20/07/2012
O enigma argentino
A direita brasileira nunca entendeu a Argentina, nem quer
entender. O parentesco político do peronismo com o getulismo foi um obstáculo
fundamental para que pudesse entender o significado daquele fenômeno. Ao
contrário, os preconceitos em relação ao peronismo contribuíram para
incompreensões em relação ao próprio Brasil.
As histórias dos dois países são mais ou menos paralelas: a industrialização periférica, a hegemonia do nacionalismo no movimento popular, o peronismo e o getulismo, os golpes militares, a redemocratização, o neoliberalismo, governos progressistas neste século. As diferenças vieram do esgotamento do getulismo com o golpe militar de 1964.
As alianças de Getúlio com Peron e, atualmente, de Lula e da Dilma com os Kirchner, fortaleceram a diabolização da Argentina. FHC chegou a dizer que o governo do PT era “um subperonismo”, com todo o pejorativo que o peronismo assumiu na “ ciência política” brasileira.
A mídia daqui só acumula análises negativas e denúncias sobre o governo argentino, sempre como se o país estivesse à beira de um caos e como se o governo dos Kirchner fosse uma aberração. Por isso não conseguem entender e passar para seus leitores, ouvintes e telespectadores, enfoques que possam tornar inteligível que Cristina tenha se reeleito com grande facilidade e a oposição se reduza a uma dezena de grupos fragmentados e sem apoio popular.
As ambiguidades do peronismo favorecem as confusões sobre ele. Peronista foi o governo da Isabel Peron, que deu toda a cobertura para as ações da Triple A e preparou o campo para a ditadura. Assim como peronista foi Carlos Menem, que introduzia uma versão radical do neoliberalismo na Argentina.
Mas são peronistas – mesmo tendo aderido ao menemismo nos anos 90 – os governos de Nestor e de Cristina Kirchner, integrados ao posneoiberalismo latino-americano. Recuperaram a economia argentina do pior desastre da sua história – a implosão da política de paridade entre o dólar e o peso, implementada por Menem e mantida por De la Rua -, fortaleceram a integração regional, recompõem a capacidade econômica do Estado argentino e desenvolvem criadoras formas de políticas sociais.
As histórias dos dois países são mais ou menos paralelas: a industrialização periférica, a hegemonia do nacionalismo no movimento popular, o peronismo e o getulismo, os golpes militares, a redemocratização, o neoliberalismo, governos progressistas neste século. As diferenças vieram do esgotamento do getulismo com o golpe militar de 1964.
As alianças de Getúlio com Peron e, atualmente, de Lula e da Dilma com os Kirchner, fortaleceram a diabolização da Argentina. FHC chegou a dizer que o governo do PT era “um subperonismo”, com todo o pejorativo que o peronismo assumiu na “ ciência política” brasileira.
A mídia daqui só acumula análises negativas e denúncias sobre o governo argentino, sempre como se o país estivesse à beira de um caos e como se o governo dos Kirchner fosse uma aberração. Por isso não conseguem entender e passar para seus leitores, ouvintes e telespectadores, enfoques que possam tornar inteligível que Cristina tenha se reeleito com grande facilidade e a oposição se reduza a uma dezena de grupos fragmentados e sem apoio popular.
As ambiguidades do peronismo favorecem as confusões sobre ele. Peronista foi o governo da Isabel Peron, que deu toda a cobertura para as ações da Triple A e preparou o campo para a ditadura. Assim como peronista foi Carlos Menem, que introduzia uma versão radical do neoliberalismo na Argentina.
Mas são peronistas – mesmo tendo aderido ao menemismo nos anos 90 – os governos de Nestor e de Cristina Kirchner, integrados ao posneoiberalismo latino-americano. Recuperaram a economia argentina do pior desastre da sua história – a implosão da política de paridade entre o dólar e o peso, implementada por Menem e mantida por De la Rua -, fortaleceram a integração regional, recompõem a capacidade econômica do Estado argentino e desenvolvem criadoras formas de políticas sociais.
