21 outubro 2013
VAMOS ABRIR OS OLHOS
Monetário-ecologismo: sonhática
e financista
Paulo Kliass, na Agência Carta Maior
Para um primeiro contato, a sensação causada é de um certo impressionismo. Afinal, o discurso da ex senadora, antes eleita pelo Estado do Acre, se apresenta muito bem articulado, incluindo um conjunto vasto de termos e expressões que não costumam caber nas falas rotineiras dos chamados “políticos tradicionais”. Chama mesmo a atenção, até pelo que oferece de inusitado.
Bastariam apenas as figuras de linguagem mais recentes, que já se prestam a causar um certo furor em alguns meios ou até mesmo desconforto, em outros circuitos. São coisas ditas e escritas por todos os ventos, tais como “disruptura”, “narrativa do movimento”, “projeto sonhático”, “ressignificar a experiência econômica”, “mutação de projetos identificatórios”, “alianças alicerçadas por uma ética da urgência”. E por aí vai.
Os mais desavisados podem até se surpreender de quão supostamente articulada se apresenta a mais importante liderança individual da Rede Sustentabilidade.
Sim, pois até o presente momento, esse é o nome com que se apresenta a organização partidária que não quer ser chamada pelo substantivo masculino “partido”. Mas o fato é que a própria número 1 da agremiação se viu obrigada ou constrangida a solicitar sua filiação ao PSB, no último minuto do segundo tempo - sábado dia 5 de outubro. Tudo para não perder a possibilidade jurídica de se candidatar a algum posto nas eleições do ano que vem.
A trajetória de Marina: da ecologia às finanças
Apesar de trazer em seu DNA uma origem marcada por algumas tendências autenticamente ecológicas e ambientalistas, o movimento conhecido como “marineiro” foi ampliando seu espectro político-ideológico e se converteu efetivamente em um programa de governo, tal como apresentado à sociedade brasileira nas eleições de 2010. Tendo abandonado o PT em 2009, Marina Silva concorreu à Presidência da República pelo Partido Verde e obteve quase 20 milhões de votos - o que correspondeu a mais de 19% do total. Assim, converteu-se em patrimônio eleitoral que não pode ser negligenciado por nenhuma força política no País.
No entanto, uma das marcas da ampliação do espaço político-eleitoral da candidata tem sido a convergência conservadora de seus princípios programáticos. Muito tem sido comentado a respeito dessa característica, principalmente em função de suas conhecidas raízes religiosas e uma eventual retomada de um certo fundamentalismo a nortear sua ação nos dias de hoje. No caso específico da política econômica, esse viés é mais do que evidente. A antiga militante sindicalista e das causas populares e ecológicas foi se aproximando politicamente de importantes ramos da grande burguesia e de representantes do empresariado financista. Esse fenômeno, diga-se de passagem, não é característica específica do capitalismo tupiniquim. Em vários países do mundo desenvolvido, e mesmo em sua escala globalizada, setores do capital começam a se apropriar das bandeiras da causa ambientalista. Na verdade, trata-se de uma inteligente estratégia de conversão de sua atuação para áreas estratégicas, em que sejam identificadas e mapeadas as novas oportunidades de negócios. Assim, trata-se de trabalho de pesquisa de potencial de investimentos para os novos ciclos de reprodução e acumulação do sistema. A justificação teórica mais elaborada e refinada vem na seqüência.
Esse tipo de movimento - sempre pensando no longo prazo - é que faz com que empresas, hoje vistas como inimigas do ser humano e do meio ambiente, ensaiem uma mudança de postura e de imagem. A Vale patrocina empreendimentos que se apresentam como marcados pela sustentabilidade (sic) pelo mundo afora. Aquela multinacional do refrigerante do rato morto começa a investir em áreas essenciais no futuro, como a água – um “bem” que será cada vez mais escasso no planeta. Já a mais famosa rede dos lanches rápidos, que vende hambúrgueres onde o que menos se encontra é a carne, passa a fazer um marketing de alimentação saudável e preocupação com o meio ambiente. Ironia dos novos tempos ou tragédia de desastres futuros previamente anunciados?
Propostas econômicas: conservadorismo e ortodoxia
Ora, a aproximação da Rede com esses setores do mundo das finanças não se dá sem compromissos. O movimento que gravita em torno de Marina passa a contar com economistas de peso dentre seus quadros ou então na condição de consultores especiais. São profissionais muito bem formados e competentes em suas áreas de atuação. O único detalhe é que estão todos orientados pela lógica da propriedade privada, são mercadistas em sua formulação e professam o liberalismo como paradigma basilar de suas propostas de política econômica. Simples assim: a simbiose entre ecologia e finanças.
Em 2010, a coisa já foi começando por esse caminho. Apesar de pouco debatido durante a campanha, o programa de política econômica de “Marina 43” não escondia em nada os traços dos economistas mais “prá-frentex” dentre os conservadores atuando em nossas terras. Os dois pontos centrais do item “Economia para uma sociedade sustentável” consistem nas propostas de dar continuidade ao programa de essência neoliberal, lançado pela gestão de FHC e continuado por Lula/Dilma. Em primeiro lugar, a orientação para manter a estrutura de sustentação da política macroeconômica, uma vez que as
“metas de inflação, responsabilidade fiscal e câmbio flutuante, administrando as políticas fiscal, monetária e cambial para garantir o equilíbrio interno e externo, são requisitos de um desenvolvimento sustentável”.(GN)
O único detalhe é que faltou explicar ao leitor de que maneira o tripé da política econômica - que apenas reduz, restringe e constrange - pode ser considerado como pré-condição para qualquer perspectiva desenvolvimentista.
