Claudio Bernabucci, na Revista CartaCapital
Há 500 anos, em 1513, surgia O Príncipe, de Niccolò Machiavelli, um dos mais célebres livros de todos os tempos. Poucos textos foram tão traduzidos e estudados como este, considerado o tratado inaugural da ciência política da era moderna. O fenômeno literário teve, não por acaso, Florença como epicentro: o pequeno Estado foi, naquela época, capital da cultura ocidental e com seu poder e seus recursos chegava a eleger papas e a financiar os soberanos de meia Europa.
A família Medici, considerada a mais rica da Europa no século XV, marcou a história cultural e política de Florença por três séculos. Mas conheceu momentos de declínio, à custa de conflitos que abriram espaço a experiências republicanas. Maquiavel forjou sua arte política durante os 14 anos de República entre 1498 e 1512, na função de secretário de Negócios Diplomáticos e de Guerra, saber que lhe assegurou fama duradoura nos tempos. A República não resistiu às agressões da Liga Santa e das armas espanholas, benditas pelo papa guerreiro Júlio II e, com a volta dos Medici a Florença em 1512, começam as desgraças para Maquiavel, obrigado a deixar os cargos públicos e sua cidade, e a refugiar-se em modesta casa de campo, no vilarejo de San Casciano, em 1513. Paradoxalmente, a este banimento se deve sua fortuna literária, porque, no ócio forçado, ele escreve, em poucas semanas de furioso trabalho durante o outono daquele ano, seu mais importante tratado.
Na terça dia 19 de fevereiro, um arauto a cavalo, com roupas de época, retornará aos mesmos 52 pontos da cidade – como há 500 anos – para lembrar o exílio do ilustre escritor. Desta maneira terão início as celebrações do quinto centenário, que incluem uma exposição em Roma, o lançamento de uma enciclopédia maquiaveliana, além de debates e simpósios de estudos em numerosas universidades, dos Estados Unidos à China.
A fortuna de O Príncipe deve-se a múltiplos fatores. Em primeiro lugar, por ser um clássico controvertido e interpretado de formas muitas vezes opostas: de manual para tiranos até panfleto militante para a libertação dos povos. Talvez a razão pela qual Maquiavel é mais conhecido, muito além do seu nome, se deva a uma interpretação distorcida do seu pensamento, ou melhor, ao uso instrumental e falso que – ao longo da história – foi feito da sua palavra. Quem não ouviu – para justificar comportamentos de duvidosa moralidade – utilizar a fórmula “o fim justifica os meios”? Muitos a utilizam no âmbito do “pensamento maquiavélico”, mas Maquiavel nunca escreveu ou pensou nesses termos. Muito pelo contrário.
É sabido que uma de suas mais importantes lições reside no princípio de separação de política, moral e religião. Nesse âmbito, ele foi o primeiro a introduzir a fundamental diferença entre “verdade factual”, ou seja, a verdade concreta que emerge dos fatos, e “imaginação da verdade”, ou seja, a fantasiosa reconstrução da realidade, que pode depender de nossos desejos, mas que é alheia aos fatos. Por consequência, o Príncipe, para manter o poder, deve ser um homem de bem ou mesmo não sê-lo, dependendo das circunstâncias concretas e não de princípios abstratos. E, quem quer ser bondoso a qualquer custo, no meio de muitos que bondosos não são, provocará, inevitavelmente, a própria ruína e a do Estado.
Para Maquiavel, os principais fatores a serem considerados para a conservação do bem público são: 1. As fraquezas humanas nem sempre consentem a observação de critérios morais em política 2. O que é bom moralmente pode ser negativo para a política e vice-versa. Essas afirmações, de fato muito realistas, deram origem a interpretações tendenciosas. Maquiavel tinha claramente consciência do dramático conflito entre esferas moral e política, mas não tinha a menor intenção de incentivar os políticos a se considerarem acima da ética. Por essa razão, conclui que o mal, se for possível, deve ser evitado, mas se o mal é inevitável, o político deve ter cuidado para não incorrer no ódio de seus cidadãos, “sempre que se abstenha de tomar os bens e as mulheres” deles.
Entre as várias interpretações de O Príncipe, como o político “que põe o bem comum acima de tudo”, me resulta particularmente próxima à de Antonio Gramsci. O pensador italiano identificou o “moderno Príncipe” no partido político, que deveria ter como finalidade ser protagonista de uma reforma intelectual e moral para o renascimento civil dos povos.
Vale a pena reler este belo livro, que continua a ensinar após 500 anos e parece falar de perto ao Brasil dos nossos dias.
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