13 abril 2011

TRAGÉDIA EM REALENGO

Estou por demais mexida para escrever com propriedade. Mas a palavra, escrita ou falada, tem sido a minha vida. Não posso fugir à minha sina. Ademais, traçar linhas, mal ou bem, baixa a pressão da alma, alivia o espírito. Assim como cantar e dançar espanta os males, afugenta o cramunhão da amargura, da tristeza que sufoca e anestesia.

Só que hoje, 7 de abril de 2011 – Dia Nacional dos Jornalistas, os amigos que me perdoem – é impossível cantar ou dançar, muito menos comemorar. Resta-me escrever.

A notícia da chacina na escola de Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, me chegou em meio ao café da manhã; e ao último telejornal matutino. Eu, que mal ligo a TV – desde que acompanhar o noticiário deixou de ser obrigação profissional -, passei o dia agarrada ao sofá, zapeando as principais emissoras. Olhos e ouvidos incrédulos, atentos, derramados.

Chorei o dia inteiro.

Não há limite para a natureza humana quando ela se aproxima da animalidade.

Sou cada uma das mães e dos pais, irmãs e irmãos, avós e avôs, tias e tios, amigos que se salvaram, de cada uma das crianças vitimadas.

Tenho filha ainda adolescente. Tenho um casal de netos e mais uma sobrinha, todos na faixa de idade, e no período escolar, das crianças-adolescentes escolhidas pelas balas certeiras do desespero. Na cabeça, no tórax e no abdômen. Inconsciente!?

Doze “brasileirinhos”, que tiveram a vida abreviada, como bem lembrou a presidenta Dilma, que também é mãe e avó. E que, por isso, chorou.

Meninas em sua absoluta maioria: dez. Maioria também dentre as dezenas de feridos, dos quais onze permanecem internados, quatro dos quais em estado grave. É o que diz o noticiário da noite.

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Por que meninas-alvos-preferenciais!? O algoz não pode mais responder. Suicidou-se, ao que consta. Barrado em sua regência macabra – por um soldado, destemido ou solidário, que lhe atirou nas pernas. Buscou o beneplácito da morte.

O sargento Alves, travestido em herói, e mais dois colegas foram trazidos por crianças feridas, mas corajosas e determinadas. Instadas pela professora, abençoada, fugiram. Escaparam à fúria assassina. Pediram socorro a uma guarnição militar, em trabalho na redondeza.

Do contrário, Wellington Menezes de Oliveira, um jovem de 23-24 anos, ex-aluno da escola, reservado e sem antecedentes criminais, teria levado outras dezenas de vidas com ele. Tinha munição para muito mais terror.

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Por que alguém invade um escola para matar inocentes? O que o motiva?

Wellington planejou, se armou, treinou, se abasteceu. Esperou o momento certo. Sabia que não seria barrado na confraternização dos 40 anos da escola. Antes de matar, destruiu as provas da premeditação. E escreveu uma carta-testamento. Nela, prevê a própria morte, dá instrução para o funeral; e pede que “os puros” orem para que ele renasça no perdão de Deus.

Louco, obsecado ou reprimido em surto psicótico? Como lidar com isso?

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Chacinas ocorrem no Brasil todos os dias. Nossas metrópoles, de há muito, vivem em guerra civil. Crianças e jovens morrem, cotidianamente, esmagados pela violência urbana. Flagelo de séculos de desigualdade, agregada ao flagelo do tráfico e das drogas, que avançam rumo ao interior e levam nosso futuro. Sempre os mesmos: a maior parte meninos, pobres e negros.

Há ocorrências de rixas entre alunos, de agressões e, até, morte de professores – como aconteceu numa faculdade de Belo Horizonte, em dezembro último. Nada que se compare ao que ocorreu na Escola Municipal Tasso da Silveira.

