O BNDES e a indústria do automóvel
Paulo Kliass
As decisões adotadas pelos governos sempre evidenciam quais são as suas verdadeiras prioridades de ação. Para além do discurso de boas intenções, a implementação das políticas públicas reflete os projetos considerados fundamentais por aqueles que estão no poder. E isso é ainda mais verdade quando se verificam os valores orçamentários e financeiros alocados para as diferentes áreas, setores e grupos. Afinal, governar é também fazer escolhas.
Há pouco tempo, a Espanha ofereceu para o mundo um triste - mas muito ilustrativo - exemplo de como funcionam as coisas na esfera íntima entre os grandes negócios e os recursos públicos. Pressionados pelas chantagens exercidas pela chamada “troika” (Comissão Européia - CE, Banco Central Europeu - BCE e Fundo Monetário Internacional - FMI), os sucessivos governos daquele país vinham praticando uma política econômica de extrema subserviência, combinando altas doses de austeridade orçamentária e movimentos de liberalização de mercados.
Mais recentemente, as decisões de cortes ainda mais severos nos gastos públicos terminaram por contribuir para aprofundar ainda mais a crise social, pois eram dirigidos para áreas como saúde, educação, auxílio desemprego, previdência, redução de salários, demissões no setor estatal e medidas afins. Mas, de repente, em meio a todo esse discurso a respeito da falta de recursos, eis que surge “milagrosamente” um pacote que pode chegar a 100 bilhões de euros destinados a salvar os bancos. E tais valores serão utilizados por essas instituições financeiras privadas para emprestar dinheiro exatamente ao Estado espanhol, cobrando taxas de juros de 7% ao ano, quando a taxa do BCE é de apenas 0,5% ao ano. Um caminho sinuoso que faz com que as camadas mais desfavorecidas da sociedade continuem a transferir ainda mais renda ao setor financeiro.
Por aqui, em nossas terras, a coisa não foi muito diferente ao longo dos últimos anos, desde FHC, passando por Lula e chegando a Dilma. A marca foram dolorosas seqüências anuais de geração de superávit primário, tendo por objetivo assegurar recursos do orçamento para pagamento de juros e serviços da dívida pública. O discurso martelava na insistente necessidade de contenção de despesas nas verbas alocadas para as áreas sociais fundamentais, pois não haveria recursos disponíveis para todas as necessidades previstas. E dá-lhe bilhões e mais bilhões de reais do orçamento sendo transferidos de forma contínua e segura, diretamente para os setores que mais se beneficiavam desse rentismo parasita.
Superávit primário: prioridade para o setor financeiro
Com a decisão recente de promover a redução na taxa oficial de juros, a SELIC, haveria espaço para elevar a capacidade de investimento do Estado e para recuperar o patamar das despesas tão essenciais na área social. Mas, já no início desse ano, a orientação de viés ortodoxo ainda se fazia manifestar: o governo anunciava um corte de mais de R$ 50 bilhões no orçamento da União. Sempre na linha da falácia do “esforço fiscal” para gerar superávit primário. Como se pagamento de juros não fosse despesa orçamentária! Assim, da mesma forma que o resultado pífio de 2,7% observado para o crescimento do PIB de 2011, as previsões para o ano atual estão também bastante abaixo de nossa capacidade econômica – nada muito acima de 2%. Isso enquanto nossos parceiros do BRIC apresentam um quadro bem diferente: a China reduziu sua previsão para “apenas” 7,5%, a Índia para 6,5% e a Rússia para 4%. Boa parte de nossa baixa performance pode ser explicada exatamente por essa redução da presença do Estado gastando e investindo, fruto de uma seqüência de decisões equivocadas adotadas pelo governo.
Os valores destinados ao agronegócio e às grandes propriedades rurais são mais do que 10 vezes superiores às verbas alocadas para os programas de agricultura familiar, responsáveis por 70% dos alimentos que chegam à mesa das famílias brasileiras. As justas reivindicações dos professores, em greve há quase 2 meses, são tratadas com desprezo e recusa ao diálogo e à negociação. O programa de reforma agrária está praticamente paralisado: de acordo com o próprio MST, os números são inferiores aos da época em que os tucanos estavam no poder. A proposta de estabelecer um mínimo de 10% para gastos com a educação no Brasil é descartada pelos responsáveis do governo, sob a “grave acusação” de que ela promoveria a quebra do País (sic). Enfim, são inúmeros os casos em que se pode verificar a sua verdadeira prioridade na agenda pública, por trás do discurso generalista em que se busca atender a todos.