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Nossa América: duas anotações
Eric Nepomuceno, de Buenos Aires
Primeira anotação:
O Chile resolveu acelerar a busca pela verdade, a recuperação da memória e aplicação da justiça. O mesmo juiz Mario Carroza que reabriu as investigações sobre as mortes de Eduardo Frei, Salvador Allende e Pablo Neruda, abriu um processo contra dois coronéis da reserva da Força Aérea Chilena, Edgar Ceballos Jones e Ramón Cáceres Jorquera, como responsáveis pelas torturas que levaram à morte o general Alberto Bachelet Martínez.
Pai de Michelle Bachelet, a primeira mulher a presidir o Chile (entre 2006 e 2010), ele sofreu um infarto agudo do miocárdio no dia 12 de março de 1974, quando estava preso no Cárcere Público de Santiago. Tinha 51 anos. Em 1969 já havia sofrido um infarto, e necessitava acompanhamento médico. Preso na Academia de Guerra do Exército, foi pendurado em pau de arara (contribuição brasileira na técnica do horror), levou choques elétricos, foi obrigado a permanecer de pé por 30 horas seguidas, e, encapuzado, apanhou de antigos subordinados. O juiz determinou, na abertura do processo, que existe uma relação direta entre a morte da vítima ‘e seu último interrogatório, que produziu um descompasso em sua patologia cardíaca’. Os coronéis Ceballos e Cáceres já estão presos, acusados por outros crimes.
Pela primeira vez em 38 anos, a justiça chilena trata da morte do general Bachelet, amigo de Salvador Allende, militar democrata e cumpridor dos desígnios da Constituição. Tudo começou com a denúncia oferecida pela Agrupação de Familiares de Executados Políticos em junho de 2011, quando Michelle Bachelet já não era presidente. Essa denúncia se refere a 700 mortes ocorridas durante a ditadura de Pinochet e que jamais foram esclarecidas.
Nenhum tribunal tinha conseguido provar que o general Alberto Bachelet morreu das consequências de torturas. Agora, surgiu um relatório secreto do Instituto Médico Legal, descoberto pela comissão da verdade e entregue ao juiz Mario Carroza.
No Chile, como no Brasil, houve uma Lei de Anistia surgida no lusco-fusco da ditadura. No Chile, ao contrário do Brasil, a Justiça determinou que crimes cometidos sob o manto do terrorismo de Estado não podem ser anistiados.
No Chile, a verdade está sendo estabelecida, a memória está sendo resgatada e a Justiça está sendo aplicada.
Segunda anotação:
Ter sido presidente pode ser um problema para determinado tipo de pessoa. Certos ex-presidentes podem acabar sendo um problema sério para determinado país.
A Colômbia que o diga. Agora mesmo um ex-presidente colombiano, Álvaro Uribe, anda em guerra aberta contra seu ex-pupilo, o sucessor construído supostamente à sua imagem e semelhança, Juan Manuel Santos.
Não se trata de mera guerra de vaidades. A situação vai além, é séria, e pode ter consequências ainda mais funestas das que já produziu e produz.
Uribe e Santos pertencem à mesma estirpe conservadora de um país rachado entre os que têm muito e os que quase já não têm nem esperanças. Uns são poucos – os que têm muito. Outros são muitos – os que não esperam nada além de sobreviver ao dia a dia. Entre esses dois grupos existe um país que vai bem, que cresce a níveis impressionantes, embora o mais impressionante seja a manutenção de uma desigualdade atroz. O mesmo dilema de sempre: mudam os que mandam para dentro, não mudam os que mandam de fora. E que, em última instância, são os únicos que mandam de verdade.
Enquanto isso, e não por acaso, Washington – e, claro, o sacrossanto mercado – tem na Colômbia um aliado incondicional.
No caso da guerra aberta que Uribe declarou a Santos há elementos que merecem certa análise. O atual presidente foi um pouco de tudo de seu antecessor. Foi seu ministro de Defesa, foi seu pupilo dileto, foi executor de parte substancial do plano de combate à guerrilha, foi seu menino mimado junto às Forças Armadas, foi de um silêncio obsequioso diante das denúncias de corrupção dos paramilitares mais sanguinários. E, finalmente, foi depositário da fé absoluta nas bondades de se submeter aos desejos dos Estados Unidos.
