07 novembro 2012

SOCIEDADE

Reflexões à beira do caos


Jacques Gruman




Veio de uma fabriqueta inglesa, alguns anos depois do fim da guerra. Depois de rodar muito, o Morris Oxford, modelo 1949, foi parar nas mãos do Pai. A ignição precisava de braço forte, pegava mais no tranco e na paciência. Rogar praga às vezes ajudava. Para emergências, o carrinho ainda tinha uma tosca manivela, parecida com as dos modelos antigos de telefone magnético. Mignon, levou o Pai diariamente para a Baixada Fluminense e a mim, uma poucas e gloriosas vezes, para o colégio. Antes do atestado de óbito mecânico, levou-nos ao que hoje, embaçado pelo tempo, parece um episódio da série Além da Imaginação. De uma Tijuca parada no tempo, desembarcamos num restaurante de beira de estrada, para comer ... frango assado ! Viajar quilômetros para traçar uma penosa só mesmo na cabeça do Rod Serling ou no bolso vazio de uma família balançando no fio da navalha. E o bravo Morris não pifou.

Naqueles remotos anos 60, o Rio tinha, claro, engarrafamentos. Não por excesso de carros, mas, principalmente, pelo crescimento desorganizado da cidade e pela competição caótica dos veículos particulares com ônibus, lotações e a malha dos bondes. Lotações (isso é pra turma com mais de 50 anos) de triste memória. Os motoristas tinham fama de psicopatas, eram recordistas de acidentes. Carlos Estevão, pouco lembrado desenhista e criador do eterno doutor Macarra, ironizou a situação, desenhando um motorista de lotação marcando na lataria uma fila de crânios. Como nos aviões de caça da Segunda Guerra Mundial, representavam as vítimas da viatura. A indústria automotiva nacional engatinhava, a classe média andava em carros importados em doses homeopáticas. Nas ruas internas havia, modo geral, pouco movimento.

Em meio século, Rio e São Paulo sucatearam ferrovias, implementaram um transporte público de péssima qualidade e tornaram-se reféns dos veículos particulares. O desenho das cidades e seu planejamento urbano giram em torno deles. Carros deixaram de ter valor meramente utilitário e se transformaram, à semelhança dos países ricos, em sinal de status e superioridade social (o que, no Brasil, equivale a ter privilégios e imunidades). A cada feriadão, mais de 1,5 milhão de carros saem de São Paulo, massa metálica neurotizante e irracional. No Rio, 1,1 milhão de veículos saem das garagens todos os dias, 25% a mais do que há dez anos. É um modelo suicida, que consagra o individualismo e vem sendo nutrido, sem interrupção, há décadas.

Nos últimos tempos, é comum o governo incentivar o setor automobilístico, concedendo-lhe isenções fiscais. Desde 2008, quando começou a crise financeira internacional, o governo brasileiro abriu mão de R$ 26 bilhões em impostos para essa indústria. Para cada emprego com carteira assinada gerado pelas montadoras, o custo em renúncia fiscal para os cofres públicos foi de R$ 1 milhão. Como nenhuma delas tem capital nacional, o implemento nas vendas estimulado pelas autoridades econômicas resultou numa remessa de lucros de US$ 14,6 bilhões para o exterior nos últimos 3,5 anos. Esses são os números por trás dos sorrisos de executivos e políticos. Executivos que exultam com a perspectiva de que o Brasil pode chegar em 2016 como terceiro maior mercado automobilístico do planeta.

Ano passado, mais de 3,6 milhões de veículos foram despejados nas ruas e estradas brasileiras. No tempo que você leva para ler essas mal traçadas, mais de 100 veículos novos ajudaram a reduzir a mobilidade nas grandes cidades, agravaram o efeito estufa e enriqueceram as multinacionais que aqui chegam sob fogos de artifício e vantagens gerais.

Não consigo aderir a esse ufanismo cego e regressivo. Administrações supostamente progressistas apenas reproduzem a receita industrial dos países centrais, cuja dependência de combustíveis fósseis levou a uma história de intervenções, guerras coloniais, assassinatos, violência. O imperialismo retardará, enquanto puder, o uso intensivo de fontes de energia renováveis. A extração de mais-valia da indústria do petróleo está longe de acabar. Enquanto isso, as metrópoles são cada vez mais parecidas a caldeirões em transe, prestes a parar. Estudos recentes mostram que o trânsito do Rio tende a ficar muito parecido com o de São Paulo num prazo de cinco anos. Cariocas, tremei ! Vem aí os engarrafamentos monumentais, com gente cada vez mais irritada, sangue nos olhos, vida escorrendo pelo asfalto.

A burguesia não está nem aí. Poluição, engarrafamento, doenças mentais ? Não dá para ir por baixo, ora, vamos por cima. Um desenho muito popular nos anos 60 era Os Jetsons. Visão romântica de como seria o mundo depois do ano 2000. Imaginava-se, por exemplo, que o transporte seria feito por uma espécie de mini-disco-voador. Nas alturas. Não chegamos a isso, mas São Paulo, por exemplo, tem a maior frota de helicópteros urbanos particulares do mundo. Supera Nova Iorque e Tóquio. Bem acima da gentalha, que sua nos ônibus, trens e vans, da classe média que se endivida para realizar um sonho alimentado pela mídia e incentivado pela irresponsabilidade dos demagogos. Nizan Guanaes, um craque da publicidade, disse que “a Revolução no Brasil não acontece com os cidadãos pegando em armas, mas pegando em cartões de crédito”.

Observou que a nova geração de consumidores quer “produtos excitantes, de maior encantamento”. Ele é do ramo. Sabe como aumentar essa excitação e inventar/explorar encantamentos. Ilha da fantasia, que engorda os cofres dos espertalhões. Até quando?

Outro dia ouvi uma pequena entrevista do Nelson Freire. Grande figura. Comentou que, numa das homenagens que recebeu na sua Boa Esperança natal, encontrou uma tia, a quem não via fazia tempo. Pessoa simples, ela se queixou do genial pianista. “Poxa vida, você só vem aqui para tocar. Deixa isso de lado, sô ! Vá lá p’ro sítio pescar, andar de cavalo, comer jaboticaba”. Nelson riu, mas fez um silêncio revelador. Como ele gostaria de aceitar o convite da tia ... Não estou sugerindo uma volta ao Jeca Tatu, à ilusão da paz rural, à casa no campo. O tempo não para (desculpe o plágio, Cazuza), mas também não quero o futuro repetindo o passado (desculpe novamente, Cazuza). As revoluções tecnológicas trouxeram enormes benefícios para uma parte da Humanidade. Entretanto, seguindo a lógica implacável do capitalismo, cobram pedágio. No limite, tornarão inviável a vida na Terra. É isso que queremos ?

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.


Fonte: Agência Carta Maior


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