04 julho 2012

AQUI E ALHURES


POLÍTICA

A nova tradição dos golpes:
os "crus" e os "cozidos"

Flávio Aguiar, no sítio Carta Maior


O modo como a direita brasileira apóia o golpe no Paraguai mostra que ela guarda ainda o DNA golpista que sempre acalentou desde a dupla deposição de Getúlio Vargas, a de 1945 e a de 1954. De passagem: o Estado Novo tinha que acabar, é claro, mas deve-se lembrar que o golpe que o acabou foi dado pela e à direita. Já o de 54 reuniu alguns dos componentes que fariam o programa futuro dos golpes de direita: campanha e legitimação midiática, bloqueio parlamentar e pressão ou ação militar direta, hoje, pelo menos, um coringa fora do baralho. Mas que não morreu.

A direita se esmera agora em comentários na mídia, mas também faz salamaleques oficiais, como o senador Álvaro Dias se orgulhando de ter recebido em seu gabinete uma missão de parlamentares golpistas do país vizinho e também dos brasiguaios de direita, falando na defesa dos interesses (anti-reforma agrária) desse grupo que estaria sendo oprimido pelas ameaçadora (?!) política de Lugo. Outro lembrete histórico: foi a defesa de interesses dos estancieiros brasileiros estabelecidos no Uruguai que levou diretamente à nefasta Guerra do Paraguai, com o governo imperial depondo o presidente daquele país.

É verdade que Solano Lopez a partir daí invadiu todo mundo ao seu redor: Brasil, Argentina, querendo chegar até o próprio Uruguai, contando com um levante de caudilhos na região que não aconteceu, ajudando, portanto, a construir a hecatombe que se abateu sobre seu país. A situação hoje é muito diversa, mas não vamos esquecer do clamor da direita brasileira para que o Brasil praticasse uma intervenção na Bolívia, quando da nacionalização das reservas de petróleo e gás, e para que agisse brutalmente contra o Paraguai, quando da renegociação dos pagamentos pela energia de Itaipu.

Voltando aos dias de hoje: a apoio ao golpe, com a declaração do também senador Sérgio Guerra, presidente do partido, já é patrimônio do PSDB. Dá, portanto, para imaginar o tamanho da regressão de nossa política externa caso este partido chegar ao poder. Repetem-se as cenas e os argumentos quando houve o golpe em Honduras. Os adjetivos reservados para o nosso Itamaraty são todos de baixo calão diplomático: “rudimentar”, “desinformação amadorística”, “diplomacia atrabiliária”, etc.

Acumulam-se argumentos cínicos na mídia, como o de que, afinal, a rapidez da deposição de Lugo foi uma bênção para o contribuinte paraguaio, pois por que fazer um processo longo se ele iria perder mesmo?

Para culminar a fúria desses habitantes imaginários da eterna e imaginária Casa Grande onde vivem, a suspensão do Paraguai do Mercosul abriu as portas para a entrada da Venezuela “de Hugo Chávez”, como gostam de dizer. Esquecem que até a oposição venezuelana veio a Brasília implorar aos congressistas brasileiros que apoiassem a entrada da Venezuela no Mercosul.

Além de registrar, portanto, esse assanhamento da direita brasileira com seus novos heróis – os deputados e senadores colorados e radicais do país vizinho – cumpre observar que ela vem sendo estimulada por um cenário externo onde esses golpes “legais” vem se tornando uma prática corrente. Esses golpes “cozidos” convivem com os “crus”, como os impostos pela intervenção da França na Costa do Marfim e deste país, mais a Grã-Bretanha, com apoio da OTAN, na Líbia. Registre-se, em todo caso, que nestes países grassava uma guerra civil sangrenta; mas a intervenção externa desequilibrou-a em favor de um dos lados, o mais conveniente para as potências ocidentais, sob o pretexto de “proteger vidas civis”.

A primeira nova versão dos golpes cozidos “a fogo brando” deu-se em 2000, nos Estados Unidos, na chamada “Controvérsia da eleição na Flórida”. Numa eleição marcada por inúmeras pequenas ou grandes fraudes que favoreciam Bush contra Al Gore, indo desde eliminação indevida de eleitores (na maioria afro-descendentes) até manipulação das cédulas eleitorais com instruções e organização confusas, Bush foi declarado vencedor por uma ínfima margem de votos, um pouco mais do que 500, levando, portanto os votos daquele colégio eleitoral. Entretanto, começou-se um processo de recontagem, elevando a temperatura da controvérsia. Aí veio o tiro de misericórdia do golpe: no começo de dezembro a Suprema Corte norte-americana mandou suspender a recontagem, por 5 x 4, decidindo a eleição em favor de Bush.

