17 dezembro 2010

A caderneta de poupança e a taxa de juros

Paulo Kliass (*)


Infelizmente, em sua última reunião de 2011, realizada no dia 8 de dezembro, o COPOM optou por manter a taxa oficial de juros do Banco Central, a SELIC, no patamar de 10,75% ao ano. Seria uma oportunidade a mais para que o encerramento do mandato do Presidente Lula apresentasse alguma novidade em termos da sua política econômica, em especial no que se refere à condução da política monetária. Mas, não! Foi mais do mesmo: mais uma reafirmação do mesmo caminho da ortodoxia, mais uma manifestação da teimosia de mesmo viés financista.

O tom de despedida com que a maioria dos órgãos de imprensa cobriram o evento trouxe à tona informações que falam por si mesmas a respeito dos dois mandatos de Lula e a política monetária conduzida por seu governo. Nunca antes na história deste país um presidente do Banco Central havia ficado tanto tempo ocupando aquela cadeira. Nunca antes na história deste país, um ex-presidente internacional de um dos maiores representantes da banca mundial (Bank of Boston) havia ocupado aquele cargo. Nunca antes na história deste país, um Presidente da República havia enviado uma Medida Provisória ao Congresso Nacional para conferir ao ocupante do cargo de presidente do BACEN a prerrogativa de Ministro de Estado.

Em 31 de dezembro próximo, Meirelles terá ficado à frente da política monetária os exatos 8 anos em que Lula ocupou o Palácio do Planalto. Nem mais nem menos. E ali esteve por esse longo período gozando da mais ampla autonomia, quase independência plena, para conduzir a política monetária que julgava mais adequada para o Brasil, que passou a ser presidido por um ex-líder sindical, eleito pelo Partido dos Trabalhadores. Triste ironia de nossa história.

Foram contabilizadas 76 reuniões do COPOM presididas por Henrique Meirelles. E o Brasil de Lula iniciou seu período, em janeiro de 2003, com a maior taxa real de juros do mundo, vindo a terminar agora ostentando a mesma medalha pendurada no pescoço. Nesse quesito, não resta a menor dúvida: o Brasil é ouro! Com exceção de algumas poucas semanas ao longo desses 96 meses, em que conseguimos ser suplantados pela taxa da Turquia, o Brasil foi campeão mundial da taxa real de juros. Talvez não custe aqui recordar a diferença entre taxa nominal de juros e taxa real de juros. A primeira é a taxa que remunera um determinado contrato. Por exemplo, a SELIC no patamar de 10,75% ao ano ou os juros superiores a 9% ao mês(!!!) quando se entra no vermelho da conta corrente. No entanto, ao longo do processo pode ocorrer perda de valor da moeda, em razão do processo de crescimento dos preços, a inflação. Assim, ao final do período, para saber o ganho “real” ( e não apenas a remuneração “nominal”), deve-se deduzir a inflação do cálculo. Daí a noção de taxa real de juros. Agora, por exemplo, com a SELIC a 10,75% e a inflação esperada pelo BC em torno de 4,5%, pode-se dizer que a taxa real de juros, na aplicação em títulos públicos federais é da ordem de 6% ao ano.

Tentemos imaginar as inúmeras (quase 80!) oportunidades que o País perdeu de mudar o rumo da transferência de renda do orçamento público para as contas bancárias das elites, ao longo dos 2 mandatos. Em cada uma das reuniões do COPOM prevaleceu a opção pelo ajuste monetário por meio de taxas de juros estratosféricas. Mesmo quando a SELIC baixava um pouco, a taxa de juros real do Brasil continuava nas alturas. Uma pena.

Mas a intenção do artigo é discutir, como diz o título, a relação entre essa mesma taxa de juros e a nossa tão famosa e popular caderneta de poupança. Mas por que, perguntarão algun(ma)s? Talvez a principal razão desta “levantada de bola” seja a dificuldade que o governo deverá enfrentar, caso realmente a Presidenta resolva levar a séria sua promessa de baixar a SELIC a partir de 1 de janeiro próximo.

