Por ENIO SQUEFF
É difícil, em tempos de eleições, manter a boca fechada - ou se isolar na consideração de que o futuro diz mais que o presente, em que afloram paixões; e as opiniões são sempre as de um partido, seja qual for. No tempo da ditadura - a qual ainda não nos desvinculamos, na medida em que, o que é do governo confunde-se amiúde com o que é do estado - e vice-versa - era comum se deparar com o dilema posto por Graciliano Ramos, na boca de Fabiano: "governo é governo" diz o capiau. no "Vida Secas", diante do soldado inerme, convencido de que vai morrer. Como se sabe, Fabiano desiste de justiçar o soldado. O Governo é o Estado e o Estado é o Governo. Este, na verdade, o drama a que agora junta-se uma espécie de cruzada - de novo - santa. Eis que para ser vencida, Dilma deve ser demonizada. O contraponto seria o mesmo do personagem de Graciliano : uma vez que tenhamos uma presidenta, o governo poderá tudo. "Matar criancinhas" como se dizia dos comunistas, nos idos de 64, é um tema recorrente. Vale para todos os tempos e contextos.
Talvez o espanto seja exatamente o efeito da propaganda. Não bastou que Dilma Rousseff tivesse ultrapassado a barra dos 12 anos, a trabalhar para diferentes governos - do Rio Grande a Brasília. O temor orquestrado de que há um espectro a dirigi-la, faria dela o monstro da vez. De novo, como nos idos de 64.
O espanto, porém, não cessa, mesmo porque a sua essência - a demonização - parece arrostar tudo, a começar pelo arcabouço intelectual, aparentemente infenso a bruxarias, superstições - à propaganda em suma. Fala-se de certos setores intelectuais acoitados tanto nas universidades quanto nessas academias virtuais, digamos, ou seja, os "poetas e escritores oficiais", os cronistas devidamente encastelados nas colunas de jornais; e que, ao contrário do que nos induziu o Iluminismo desde o século XVIII, lembram o quanto um artista, Francisco de Goya Y Lucientes foi profético ao intitular uma de suas gravuras "O pesadelo da Razão", ou como ele mesmo escreveu:"El sueño de la razón produce monstros". Nela um homem vestido a caráter ou o que quer que se considere como tal, é assombrado por uma plêiade de criaturas muito bem caracterizadas em seu sentido simbólico: as corujas - paráfrases da sabedoria que vê através das trevas, e os morcegos - vampiros, a esvoaçarem, a suscitarem a pergunta - onde o bem? e , enfim, um gato. Cabe a ele talvez a parte mais contundente do mau sonho da razão: os gatos são individualistas, solertes (nada contra os bichanos reais, por favor), mas, por isso, a sua associação com as bruxas.
O que se quer dizer, com isso, é óbvio: o mesmo professor de sociologia e política que pontifica suas opiniões a favor do inverídico - que o atual governo engana por ter uma popularidade feita não de propaganda na imprensa - muito antes pelo contrário, como se sabe - mas de apoio da população (ela está comendo, vejam que alienação) - certamente fará o que eles próprios fazem - que é a instrumentação do governo - como se Estado e Governo fossem a mesma coisa. E que em face disso - já que eles acreditam nas mentiras que eles próprios inventam - a mistificação e a retórica continuarão impávidas nos programas televisivos de sempre, aqueles que carregam os "status" da USP, da Unicamp, da PUC, sabe-se lá, e em que o professores devidamente selecionados, de história, de sociologia e filosofia, enfeitarão seus discursos com o palavrório de sempre, harmonizados pelo ar inteligente do entrevistador. Nada de novo, no ar, diz-se-ia; e nem mesmo "os aviões de carreira".
Mas há muita coisa de novo, sim: a cizânia do mundo intelectual brasileiro nunca foi tão clara, desde que quase todos nos juntamos contra a Ditadura em seus atos mais façanhudos. Mas que não foi capaz de projetar um futuro sem discriminações, preconceitos, ou pior - a tentação fáustica das luzes da ribalta. Pois é disso que se trata agora: uma vez que o velho poeta não tem vez fora dos estritos muros da academia real e da virtual - essa, montada pelos jornalões - cabe-lhe agora o papel de contestador perfumado - aquele que faz sucesso nos salões da moda, onde pontificam o "dernier cri" não só da "jeunesse", digamos, mas principalmente da "vieillesse doré".