A segunda versão dos “golpes cozidos” aconteceu em Honduras, em 2009, quando a Suprema Corte (de novo ela!) daquele país ordenou ao Exército que detivesse o presidente Manuel Zelaya sob o pretexto de que ele estaria preparando um plebiscito que ela considerava ilegal. Detido, o presidente foi levado para uma base norte-americana, de onde foi expulso para a Costa Rica. O governo brasileiro não reconheceu o governo golpista de Roberto Micheletti (presidente do Congresso, membro do mesmo partido de Zelaya) e depois abrigou o ex-presidente em sua embaixada, quando ele tentou retornar ao país. Nessa ocasião a direita brasileira despejou uma chuva de críticas ao governo brasileiro e sua política externa. Um clima repressivo foi instalado no país pelo governo de Micheletti, suspendendo garantias constitucionais, fechando mídias de esquerda e reprimindo movimentos sociais. A crise só começou a ter fim depois de um discutível processo eleitoral que elegeu um “tertius”, o atual presidente Porfírio Lobo, embora organismos internacionais continuem a denunciar um clima de violência política no pais.

Mas tem mais. “Golpes brandos” estão hoje instalados também... na civilizadíssima Europa. Em novembro de 2011 os governos da Itália e da Grécia tornaram-se insustentáveis, caindo ambos, embora em estilos diferentes, mas com soluções semelhantes. Berlusconi, e não vou derramar a menor lágrima por ele, caiu em meio à contínua torrente de denúncias contra ele – mas também por pressão dos líderes da hegemonia neo-liberal da União Européia, que catapultaram o “tecnocrata” Mario Monti para sua substituição. Houve alguma violação constitucional? Absolutamente. Mas tampouco houve um processo eleitoral ou de escolha translúcido e cristalino, embora sua indicação ao parlamento tenha sido feita pelo presidente Giorgio Napolitano.

Já o caso grego foi mais dramático ainda, com o ex-primeiro ministro Yorgyos Papandreou caindo depois de fortemente pressionado pelos líderes daquela hegemonia (como a “dupla” Merkozy) por causa de um plebiscito (como no caso de Zelaya) que ele ameaçou fazer sobre os planos de austeridade que estavam e estão sendo impostos ao povo grego em nome da salvação do euro. Novamente um “tecnocrata” foi catapultado para o cargo de primeiro-ministro, Lucas Papademos, substituído recentemente pelo conservador Antonis Samaras em meio a um processo eleitoral marcado por fortíssimo clima de chantagem econômica e política, também em nome da salvação do euro.

E la nave va. No recente caso paraguaio também a Suprema Corte foi chamada a legitimá-lo, além de outra Suprema-Corte, a Igreja. Que houve golpe não há dúvida: o relatório da Embaixada norte-americana em Assunção, datado de 2009, descrevendo já em detalhes como seria a deposição de Lugo, não deixa dúvidas. Aliás, outro lembrete: a divulgação desse relatório, feita pelo site Wikileaks, relembra a inadiável necessidade de que o Equador conceda asilo a Julian Assange e que este consiga deixar livremente a Grã-Bretanha.

No caso do Brasil deve-se assinalar que, na falta do estamento militar, a direita brasileira tem-se voltado preferencialmente para operações midiáticas, como em parte do golpe de 1954 contra Vargas. Foi assim em 2006, primeiro com a “Operação Mensalão”, embora, neste caso, a montagem do cenário parlamentar tenha sido também de grande valia. Depois veio a “Operação Foto do Dinheiro”, desarticulada pela mídia alternativa. Também foi assim em 2010, com a “Operação Aborto” e depois a “Operação Pacote na Cabeça”, mais conhecida como “O Caso da Bolinha de Papel”, também desarticulada pela mídia alternativa.

Em 2006 a direita esteve mais perto de depor o então presidente Lula através de um impeachment congressual. Só não o tentou por três razões: 1) incerteza quanto ao resultado, dado o alto número de votos necessários e à possibilidade de insuficiência das provas; 2) temor quanto à reação popular, lição igualmente aprendida na crise de 1954, quando o povo enfurecido saiu às ruas não para festejar a queda de Vargas, mas para depredar a sede dos partidos de direita e da mídia opositora também; 3) a infundada certeza que tinha da vitória no pleito eleitoral, graças à conhecida e refutada tese da “pedra jogada n’água e a teoria dos círculos concêntricos”.

Em 2010 de novo, a direita tinha certeza absoluta da vitória, baseada no relativo desconhecimento da candidata situacionista escolhida, nas virtudes de seu próprio candidato, e no poder da campanha de difamação montada contra ela.

Em ambos os casos, só faltou combinar com a maioria do eleitorado. Vamos ver o que a nossa direita vai aprontar para o futuro, se continuar perdendo eleições nacionais. 


Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.




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