Eleito, Juan Manuel Santos mudou um pouco. Vem tentando, sem maiores êxitos, terminar com o conflito entre governo e as FARC – as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Mas, aos olhos de Uribe, comete um pecado capital: tenta não apenas pela via militar, mas também pelo diálogo.
Deixou que denúncias contra os paramilitares se transformassem em processos judiciais. Alguns foram presos. Melhorou sensivelmente as péssimas relações que seu antecessor tinha com a Venezuela, e o resultado tem sido benfazejo pelo menos em termos de comércio bilateral.
A soma disso tudo é, para Uribe, inadmissível.
Existem, porém, atenuantes, que Uribe parece ignorar. As relações com Washington, por exemplo, vão muito bem. Tão bem, que a Colômbia volta e meia tenta se arvorar de interlocutor privilegiado com o governo dos Estados Unidos.
De resto, o que os colombianos vivem é um pouco mais do mesmo de sempre: urgências sociais não atendidas, lacunas tenebrosas em termos de política tributária, uma reforma jurídica que não acontece nunca, uma reforma agrária que sequer chegou a ser delineada, a submissão quase humilhante do Estado ao capital estrangeiro. Nada diferente do que acontecia nos tempos do agora inimigo do presidente.
Se tudo continua igual ou quase, qual a razão da ira de Álvaro Uribe? A ânsia, a fome insaciável de quem quer transformar a condução do país em patrimônio pessoal.
Talvez isso explique a esdrúxula situação vivida pela quarta economia da América do Sul, a quinta da América Latina, peça importante no jogo desenhado por Washington para a região.
Entre criador criatura, teria sido preciso escolher um de dois caminhos: governar para dentro, ou ser governado de fora.
Santos escolheu os dois. O país pagará o preço, enquanto Uribe continua dedicando cada segundo de cada hora de cada um de seus dias a conspirar contra a própria – e pobre – biografia.
O Chile resolveu acelerar a busca pela verdade, a recuperação da memória e aplicação da justiça. O mesmo juiz Mario Carroza que reabriu as investigações sobre as mortes de Eduardo Frei, Salvador Allende e Pablo Neruda, abriu um processo contra dois coronéis da reserva da Força Aérea Chilena, Edgar Ceballos Jones e Ramón Cáceres Jorquera, como responsáveis pelas torturas que levaram à morte o general Alberto Bachelet Martínez.
Pai de Michelle Bachelet, a primeira mulher a presidir o Chile (entre 2006 e 2010), ele sofreu um infarto agudo do miocárdio no dia 12 de março de 1974, quando estava preso no Cárcere Público de Santiago. Tinha 51 anos. Em 1969 já havia sofrido um infarto, e necessitava acompanhamento médico. Preso na Academia de Guerra do Exército, foi pendurado em pau de arara (contribuição brasileira na técnica do horror), levou choques elétricos, foi obrigado a permanecer de pé por 30 horas seguidas, e, encapuzado, apanhou de antigos subordinados. O juiz determinou, na abertura do processo, que existe uma relação direta entre a morte da vítima ‘e seu último interrogatório, que produziu um descompasso em sua patologia cardíaca’. Os coronéis Ceballos e Cáceres já estão presos, acusados por outros crimes.
Pela primeira vez em 38 anos, a justiça chilena trata da morte do general Bachelet, amigo de Salvador Allende, militar democrata e cumpridor dos desígnios da Constituição. Tudo começou com a denúncia oferecida pela Agrupação de Familiares de Executados Políticos em junho de 2011, quando Michelle Bachelet já não era presidente. Essa denúncia se refere a 700 mortes ocorridas durante a ditadura de Pinochet e que jamais foram esclarecidas.
Nenhum tribunal tinha conseguido provar que o general Alberto Bachelet morreu das consequências de torturas. Agora, surgiu um relatório secreto do Instituto Médico Legal, descoberto pela comissão da verdade e entregue ao juiz Mario Carroza.