Nisso tudo há a atração pelo incrível charme da burguesia. E é então que a sra. Dilma Yousseff vira tudo o que há de ruim, ou como sugeriu uma jornalista, tudo que há de mal cheiroso. Por isso, como antídoto, surge uma disponibilidade incrível de discursos demonizantes. Pois há o argumento da razão acadêmica: ele não pode admitir que genialidade nasça fora das muralhas do saber instituído. Se todos os caminhos da suposta "inteligentsia" levam irreversivelmente à Universidade - como admitir o espírito independente, que não se abebera das teses, do palavrório impositivo do mestre laureado, encastelado na razão - ainda que a do pesadelo de Goya?
Diga-se a propósito, que ninguém associa o douto médico, de Molière nas suas "preciosas ridicularias" aos artigos pernósticos e vazios dos licenciados da Sorbonne, de Harward, da USP ou de Salamanca ( para lembrar o Dom Quixote): eles buscam e rebuscam qualquer resquício de pelo em ovo, tudo para manter o espaço sempre bem vindo, desde que invariavelmente confirme o editorial do jornalão. Fecha-se o ciclo: como o jornal tem poder de opinar "oficialmente" na "academia virtual" da mídia, o articulista logo aparece a seus pares, como uma "avis rara", o mestre, o sábio. A grande mídia confirma-o "ad saecula, saeculorum" na sua aura de grande homem.
No mais, há medo fingido, que, no entanto, todos deveras sentem. A matadora de criancinhas é apenas um mote - mais um - assim como os assusta o sujeito ignorantão que mal cursou o primário e que, no entanto, ora vejam, é até presidente da República: como lidar com um troço desses? Na impertinência popular da fórmula possível, inventam-se panfletos, histórias do arco-da-velha e então ressurge, impávida, a velha cocoróca da Ditadura: já que o Estado somos nós, os que governamos, temos que nos precatar de que eles serão o Estado, já que podem ser o Governo. É o que nos explica nesse vale-tudo pré-eleitoral.
Quando Goya desenhou a sua gravura, o Iluminismo experimentava o que então era o mais contraditório dos mundos: de um lado, Napoleão com as suas tropas a levar a bandeira da democracia para todos as nações que ele invadia, a matar quantos pudesse, para que ela, a democracia, por fim, se impusesse aos povos bestunto. De outro, porém, se instaurava a contradição: onde as razões do Iluminismo, se a mesma razão justificava tudo - inclusive os discursos eruditos e contrários a ela mesma?
Yevgeny Tarlé, historiador russo dos tempos de Stálin, que foi o grande biógrafo de Napoleão, assinalou que quem venceu os exércitos napoleônicas, não fora a Rússia, mas a Península Ibérica, vale dizer, a guerrilha e os exércitos da Espanha e de Portugal - dois países decadentes. Foi na Península que Napoleão teve de manter acantonado um exército de mais de 100 mil homens, com alguns dos mais competente de seus generais. Trocado em miúdos, para hoje: a razão - as boas razões do Iluminismo - afinal, na Península virou realmente um pesadelo como expôs Goya.
Não é seguramente o que estamos vivendo no Brasil - por aqui não temos qualquer guerra, senão a virtual e a da propaganda. Mas já se sabe que o próximo governo - se for da Dilma - terá contra si boa parte do mundo acadêmico, as razões dele - tanto das universidades quanto a da grande mídia. As idéias serão as de sempre: uma boa frase aqui - aquela de que os bebedores do bom uísque se rirão no Happy Hour, uma boutade acolá e sempre com aqueles ares de que a rua não sabe de nada, que quem conhece o mundo é quem o leu sobretudo nos discursos do poder.
O mais, é o terrorismo. Goya traduziu muito bem as loucuras da razão. Confirmaram um século antes o aforismo de Chesterton que dizia, do louco, ser aquele que perdeu tudo, menos a razão. Sobra, porém, o futuro e quem sabe, um governo minimamente decente - não propriamente aquele sonhado pelos intelectuais do sistema: esse sabem que o Estado só será deles se o governo lhes pertencer, como já aconteceu em tempos recentes.
Enio Squeff é artista plástico e jornalista.
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