Mas enquanto isso, a leitura da prestação de contas trimestral do BNDESao Congresso Nacional nos revela que, dos R$ 240 bi concedidos pela instituição ao longo dos últimos anos, 64% correspondem a empréstimos destinados a grandes empresas nacionais e multinacionais. Aos micro e pequenos empreendedores não foram destinados mais do que 20% do total. Eles foram muito pouco beneficiados, ainda que seja amplamente reconhecida a capacidade desse tipo de firma em gerar mais empregos, distribuir renda e ampliar a rede de apoio do tecido social.
BNDES e indústria automobilística
E para além dessas estatísticas, que demonstram o viés estrutural das opções do governo, surge agora outro que nos agride também pela força do elemento simbólico que carrega. O BNDES acaba de comemorar o destino do montante de R$ 342 milhões a um dos maiores conglomerados industriais do mundo - a Volkswagen. Ou seja, travestido do discurso contra a crise, o governo brasileiro resolve emprestar recurso público para que a multinacional lance aqui no Brasil um modelo de automóvel que já está sendo vendido em outras praças. Trata-se do supercompacto “Up”. A operação é um verdadeiro absurdo e um flagrante contra-senso. Ao invés de limitar a enorme remessa de lucros de nossas filiais para as matrizes européias e norte-americanas nesses tempos de crise, o governo empresta recurso público para quem tem toda capacidade própria de realizar os investimentos.
Esse recurso financeiro vem da linha “Proengenharia” do banco federal subordinado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), que deveria se preocupar em financiar a capacidade de inovação em ciência e tecnologia aqui no País e não ajudar as multinacionais com recurso subsidiado. Esse é o tipo de atividade que apenas gera valor agregado no exterior, para a qual as empresas já contam com recursos próprios para desenvolver em seus laboratórios de engenharia. Na verdade, a estratégia empresarial desses grupos nem prevê o aporte de recursos públicos para esse tipo de atividade. Os projetos chegam aqui prontos e acabados, sem nenhuma repercussão sobre os agentes brasileiros da rede de inovação tecnológica. Aliás, trata-se de um processo bastante semelhante aos R$ 374 milhões do BNDES que foram gentilmente oferecidos, no mês de abril passado, à concorrente Renault para desenvolver o mesmo tipo de operação. Segundo nota do próprio BNDES, servem para “adaptação de veículos ao clima e às condições de ruas e estradas do País”. Uma loucura!
Na contramão do transporte coletivo público
Tudo indica que o governo não aprendeu com os equívocos cometidos ao longo de todo o processo da Rio + 20. O primeiro erro foi o vexame de ter aprovado, às vésperas da Conferência da ONU, um texto do Código Florestal atendendo a boa parte dos pleitos da bancada ruralista e que reflete um movimento oposto às tendências contemporâneas do desenvolvimento sustentável e das próprias necessidades de nosso País. E agora, para terminar, sinaliza que sua prioridade continua sendo o transporte individual no espaço urbano, assim como pouco fez para iniciar a substituição do meio de transporte de carga e mercadorias, realizado por caminhões nas rodovias por todo território nacional.
Não bastasse toda a sorte de incentivos já oferecidos, como as reduções tributárias para estimular a venda de veículos e reduzir o estoque das montadoras nos pátios, agora o BNDES também oferece recursos para elas “brincarem” de inovação tecnológica, num verdadeiro jogo de cena enganador. Mais uma vez, damos passos na contramão de todas as evidências, que apontam para a necessidade de buscarmos soluções por meio da ampliação da rede e do desenvolvimento de novos conceitos de transporte coletivo público. Com a medida, o governo só faz confirmar que sua prioridade ainda continua sendo o carro movido a combustível poluente, com seus efeitos de ampliação dos congestionamentos.
Na direção contrária, os debates envolvendo as eleições municipais de outubro já permitem a consolidação de algumas temáticas. Dentre elas, ganha destaque a questão da mobilidade urbana e a necessidade de se promover a substituição urgente do transporte baseado no veículo individual. A malha viária das grandes cidades não suporta mais essa alternativa e o custo social derivado dessa solução irracional está beirando o limite do suportável. Pouco a pouco, constrói-se uma espécie de unanimidade contra esse modelo adotado há décadas.