No Chile, como no Brasil, houve uma Lei de Anistia surgida no lusco-fusco da ditadura. No Chile, ao contrário do Brasil, a Justiça determinou que crimes cometidos sob o manto do terrorismo de Estado não podem ser anistiados.
No Chile, a verdade está sendo estabelecida, a memória está sendo resgatada e a Justiça está sendo aplicada.
Segunda anotação:
Ter sido presidente pode ser um problema para determinado tipo de pessoa. Certos ex-presidentes podem acabar sendo um problema sério para determinado país.
A Colômbia que o diga. Agora mesmo um ex-presidente colombiano, Álvaro Uribe, anda em guerra aberta contra seu ex-pupilo, o sucessor construído supostamente à sua imagem e semelhança, Juan Manuel Santos.
Não se trata de mera guerra de vaidades. A situação vai além, é séria, e pode ter consequências ainda mais funestas das que já produziu e produz.
Uribe e Santos pertencem à mesma estirpe conservadora de um país rachado entre os que têm muito e os que quase já não têm nem esperanças. Uns são poucos – os que têm muito. Outros são muitos – os que não esperam nada além de sobreviver ao dia a dia. Entre esses dois grupos existe um país que vai bem, que cresce a níveis impressionantes, embora o mais impressionante seja a manutenção de uma desigualdade atroz. O mesmo dilema de sempre: mudam os que mandam para dentro, não mudam os que mandam de fora. E que, em última instância, são os únicos que mandam de verdade.
Enquanto isso, e não por acaso, Washington – e, claro, o sacrossanto mercado – tem na Colômbia um aliado incondicional.
No caso da guerra aberta que Uribe declarou a Santos há elementos que merecem certa análise. O atual presidente foi um pouco de tudo de seu antecessor. Foi seu ministro de Defesa, foi seu pupilo dileto, foi executor de parte substancial do plano de combate à guerrilha, foi seu menino mimado junto às Forças Armadas, foi de um silêncio obsequioso diante das denúncias de corrupção dos paramilitares mais sanguinários. E, finalmente, foi depositário da fé absoluta nas bondades de se submeter aos desejos dos Estados Unidos.
Eleito, Juan Manuel Santos mudou um pouco. Vem tentando, sem maiores êxitos, terminar com o conflito entre governo e as FARC – as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Mas, aos olhos de Uribe, comete um pecado capital: tenta não apenas pela via militar, mas também pelo diálogo.
Deixou que denúncias contra os paramilitares se transformassem em processos judiciais. Alguns foram presos. Melhorou sensivelmente as péssimas relações que seu antecessor tinha com a Venezuela, e o resultado tem sido benfazejo pelo menos em termos de comércio bilateral.
A soma disso tudo é, para Uribe, inadmissível.
Existem, porém, atenuantes, que Uribe parece ignorar. As relações com Washington, por exemplo, vão muito bem. Tão bem, que a Colômbia volta e meia tenta se arvorar de interlocutor privilegiado com o governo dos Estados Unidos.
De resto, o que os colombianos vivem é um pouco mais do mesmo de sempre: urgências sociais não atendidas, lacunas tenebrosas em termos de política tributária, uma reforma jurídica que não acontece nunca, uma reforma agrária que sequer chegou a ser delineada, a submissão quase humilhante do Estado ao capital estrangeiro. Nada diferente do que acontecia nos tempos do agora inimigo do presidente.
Se tudo continua igual ou quase, qual a razão da ira de Álvaro Uribe? A ânsia, a fome insaciável de quem quer transformar a condução do país em patrimônio pessoal.
Talvez isso explique a esdrúxula situação vivida pela quarta economia da América do Sul, a quinta da América Latina, peça importante no jogo desenhado por Washington para a região.
Entre criador criatura, teria sido preciso escolher um de dois caminhos: governar para dentro, ou ser governado de fora.
Santos escolheu os dois. O país pagará o preço, enquanto Uribe continua dedicando cada segundo de cada hora de cada um de seus dias a conspirar contra a própria – e pobre – biografia.
Fonte: Agência Carta Maior
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