Em seguida, o documento se encaminha pelas trilhas da redução dos gastos públicos, em função da dimensão do grau de endividamento público do país. Ao identificarem corretamente que há uma enorme lacuna na capacidade de investimento do Estado brasileiro, os autores sugerem que o equilíbrio seja buscado por meio da redução das despesas correntes, ou seja, em saúde, educação, previdência social, pessoal e similares. Portanto, nenhuma linha a respeito do peso das despesas com a carga financeira e com o pagamento de juros da dívida. O texto é duro na proposição: crescer os gastos a um ritmo de somente 50% do crescimento da economia. Nem Malan ou Palocci ousaram tanto assim, enquanto estiveram à frente do Ministério da Fazenda. Vejamos aqui:
“Por isso, é fundamental conter o crescimento dos gastos públicos correntes à metade do crescimento do PIB.”
Passadas as eleições, Marina rompe politicamente com o PV e vai construir sua própria via, a Rede. Sua forma de intervenção continua carregada de charme e setores do financismo começam a depositar suas fichas também nessa alternativa.
Nomes importantes do empresariado mantêm seu apoio, como Guilherme Leal (vice na chapa em 2010) da Natura e Roberto Klabin, do grupo da conhecida família. E a ponte com o mundo das finanças se consolida com o apoio de Maria Alice Setúbal, uma das herdeiras do Banco Itaú. A flexibilização para a “realpolitik” vai mesmo até o ponto da aceitação de doações de recursos por parte de empreiteiras.
As novas companhias: boas intenções, empresas e bancos
Com essa estrutura e a carência evidente de uma base de formulação de economia política em seus quadros, a Rede passa a reproduzir as falas e as visões dos economistas formados na ortodoxia e no monetarismo liberal. São eles que passam a dar a linha para as intervenções de Marina no debate econômico. Os antigos apoiadores do projeto tucano de poder processam uma mudança de rota em pleno vôo e se convertem ao projeto marineiro. E nesse caso, pouco importará que o programa oficial do agrupamento que busca seu registro no TSE ainda guarde algumas tinturas de um ambientalismo autêntico. Vejamos aqui o que ainda pode ser encontrado no Manifesto da Rede:
“mudanças no modelo econômico para a construção de um projeto de desenvolvimento socialmente includente e ambientalmente sustentável”, incluindo “valorização do nosso patrimônio socioambiental, viabilizando a transição para uma economia sustentável”; “taxas de juros em patamares que induzam os investimentos produtivos nos setores vitais para o desenvolvimento sustentável do País”; “diversificação da matriz energética em busca de uma matriz limpa e segura”; “democratização do acesso à terra e uma política agropecuária que recupere a função estratégica do setor para a segurança alimentar, melhoria da qualidade de vida da população e preservação dos nossos biomas”.
Ocorre que essas belas intenções programáticas acima descritas não resistem ao menor encontro de Marina com representantes da nata do PIB e do financismo. Tanto que o discurso da candidata passa se afinar precisamente às orientações sugeridas por figuras como André Lara Resende e Armínio Fraga. São antigos integrantes do primeiro escalão do governo FHC na esfera econômica e que, atualmente, se dedicam a cuidar com muito zelo e carinho dos interesses de seus próprios bancos e do patrimônio de seus clientes.
Projeto da Rede: “ressignificado” pelo financismo?
Com isso, o sonho ambientalista se converte pouco a pouco em uma espécie de “monetário-ecologismo”, ao passo que a utopia de preservação da natureza começa a ganhar a coloração de um projeto “sonhático-financista”. Ora, é mais do que evidente a existência de profundas contradições intrínsecas entre o mundo empresarial tupiniquim e qualquer tipo de preocupação relacionada com o tema da sustentabilidade. Seja pelo enfoque ambiental, econômico ou social. Nossa tradição é ainda marcada pelo espírito herdado do neo-colonialismo: espoliação radical dos recursos e apropriação do máximo de renda/riqueza no curto prazo. Quando essa abordagem se encontra com os interesses do financismo, aí então é que ninguém segura a onda devastadora.
Esse é o contexto em que se explica a performance de Marina em reunião fechada, realizada há poucos dias com representantes do mundo dos negócios. Ela teria criticado o governo pela frouxidão na condução da economia. Assim, reforçou a necessidade de retomar a essência ortodoxa da política econômica vigente desde os tempos de FHC e que recebeu a continuidade sob Lula e Dilma. Foi explícita em clamar pela vigência inflexível do famigerado tripé da política econômica.
Em termos concretos, isso significa os seguintes pontos: i) maior rigor na obtenção do superávit primário, ainda que isso signifique menos recursos do orçamento para gastos nas áreas sociais; ii) maior liberdade na política cambial, apesar de que a valorização de nossa moeda traga consiga a desindustrialização e o desemprego; iii) controle severo da meta de inflação no seu centro, não importando que isso implique uma política de juros oficiais estratosféricos.
Ao que tudo indica, Marina já fez sua opção. Entre o sonho ambientalista e o pesadelo financista, busca arriscar um equilíbrio impossível de harmonizar. As primeiras perdas virão à medida que o desenho das alianças comece a ganhar seus verdadeiros contornos. As expectativas da galera altermundista, dos ecologistas autênticos e dos marineiros de primeira hora com certeza serão profundamente desapontadas. Afinal, tudo parece indicar que a combinação inicial era de outra natureza.
(*) Doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.
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