Ao invés de aproveitar a conjuntura de crise para buscar outros caminhos, o governo infelizmente acaba por oferecer um sobre-fôlego a esse modelo, que todos reconhecem como entrando em estado terminal do ponto de vista de solução de transporte.
Há pouco tempo, a Espanha ofereceu para o mundo um triste - mas muito ilustrativo - exemplo de como funcionam as coisas na esfera íntima entre os grandes negócios e os recursos públicos. Pressionados pelas chantagens exercidas pela chamada “troika” (Comissão Européia - CE, Banco Central Europeu - BCE e Fundo Monetário Internacional - FMI), os sucessivos governos daquele país vinham praticando uma política econômica de extrema subserviência, combinando altas doses de austeridade orçamentária e movimentos de liberalização de mercados.
Mais recentemente, as decisões de cortes ainda mais severos nos gastos públicos terminaram por contribuir para aprofundar ainda mais a crise social, pois eram dirigidos para áreas como saúde, educação, auxílio desemprego, previdência, redução de salários, demissões no setor estatal e medidas afins. Mas, de repente, em meio a todo esse discurso a respeito da falta de recursos, eis que surge “milagrosamente” um pacote que pode chegar a 100 bilhões de euros destinados a salvar os bancos. E tais valores serão utilizados por essas instituições financeiras privadas para emprestar dinheiro exatamente ao Estado espanhol, cobrando taxas de juros de 7% ao ano, quando a taxa do BCE é de apenas 0,5% ao ano. Um caminho sinuoso que faz com que as camadas mais desfavorecidas da sociedade continuem a transferir ainda mais renda ao setor financeiro.
Por aqui, em nossas terras, a coisa não foi muito diferente ao longo dos últimos anos, desde FHC, passando por Lula e chegando a Dilma. A marca foram dolorosas seqüências anuais de geração de superávit primário, tendo por objetivo assegurar recursos do orçamento para pagamento de juros e serviços da dívida pública. O discurso martelava na insistente necessidade de contenção de despesas nas verbas alocadas para as áreas sociais fundamentais, pois não haveria recursos disponíveis para todas as necessidades previstas. E dá-lhe bilhões e mais bilhões de reais do orçamento sendo transferidos de forma contínua e segura, diretamente para os setores que mais se beneficiavam desse rentismo parasita.
Superávit primário: prioridade para o setor financeiro
Com a decisão recente de promover a redução na taxa oficial de juros, a SELIC, haveria espaço para elevar a capacidade de investimento do Estado e para recuperar o patamar das despesas tão essenciais na área social. Mas, já no início desse ano, a orientação de viés ortodoxo ainda se fazia manifestar: o governo anunciava um corte de mais de R$ 50 bilhões no orçamento da União. Sempre na linha da falácia do “esforço fiscal” para gerar superávit primário. Como se pagamento de juros não fosse despesa orçamentária! Assim, da mesma forma que o resultado pífio de 2,7% observado para o crescimento do PIB de 2011, as previsões para o ano atual estão também bastante abaixo de nossa capacidade econômica – nada muito acima de 2%. Isso enquanto nossos parceiros do BRIC apresentam um quadro bem diferente: a China reduziu sua previsão para “apenas” 7,5%, a Índia para 6,5% e a Rússia para 4%. Boa parte de nossa baixa performance pode ser explicada exatamente por essa redução da presença do Estado gastando e investindo, fruto de uma seqüência de decisões equivocadas adotadas pelo governo.
Os valores destinados ao agronegócio e às grandes propriedades rurais são mais do que 10 vezes superiores às verbas alocadas para os programas de agricultura familiar, responsáveis por 70% dos alimentos que chegam à mesa das famílias brasileiras. As justas reivindicações dos professores, em greve há quase 2 meses, são tratadas com desprezo e recusa ao diálogo e à negociação. O programa de reforma agrária está praticamente paralisado: de acordo com o próprio MST, os números são inferiores aos da época em que os tucanos estavam no poder. A proposta de estabelecer um mínimo de 10% para gastos com a educação no Brasil é descartada pelos responsáveis do governo, sob a “grave acusação” de que ela promoveria a quebra do País (sic). Enfim, são inúmeros os casos em que se pode verificar a sua verdadeira prioridade na agenda pública, por trás do discurso generalista em que se busca atender a todos.