A caderneta de poupança foi um instrumento de elevada importância em momentos passados de nossa história. Ao longo dos períodos de inflação elevada e alta volatilidade das aplicações financeiras, a remuneração de tal modalidade era assegurada por índices oficiais. Havia uma suposta reposição pela perda inflacionária, acrescida de uma remuneração dita “real” de 0,5% ao mês, pouco mais de 6% ao ano. E o adjetivo “suposta” cabe aqui em razão das dificuldades de se conseguir que um índice oficial de inflação recompusesse o valor de compra da moeda sem perdas. Eram as épocas da inflação cronicamente elevada e das manipulações dos índices oficiais de preços, que provocaram avalanches de ações judiciais, muitas delas ainda sem decisão definitiva até os dias de hoje. Como sempre, os pequenos poupadores eram os que mais perdiam com tanta turbulência.

Pelas regras atuais, a remuneração da caderneta de poupança ainda carrega o espírito da chamada “indexação”. Ou seja, o modelo garante uma reposição por um índice oficial e assegura a tal da remuneração suplementar de 0,5% ao mês. O índice é a chamada “Taxa Referencial de Juros”, a popular TR no jargão do financês. A diferença com o período anterior é que a TR não é mais um índice que reflete a inflação passada. A TR é um indicador divulgado oficialmente pelo BC, que refletiria a média da remuneração oferecida pelos bancos aos seus títulos chamados Certificado de Depósitos Bancários, sobre a qual incide ainda um fator redutor. Nesse momento, a TR é reduzida o suficiente para que a poupança não seja considerada atrativa.

Além disso, sobre as aplicações da poupança não incide Imposto de Renda e o governo assegura um valor de cada conta, caso a instituição financeira tenha dificuldades em honrar os compromissos com o depositante. Ou seja, uma aplicação de perfil conservador (baixa rentabilidade relativa), mas com alta credibilidade e segurança. Outro fator interessante na caderneta é a ausência de comissões e taxas a serem cobradas pelos bancos para sua manutenção. Ou seja, o rendimento bruto é igual ao rendimento líquido.

No entanto, a questão começa a ficar mais complicada à medida que a taxa real de juros começa a baixar. Pois é, pode até parecer contraditório à primeira vista, mas ocorre exatamente assim! Vejamos como. Se a caderneta de poupança assegura, em princípio, um ganho financeiro real de 6% ao ano, pode-se imaginar que essa remuneração seja equivalente ao mínimo que a sociedade brasileira esteja disposta a receber. E vejam que aqui entram os interesses dos pequenos, dos médios, dos grandes e dos hiper poupadores. Ninguém quer perder.

Durante o período de julho de 2009 a abril de 2010, a taxa SELIC permaneceu em seu patamar mais, digamos assim, reduzido... A crise internacional generalizada obrigou os bancos centrais dos países mais desenvolvidos a baixarem suas taxas de juros. Era um dos instrumentos daqueles governos para fazer face à recessão. Como a nossa SELIC sempre foi mais alta, ela ficou “baixinha” em 8,75%, uma monstruosidade.

Enfim, mas o que importa reter é que essa situação começou a provocar um certo burburinho no tal do “mercado”. E dá-lhe os grandes meios de comunicação a soltar aquelas notinhas típicas; o mercado pensa, o mercado reage, o mercado está insatisfeito, o mercado está receoso, o mercado pretende e por aí vai. Gostaria eu de um dia conseguir um encontro com esse tal do “Seu Mercado”... Parece tão humano, tão pessoal. Com cara, telefone, endereço, emoções, desejos!

