11 dezembro 2010

O PODER DO DÓLAR

Desde a crise financeira, nos últimos dois anos não faltaram analistas acadêmicos e de mercado preconizando a degeneração do dólar como moeda de referência internacional.

Em 2008 a instabilidade e o caos nos mercados creditício, bancário e financeiro levaram certas interpretações a enxergar o colapso do poder americano e a derrocada da economia financeirizada. Entretanto, essas avaliações foram surpreendidas pela disposição dos Estados-nacionais e dos bancos centrais de salvaguardar as instituições financeiras e o capital privado, explicitando a aliança ancestral entre estadistas e financistas.

Além disso, essas avaliações se espantaram, no imediato pós-crise, com a intensa valorização do dólar e a forte apreciação dos títulos do tesouro americano, que, paradoxalmente, se apresentaram como os papéis mais seguros do mercado global, evidenciando uma vez mais o poder do dólar como moeda internacional.

Agora em 2010, diante da hesitante recuperação americana, expressa na desvalorização do dólar, na monetização dos títulos da dívida pública e na guerra cambial, as mesmas ansiedades decadentistas voltaram a reaparecer. A lista de alternativas supostamente viáveis propostas por governos e organismos multilaterais se avoluma: a substituição do dólar, a criação de uma nova moeda supranacional, a fixação de uma meta consensual para os desequilíbrios das transações correntes, a conversão do FMI em um banco central global, e até mesmo a ressurreição do padrão ouro. Todas essas medidas partem de um diagnóstico comum: a hegemonia do dólar está ameaçada, prova disso seria a perda de espaço da moeda americana no mix de moedas das reservas internacionais dos países.

Essas análises macroeconômicas carecem, no entanto, de uma desmistificação trazida pela economia política internacional. No sistema mundial moderno, a moeda de referência internacional é um produto da capacidade de expansão do poder soberano. Como toda expansão de poder é um ato de força e conquista seu avanço gera permanentemente desequilíbrios e instabilidades, para todos os Estados e para o próprio país hegemônico. De modo que a arena monetária não é outra coisa que não um palco, talvez o mais importante, em que esses distúrbios se apresentam. Nesse sentido, a política do dólar forte de ontem e a política do dólar fraco de hoje podem ser encaradas como dois capítulos de uma mesma história: a história do poder soberano americano que cria instabilidades e conflitos para que ele próprio possa reafirmar, acumular e expandir permanentemente o seu poder global.

É essa natureza instável do poder a responsável por fazer desse sistema algo dinâmico e explosivo e não estático. Por isso, periodicamente, a hierarquia dos Estados-nacionais sofre alterações e o sistema monetário-financeiro internacional torna-se mais “sensível”, como temos observado. Mas isso não significa imediatamente uma desestruturação do poder do dólar, até mesmo porque não há no horizonte de curto e médio-prazo alguma moeda capaz de substituí-lo, afinal, enquanto o Euro passa por dificuldades crescentes, a Libra inglesa segue movimentos muito próximos aos do próprio dólar, o Yen japonês caminha timidamente e o Yuan chinês permanece inconversível internacionalmente.

Além disso, ao que tudo indica, nem os credores europeus tampouco os chineses tem qualquer interesse na depreciação do dólar, e, embora no curto-prazo interesse aos EUA depreciar sua moeda essa tendência provavelmente não continuará indefinidamente. Em algum momento, a despeito da dívida pública americana, os juros nos EUA voltarão a subir, pois não é trivial que os Treasuries continuem sendo considerados os papéis mais seguros do mundo.

Mesma a queda na participação do dólar entre as reservas internacionais é muito pequena, passou de 61% em 2007 para 56% em 2009, a Libra passou por uma redução similar, e o Yen não representa mais do que 2% do total das reservas oficiais dos países. Diante da incerteza global sofreu alteração a quantidade de reservas não-declaradas, que saltou de 39% em 2007 para 44% em 2009. Esse último número pode traduzir uma certa insegurança com relação ao dólar, mas nada aponta sobre uma possível crise. Em 2010 as reservas internacionais atingiram algo em torno de oito trilhões de dólares, sendo que mais da metade delas estão sob a posse de países em desenvolvimento. Em suma, o que parece estar acontecendo é uma pequena diversificação das reservas associada aos resultados da economia americana e ao aumento da importância de outras economias emergentes.

Tal fenômeno só pode animar a concorrência interestatal, e com isso o mais provável é que os desequilíbrios e instabilidades políticas que sustentam o dólar dêem ainda fôlego para a moeda americana. Nesse momento, apesar das inúmeras hipóteses sobre a decadência do dólar, o mais provável é que haja pelo menos mais uma rodada de ajustes, conquistas e guerras no cenário geopolítico e geoeconômico reafirmando o poder dos EUA e, por extensão, o poder do dólar.

Parece que ainda não soou a hora final da moeda americana, apesar de que as transformações em curso possam estar criando uma situação mais complexa para ela. Ao que tudo indica o que estamos assistindo não é a falência do sistema monetário-financeiro internacional baseado no dólar, mas a uma reorganização dos Estados-nacionais no seu interior. Sendo assim, o mais aconselhável é seguir acompanhando os movimentos de transformação recente de forma atenta, tendo em conta que não é prudente minimizar o poder das moedas hegemônicas e internacionais. Não se pode subestimar o poder do dólar.


William Nozaki (*)


(*)Doutorando e mestre em Desenvolvimento Econômico (IE/UNICAMP), graduado em Ciências Sociais (FFLCH/USP), pesquisador-bolsista do PNPD-IPEA no projeto Arquitetura Financeira Internacional. E-mail: william.nozaki@gmail.com.

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