Mas enquanto isso, a leitura da prestação de contas trimestral do BNDESao Congresso Nacional nos revela que, dos R$ 240 bi concedidos pela instituição ao longo dos últimos anos, 64% correspondem a empréstimos destinados a grandes empresas nacionais e multinacionais. Aos micro e pequenos empreendedores não foram destinados mais do que 20% do total. Eles foram muito pouco beneficiados, ainda que seja amplamente reconhecida a capacidade desse tipo de firma em gerar mais empregos, distribuir renda e ampliar a rede de apoio do tecido social.
BNDES e indústria automobilística
E para além dessas estatísticas, que demonstram o viés estrutural das opções do governo, surge agora outro que nos agride também pela força do elemento simbólico que carrega. O BNDES acaba de comemorar o destino do montante de R$ 342 milhões a um dos maiores conglomerados industriais do mundo - a Volkswagen. Ou seja, travestido do discurso contra a crise, o governo brasileiro resolve emprestar recurso público para que a multinacional lance aqui no Brasil um modelo de automóvel que já está sendo vendido em outras praças. Trata-se do supercompacto “Up”. A operação é um verdadeiro absurdo e um flagrante contra-senso. Ao invés de limitar a enorme remessa de lucros de nossas filiais para as matrizes européias e norte-americanas nesses tempos de crise, o governo empresta recurso público para quem tem toda capacidade própria de realizar os investimentos.
Esse recurso financeiro vem da linha “Proengenharia” do banco federal subordinado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), que deveria se preocupar em financiar a capacidade de inovação em ciência e tecnologia aqui no País e não ajudar as multinacionais com recurso subsidiado. Esse é o tipo de atividade que apenas gera valor agregado no exterior, para a qual as empresas já contam com recursos próprios para desenvolver em seus laboratórios de engenharia. Na verdade, a estratégia empresarial desses grupos nem prevê o aporte de recursos públicos para esse tipo de atividade. Os projetos chegam aqui prontos e acabados, sem nenhuma repercussão sobre os agentes brasileiros da rede de inovação tecnológica. Aliás, trata-se de um processo bastante semelhante aos R$ 374 milhões do BNDES que foram gentilmente oferecidos, no mês de abril passado, à concorrente Renault para desenvolver o mesmo tipo de operação. Segundo nota do próprio BNDES, servem para “adaptação de veículos ao clima e às condições de ruas e estradas do País”. Uma loucura!
Na contramão do transporte coletivo público
Tudo indica que o governo não aprendeu com os equívocos cometidos ao longo de todo o processo da Rio + 20. O primeiro erro foi o vexame de ter aprovado, às vésperas da Conferência da ONU, um texto do Código Florestal atendendo a boa parte dos pleitos da bancada ruralista e que reflete um movimento oposto às tendências contemporâneas do desenvolvimento sustentável e das próprias necessidades de nosso País. E agora, para terminar, sinaliza que sua prioridade continua sendo o transporte individual no espaço urbano, assim como pouco fez para iniciar a substituição do meio de transporte de carga e mercadorias, realizado por caminhões nas rodovias por todo território nacional.
Não bastasse toda a sorte de incentivos já oferecidos, como as reduções tributárias para estimular a venda de veículos e reduzir o estoque das montadoras nos pátios, agora o BNDES também oferece recursos para elas “brincarem” de inovação tecnológica, num verdadeiro jogo de cena enganador. Mais uma vez, damos passos na contramão de todas as evidências, que apontam para a necessidade de buscarmos soluções por meio da ampliação da rede e do desenvolvimento de novos conceitos de transporte coletivo público. Com a medida, o governo só faz confirmar que sua prioridade ainda continua sendo o carro movido a combustível poluente, com seus efeitos de ampliação dos congestionamentos.
Na direção contrária, os debates envolvendo as eleições municipais de outubro já permitem a consolidação de algumas temáticas. Dentre elas, ganha destaque a questão da mobilidade urbana e a necessidade de se promover a substituição urgente do transporte baseado no veículo individual. A malha viária das grandes cidades não suporta mais essa alternativa e o custo social derivado dessa solução irracional está beirando o limite do suportável. Pouco a pouco, constrói-se uma espécie de unanimidade contra esse modelo adotado há décadas.
Ao invés de aproveitar a conjuntura de crise para buscar outros caminhos, o governo infelizmente acaba por oferecer um sobre-fôlego a esse modelo, que todos reconhecem como entrando em estado terminal do ponto de vista de solução de transporte.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: www.cartamaior.com.br
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