Massacres no território sagrado da escola, lugar de comunhão de ideias e troca de experiências, de construção de universos próprios e coletivos, são comuns nos Estados Unidos, de cultura armamentista. Em alguns países da Europa e, recentemente, na Ásia, também se registram casos.

No Brasil, que em plebiscito nacional recusou o desarmamento da população, é a primeira vez. Entramos de vez no labirinto da estupidez e da barbárie?



* Sulamita Esteliam é jornalista e escritoraa. Autora dos livros Estação Ferrugem, romance-reportagem que resgata a história da região operária de Belo Horizonte-Contagem, Vozes, 1998; Em Nome da Filha – A História de Mônica e Gercina, sobre violência contra mulher em Pernambuco; e o infantil Para que Serve Um Irmão, os dois últimos ainda inéditos. http://www.atalmineira.wordpress.com //sulamitaesteliam@hotmail.com


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Tiros em Realengo: perguntas, mortos e
feridos




Washington Araújo
Publicado originalmente no Observatório da Imprensa




Manhã do dia 7 de abril de 2011, uma quinta-feira como outra qualquer na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, Zona Oeste do Rio. Passos apressados levam Wellington Menezes de Oliveira, um ex-aluno de 24 anos, a entrar por volta das 8h20m na sala de aula nº 4 do 2º andar dizendo que vai fazer uma palestra. Coloca a bolsa em cima da mesa da professora, saca dois revólveres e dá início a um massacre em escola sem precedentes na História do Brasil. Nos minutos seguintes, a atrocidade deixa 12 adolescentes mortos e 12 feridos.

As 96 palavras que escrevi no parágrafo acima fazem uso de 444 caracteres sem espaço para contar que foram assassinados 12 jovens em Realengo e feridos 190 milhões de brasileiros. O resto da história ficará estampado nos telejornais e nos programas de auditório da televisão. Continuará pendurado nos portais noticiosos e também nos blogues da internet. E será recitado por apresentadores e comentaristas de rádio do Brasil.

Saímos da tragédia para investir com armamento pesado na repercussão. Em um primeiro momento a corrida pela emoção nublava de vez qualquer iniciativa de investigação jornalística. Não importa sabermos que a “objetividade” deve ser perseguida a todo custo, em casos como o de Realengo a própria objetividade se encontra presa de pesares e aflições indizíveis. Havia 10 caminhos a percorrer:

1. Testemunhos dos alunos sobreviventes;

2. Testemunhos do policial militar que cumpriu a missão de sua vida: interromper o massacre matando o autor;

3. Testemunho passivo das câmeras de vigilância da Escola colocadas no corredor do 2º andar;

4. Testemunhos dos pais e parentes das jovens vítimas e também das que se encontram em tratamento intensivo nos hospitais cariocas e testemunhos da professora e de outros funcionários da Escola Municipal Tasso da Silveira;

5. Carta do assassino: sinais de distúrbio mental, sociopatia, fundamentalismo religioso, provável vítima de bullying, angústia sexual;

6. Visita exploratória à casa do assassino: tudo destruído, computador quebrado e destruído por fogo e depoimentos de familiares, vizinhos e conhecidos do alucinado Wellington Menezes de Oliveira;

7. Depoimentos de psicólogos sobre como tratar os sobreviventes da chacina e familiares das vítimas;

8. Depoimentos de defensores da tese do Desarmamento Total com convocação de novo plebiscito;

9. Depoimentos da presidenta Dilma Rousseff, do governador Sergio Cabral e do prefeito Eduardo Paes e decretação de luto oficial por três dias no país, no estado e na cidade do Rio de Janeiro;

10. Homenagens às vítimas nos campos de futebol (minuto de silêncio antes do início de vários jogos pelo Campeonato Brasileiro de Futebol; camisas de jogadores trazendo o nome de cada criança assassinada; balões brancos carregando seus nomes e cobrindo as torcidas; Bono Vox do U2 em show no Morumbi, em São Paulo, pedindo desarmamento e telão passando os nomes das 12 vítimas).