Mas o fato era que à medida que a remuneração da SELIC ia sendo reduzida, os operadores já começavam a vislumbrar lá no fim do horizonte a caderneta de poupança como alternativa de aplicação. Afinal, se o COPOM baixasse mais ainda dos tais 8,75%, as calculadoras eletrônicas e as planilhas de computador já começavam a oferecer os cálculos de rentabilidade alternativa. É compreensível: se fossem deduzidas as parcelas de Imposto de Renda e as comissões cobradas pelas instituições financeiras, talvez começasse a ficar mais atraente aplicar no mais seguro dos mares: os 6% seguros da caderneta de poupança, mais alguma “coisinha extra” que viesse com a remuneração da TR.

Talvez vocês se lembrem que, à época, o governo instituiu um grupo para repensar o modelo da caderneta de poupança. Mas a reação política foi meio assustadora, com o retorno de imagens no inconsciente coletivo da época do Collor e o congelamento dos recursos da poupança. E é preciso reconhecer que mexer nesse vespeiro é uma operação de alto risco, que exige cautela e sensibilidade. Houve uma certa hesitação no núcleo duro do Palácio e a questão foi “resolvida” com a volta da elevação da taxa pelo COPOM. Ou seja, a caderneta de poupança deixou de ser um problema... SELIC sobe a 9,5%, 10,25% , 10,75% e vamos todos prá cima.

O que importa reter aqui é que a questão continua sem ter sido resolvida. Se a SELIC retomar sua tendência de baixa, como todos esperamos, em algum momento a comparação com a remuneração assegurada pela caderneta de poupança vai acender, outra vez, o sinal amarelo. E os operadores do mercado financeiro tenderão a reconsiderar a alternativa de alocar parcelas crescentes e significativas de suas aplicações nessa modalidade, teoricamente voltada para pequenos poupadores. E deixando de alocar seus recursos nas aplicações típicas de rolagem da dívida pública, os títulos emitidos pelo governo federal.

Mas então, o que fazer? O primeiro passo é reconhecer o fato como uma questão política, e de natureza até mesmo cultural, a ser enfrentada. Ou seja, iniciar o debate público e franco de que a sociedade brasileira está presa a uma armadilha do ganho financeiro, de uma forma tão disseminada que incorpora setores que até então não se imaginava. É como se todos estivéssemos quimicamente dependentes da taxa elevada de juros, com esse piso mínimo de 6% reais ao ano. Quem se dispõe a receber menos do que isso?

O ponto é evitar que a caderneta de poupança passe a ser porto de destino dos trilhões que circulam diariamente no mercado financeiro. E também tornar claro que se a taxa de juros oficial for efetivamente reduzida, a remuneração da poupança também sofrerá, em algum momento, a sua própria redução. A dificuldade maior será o desenho final das medidas a serem tomadas. Há que se diferenciar o conceito de “pequeno poupador” e “grande poupador”, em termos de valor total da aplicação na caderneta e impedir que um único aplicador pulverize seus recursos em milhares de contas dentro do limite de “pequeno poupador”. Para os grandes, o mais adequado deveria ser a incidência de algum tipo de imposto. Por outro lado, será necessário redesenhar a remuneração da própria poupança, fazendo-a contemporânea de uma época de redução da taxa real de juros. Isso implica alterar a sistemática de apuração da TR ou da taxa que vier a substituí-la.

Para finalizar. O principal elemento a incorporar nesse instante é que o movimento para reduzir a taxa real de juros provocará conseqüências não apenas para os grandes aplicadores e especuladores. Os que menos nos interessam, aqueles do movimento especulativo puro e simples, talvez se sentirão menos atraídos por esse paraíso financeiro do Atlântico Sul.

Melhor assim. Mas o Brasil consolidou um mercado financeiro expressivo e importante, com recursos significativos e que ficarão em nosso espaço. E também os pequenos poupadores deverão compreender que não poderão ter um ganho financeiro mais elevado do que a remuneração dos títulos do governo federal. Com o abacaxi e a palavra, os responsáveis pela área econômica de Dilma Roussef.

(*)Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.


(Extraído do site http://www.cartamaior.com.br/ )

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