas, ainda antes disso, de uma colaboração mais
estreita com Mussolini, que concedeu ao Vaticano em 1929 a assinatura do Tratado
de Latrão com o estado italiano.
Esse tratado, também conhecido como
Concordata, foi o que permitiu o reconhecimento do Vaticano como um Estado
dentro de outro Estado, incluindo a gestão das próprias finanças e a manutenção
da influência política sobre a Itália que ficava com o catolicismo como religião
oficial, o ensino confessional nas escolas públicas e outras vantagens ao clero.
Só em 1978 houve uma alteração que tornou a Itália uma República laica e o
divórcio foi aprovado.
Rompendo o isolamento em que o Vaticano havia
ficado desde a vitória da república italiana em 1870, Mussolini concedeu também
vultosas indenizações à Igreja. Parte desse dinheiro foi aplicado em Londres em
aquisições imobiliárias que hoje alcançam o valor de cerca de meio milhar de
milhões de libras esterlinas, embora o valor real permaneça secreto, apesar das
denúncias recentes do jornal ‘The Guardian’ (LEIGH; TANDA; BENHAMOU,
2013).
Os interesses econômicos do Vaticano também são afetados pela
crise global, o que levou inclusive que em 2012 ocorresse o maior déficit fiscal
em muitos anos no Vaticano, de cerca de 19 milhões de dólares (VATICAN, 2013).
Nessa crise também incide o custo financeiro com os processos por
pedofilia.
Os escândalos de pedofilia: custo moral e
econômico
Os escândalos de pedofilia, além do custo moral, têm um preço
econômico com os processos e indemnizações que, só nos EUA, chegaram a três
bilhões de dólares em mais de três mil processos abertos, com 3.700 clérigos
denunciados, 525 presos, a maioria dos quais condenados e cumprindo
penas.
Desde os anos de 1950 até hoje cerca de seis mil sacerdotes já
foram denunciados nos Estados Unidos por abusos sexuais contra crianças, o que
equivale a 5,6% do total do clero dos EUA (SCHAFFER, 2012). Figuras de proa da
Igreja, como o líder dos Legionários de Cristo, no México, Marcial Maciel, foram
denunciados por pedofilia e outros abusos.
Bento XVI protegeu setores
diretamente nazis do clero, como o bispo Richard Williamson, negacionista do
Holocausto que havia sido excomungado por João Paulo II, e cuja excomunhão foi
revogada por Bento XVI em 2009.
Apesar disso e de ter atendido aos
interesses de setores ultraconservadores da Opus Dei e do Caminho
Neocatecumenal, cerrando fileiras com partidos como o PP na Espanha para impor
os planos de austeridade e flertando com a extrema-direita europeia, Bento XVI
teria desagradado a esses setores ao tentar reconhecer parte dos escândalos de
pedofilia para buscar limpar a reputação da Igreja. Isso levou um colunista de
‘El País’ a avaliar que a renúncia foi resultado da pressão desses setores
ultrafundamentalistas (MORA, 2013).
Seja por causa das acusações de
corrupção ou de pedofilia, a renúncia acrescenta uma nota ainda mais decadente a
um Papa que dedicou o seu pontificado a um apostolado de intolerância e
repressão contra homossexuais, mulheres, muçulmanos e movimentos sociais. Num
momento de crescimento da extrema direita católica na sua faceta mais fascista,
como o caso do terrorista católico norueguês Breivik, o Papado de Ratzinger foi
um ponto de apoio para a homofobia, o racismo, o sexismo, a intolerância e a
perda de direitos sociais dos trabalhadores.
"Mudar para tudo
continuar igual"
É provável que se jogue com a carta de ‘Il Gattopardo’,
de Lampedusa, "mudar para tudo continuar igual", mas para isso, os recursos da
inteligência publicitária da Igreja podem contar com novidades, como o primeiro
papa não europeu da história, o que não deixará de manifestar mais uma vez um
dos sintomas maiores da crise global do catolicismo, a sua condição
essencialmente branca e ocidental.
Um papa negro ou latino-americano não
conseguirá alterar esse fato: a Ásia e a África permanecem imunes à religião
imperial que o sistema de Estados europeu trouxe em sua colonização
global.
A participação do Vaticano nos interesses globais do capitalismo
também não deve deixar a Igreja imune à onda de revolta anticapitalista que
cresce especialmente nas duas margens do Mediterrâneo.
A recente
aprovação pela Câmara Baixa do Parlamento francês da união matrimonial
homossexual é só mais um sintoma de que os interesses patriarcais, misóginos e
machistas do clero também estão a perder lugar na definição da ordem legal e do
quadro dos direitos civis do século XXI.
A última monarquia absolutista
europeia, o Vaticano, sofre no gesto de renúncia daquele que foi consagrado como
o "vigário de Cristo", ou seja, o seu substituto, uma derrota simbólica
profunda, pois demonstra falta de coragem e obstinação em carregar uma cruz até
o final. A convivência de um novo papa com o ex-papa também esvazia a mística
monárquica individual desse vicariato místico, dividindo em dois o corpo do
substituto de Cristo na Terra.
Referências
bibliográficas:
JORISCH, Avi. The Vatican Bank: The Most Secret Bank In
the World. Forbes, 26 jun. 2012. Disponível em:
http://www.forbes.com/sites/realspin/2012/06/26/the-vatican-bank-the-mos...
LEIGH,
David; TANDA, Jean François; BENHAMOU, Jessica. How the Vatican built a secret
property empire using Mussolini's millions. The Guardian, Monday 21 January
2013. Disponível em:
http://www.guardian.co.uk/world/2013/jan/21/vatican-secret-property-empi...
MANHATTAN,
Avro. The Vatican Billions. Chino, CA: Chick Publications Year: 1983.
MORA,
Miguel. Los movimientos ultracatólicos ganan la partida. El País, 1º Feb. 2013.
Disponível em:
http://internacional.elpais.com/internacional/2013/02/11/actualidad/1360...
SCHAFFER,
Michael D.. Sex-abuse crisis is a watershed in the Roman Catholic Church's
history in America. Phylly.com, 25 Jun. 2012. Disponível em:
http://articles.philly.com/2012-06-25/news/32394491_1_canon-lawyer-catho...
VATICAN
posts record-high budget deficit: $19M. CBSNews, 5 Jul. 2012. Disponível em:
http://www.cbsnews.com/8301-202_162-57466929/vatican-posts-record-high-budget-deficit-$19m/
Henrique
Carneiro é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Este artigo
foi publicado no blogue Convergência
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