Todos sabem que a diferença entre o veneno e o remédio está na dose com que é ministrado. Observamos uma espécie de campeonato midiático-macabro a reportar o ocorrido em Realengo: cada veículo de comunicação desejava explorar algo ainda não explorado, mostrar todas as cores de sua indignação. É por isso que o Jornal Nacional (Globo) avisou logo: “Trazemos hoje uma edição especial”. Especial porque Fátima Bernardes fez dobradinha com o marido-apresentador do JN William Bonner diretamente da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo. É fato que, em menos de 24 horas, a tragédia de Realengo ganhou verbete na Wikipédia e já no começo da tarde da sexta-feira, 8, no Twitter, as hashtags #realengo e #tragedianorio lideravam a lista de trending topics do Brasil.

Pequenas testemunhas
As principais protagonistas da tragédia foram as crianças (pré-jovens?) sobreviventes. Elas foram “obrigadas” a contar uma a uma o que viram e o que sentiram e também o que pretendiam fazer no futuro. O (ab)uso dessas pequenas vítimas, sempre de forma tão intensa e tão desrespeitosa para com a dor que deviam estar sentindo era de estraçalhar o coração de qualquer um. Quase todos os repórteres pareciam abdicar, logo de partida, qualquer sentimento de sincera solidariedade pelo trauma que ainda estavam vivendo. Seus olhos eram nervosos, as lágrimas que tinham eram logo contidas por uma nova pergunta. Eu me perguntava: “Meu Deus, será que não existe nada no tão celebrado ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que possa proteger as crianças vítimas de violência da sanha predatória de nossa imprensa?” Ainda posso tentar lembrar o tipo de inquirição que elas, uma a uma, tinham que passar:

** A tia mandou que a gente corresse.

** O que eu fiz? Eu corri para ele não me matar antes. Corri, fiz só isso: corri para me salvar.

** O que você sentiu quando o assassino olhou para você?

** Ele me disse: fique quieto gordinho que você não vai morrer.

** Então vi minha amiga Laryssa com um tiro na testa e outro no peito.

** Saí correndo e vi uma menina caída na escada, ainda ajudei um pouco e depois corri.

** Se quero voltar à escola? Não, não quero mais. Se só não quero mais estudar nesta escola? Sim, nesta não.

* Ele me olhou com a cara assim como se estivesse rindo e começou a disparar. Meu amigo foi o primeiro que caiu.

* O que senti naquele momento?

Continuo pensando que os profissionais de imprensa, principalmente os que trabalham para emissoras de tevê, deveriam fazer algum curso para saber se portar com um mínimo de decência, um pouco que fosse de humanidade em uma situação como essa da escola em Realengo. Não preciso fazer cinco anos de faculdade de psicologia para compreender que situação tendo um franco atirador em sala de aula é mais que suficiente para gerar trauma profundo. E sei que ser induzido a desabafar suas emoções ao vivo e em cores, para todo o Brasil, em um, dois ou três diferentes telejornais certamente não faz parte de nenhum curso de primeiros socorros psicológicos para vítimas testemunhais de pesada violência.

Queremos apelar? Vamos lá, então. Se fosse a escola onde estudassem os filhos dos editores, dos apresentadores de telejornais, dos donos de revistas, das repórteres mais reconhecidas por seu talento e profissionalismo... será que seus filhos seriam obrigados a passar por todo aquele batalhão com agendas claramente inquisitoriais? Sei que a resposta é não. Não faltaria quem lhes dissesse algo como: “Não, minha filha não vai dar entrevista coisa nenhuma. Nem vem que não tem. O que ela precisa agora é de descanso, uma viagem, esquecer tudo isso e não lembrar tudo isso!”

E que ninguém tenha dúvida: seriam imediatamente atendidos.

 
Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela
UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil,
Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org
Email - wlaraujo9@gmail.com


(Matérias transcritas do site http://www.cartamaior.com.br/)

 




 

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