A fácil escolha entre risco de erro e garantia de liberdade
A possibilidade de proibir obras com "fins comerciais" poderia autorizar a censura até a determinadas edições da Bíblia
Paulo Moreira Leite, em seu blogue
Num país que não admite censura prévia, o pleito de artistas prestigiados para manter uma legislação que garante seu controle sobre a publicação de biografias não faz sentido.
A proibição tem base a lei 10.406, de 2002, que reúne artigos inaceitáveis. Ali se afirma que a“ exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais”.
Sancionadas por Fernando Henrique Cardoso, que perdeu uma ótima oportunidade de vetar artigos que comprometiam um direito fundamental, as provisões da legislação são arcaicas, incompatíveis com uma Constituição que assegura a liberdade de expressão em termos absolutos.
Desse ponto de vista, a simples proibição de uma obra é um ato abusivo, e é espantoso que tenha sido aprovada apenas quatorze anos depois da promulgação da mais democrática constituição de nossa história. Mas não é só.
Numa sociedade na qual todo mundo já reconhece que “não existe almoço grátis”, a possibilidade de se proibir obras quando elas se “destinarem a fins comerciais” poderia autorizar a censura até a determinadas edições da Bíblia, não é mesmo?
Ao buscar refúgio em determinações de alta subjetividade, como é inevitável em toda tentativa de regulamentar o que é apenas arbitrário, uma legislação que prevê a punição em nome da “boa fama”, ou da “respeitabilidade” foi capaz de alimentar decisões vergonhosas.
A falta de “respeitabilidade”, categoria típica de uma sociedade convencional, certamente auxiliou na proibição da ótima biografia de João Máximo e Carlos Didier sobre Noel Rosa, o mais lendário boêmio brasileiro.
A proteção à “boa fama”, em si uma definição aberta a todo tipo de preconceito e discriminação, contribuiu para que saísse de circulação uma biografia, de autoria de um juiz de Direito, que sustentava que o cangaceiro Lampião era homossexual.
Num país onde proliferam biografias autorizadas, e mesmo textos escritos sob encomenda, pagos a peso de muito ouro, destinado a comprar submissão de autores e promover formas variadas de culto a personalidade, a liberdade para apurar e investigar a história de uma pessoa é um exercício único, precioso – e sem preço.
Na vida real, contudo, este argumento está longe de esgotar a discussão. Nem tudo é folclore.
Vamos pegar, por exemplo, a biografia Dirceu, de Otavio Cabral. Vamos deixar de lado, por um momento, a incrível quantidade de erros factuais do livro, acima de qualquer padrão de qualidade aceitável.
Não há motivo para questionar a direito de um autor a defender sua opinião sobre protagonista de sua obra, aceitando-se que empregue todas as armas a seu alcance para sustentar o ponto de vista.
O fato é que “Dirceu” tem um aspecto condenável, a perversidade.
O livro se utiliza da liberdade de expressão – que inclui naturalmente o direito de dizer besteiras – para construir um retrato sob medida para atacar a honra e a integridade do personagem principal.
A obra manipula fatos e boatos e escolhe sempre a possibilidade mais escabrosa e infame.
Quando não consegue sustentar o que diz, toma o cuidado de avisar o leitor de que não pode demonstrar o que escreveu mas publica mesmo assim.
É uma forma conveniente de publicar o que desconhece e, ao mesmo tempo, prevenir um eventual processo na Justiça. É difícil encontrar um nome digno para definir esse comportamento, concorda?
O mais curioso, para o debate sobre as biografias, é que, diante de falhas tão óbvias, seria razoável esperar um pedido de desculpas, se não por parte do autor, ao mesmo por parte do editor. Errado. O editor descartou erros como faltas menores.
Há grandes biografias em circulação no Brasil de hoje. Ruy Castro fez uma belíssima história de Garrincha, que ficou injustamente impedida de circular até que ele entrasse em acordo com a família. Mas é um trabalho de valor cultural inegável. O Brasil ficou maior graças a esta obra. Ampliou a compreensão de si mesmo e sobre um de seus filhos mais ilustres e mais trágicos.
Herdeira dessa tragédia, a família cobrou uma recompensa – equivalente a 5% sobre os direitos autorais -- para liberar o livro de Ruy Castro. Confesso que não sei o que dizer num mundo de verdades precificadas.
Nos EUA, os descendentes de uma senhora que deixou um DNA altamente empregado em pesquisas sobre câncer recebem direitos de herança toda vez que os laboratórios decidem estudá-lo em pesquisas.
Quando disse “não concordo com nada do que dizeis mas defenderei até a morte o direito de fazê-lo”, numa afirmação que se tornou um dos pilares da democracia moderna, Voltaire não estava se referindo a pistoleiros de reputações. Debatia ideias.
Cidadão do iluminismo, numa sociedade ainda aristocrática, ele tentava mostrar aos homens e mulheres que a liberdade de expressar o pensamento era uma arma essencial para combater o absolutismo, verdade que permanece atual até hoje.
Mas como se pode “discordar” diante de uma calúnia? O que “se faz “ com uma difamação em palavras impressas? Como se “reage” a uma mentira depois que ela já foi publicada?
Com a naturalidade daqueles que acreditam que nunca serão colocados no lado desagradável do guichê, a maioria dos autores reage com uma resposta automática: os insatisfeitos só precisam recorrer a justiça, dizem, numa frase de efeito que mal consegue salvar poucas aparências.
Para as vítimas de uma mentira, de uma denuncia falsa, uma história mal apurada, equivale a recomendar ao cidadão de quem amputaram a perna errada que telefone para o SAC de seu plano de saúde.
Outro argumento envolve o direito à privacidade de cada um. É uma área difícil, onde cabe aquela definição clássica da Suprema Corte norte-americana, numa decisão em que era obrigada a deliberar sobre pornografia e erotismo. Após um debate sobre os diversos lados da questão, um dos ministros concluiu que não era capaz de definir a diferença entre pornografia e erotismo mas sabia “distinguir muito bem quando via uma coisa e outra."
É sempre complicado definir a fronteira entre o interesse público e a privacidade, mas ela existe e deve ser respeitada.
Acho absurdo dizer que personalidades públicas não tem direito a privacidade. Essa visão equivale a instituir uma ditadura de show biz sobre a vida social, ignorando que a Constituição garante a todo cidadão o direito a imagem e honra.
O exercício de uma função pública não pode ser punido com a privação da privacidade das pessoas, que constitui uma forma essencial de liberdade no interior de uma sociedade como a nossa.
E no entanto é errado proibir.
E no entanto é errado proibir.
A experiência ensina que os bons princípios são aqueles que contrariam nossos interesses.
Parte do poder anormal que a indústria cultural adquiriu no interior da sociedade brasileira, o prestígio de artistas para combater biografias não-autorizadas não pode servir de instrumento para a preservação de privilégios. Seu poder de influência social e política explica o tratamento especial que recebem por parte dos poderes públicos.
O que é preciso é garantir formas eficazes de reparação, capazes de prevenir o erro sem inibir uma atividade necessária e enriquecedora para o país.
Entre o risco de falha e a garantia de liberdade, é muito fácil fazer a escolha certa.
Este é o debate.
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