Pedro Paulo Zahluth Bastos, na Revista CartaCapital (*)
Durante os protestos de junho, alguns cartazes pediam a revogação do direito de voto dos beneficiários do programa Bolsa Família. Tratava-se de um eco dos preconceitos veiculados nas redes sociais depois das eleições de 2010, segundo os quais Dilma só se elegera por causa dos votos das famílias beneficiárias, alegação fartamente desmontada por analistas eleitorais. É provável, contudo, que o BF tenha contribuído para a perda de influência de políticos que aproveitavam a dependência de eleitores extremamente pobres para formar clientelas com favores eventuais e personalizados, financiados com recursos públicos. O caráter universalista e regular do BF despersonifica o benefício e o transfere do registro da caridade pessoal para o campo da institucionalidade de Estado.
A desinformação não se restringe ao campo das paixões políticas. Empresários já manifestaram a opinião que o BF reduz a procura por empregos e dificulta a contratação, como se desconhecessem que o valor máximo do benefício é bem inferior ao salário mínimo e que quase metade dos beneficiários é de trabalhadores por conta própria. Alguns estudos mostram, ao contrário, que o BF tem um efeito muito positivo sobre o emprego ao animar mercados locais de bens e serviços de baixa renda. Também há indícios que o programa contribuiu para a redução da migração de regiões pobres para grandes cidades, mas o déficit de capacitação dos beneficiados não os permitiria disputar vagas oferecidas, por exemplo, pela indústria paulista caso forçados à migração.
As pesquisas sobre os aspectos macroeconômicos e macro políticos do BF não foram acompanhadas de estudos amplos sobre o cotidiano, a mentalidade, a subjetividade, as expectativas e mudanças de hábitos das mães de famílias beneficiadas. O livro Vozes do Bolsa Família – Autonomia, dinheiro e cidadania, de Walquiria Leão Rego, da Unicamp, e Alessandro Pinzani, da Universidade Federal de Santa Catarina, elimina essa lacuna e contribui para desmontar estereótipos formados a milhas de distância. O livro foi construído em refinada base de ciências sociais e filosofia política para guiar entrevistas com 150 beneficiárias, cuja vida nas regiões mais pobres do Nordeste foi acompanhada em alguns casos por seis anos.
Os autores partem da hipótese que os mitos que culpam o acaso ou os próprios pobres pela pobreza secular herdada legitimam a indiferença dos ricos e humilham os pobres até levá-los à resignação ou, mais raramente, à violência. No Brasil, o predomínio de uma visão liberal que culpa os pobres por sua pobreza tem raízes históricas profundas. Seus antecedentes são os estereótipos que taxaram homens livres e pobres como vagabundos depois da Abolição, e que estigmatizavam o escravo como preguiçoso, leniente, lascivo e que, portanto, só trabalharia sob a coerção mais absoluta.
A força dos estigmas produziu várias consequências políticas. Primeiro, vetou ou limitou políticas voltadas a reformar os arranjos estruturais que reproduzem a pobreza. Esses arranjos resultam da privação histórica do acesso à terra, à moradia e a oportunidades de capacitação política, econômica e educacional de grande maioria da população brasileira. Segundo, legitimou ações que mitigavam os efeitos da pobreza através da caridade, mantida no registro do favor a quem é culpado por seu próprio destino e, paradoxalmente, incapacitado de mudá-lo. Terceiro, emudeceu os pobres que internalizaram a imagem depreciativa e os colocou em situação de dependência pessoal do favor, enfraquecidos como sujeitos de direitos e incapacitados de mudar sua situação. Enfim, a ausência de reparação institucional, a carência de capacitações e a internalização da humilhação se reforçaram mutuamente para reproduzir a pobreza.
O BF, por sua vez, transfere o registro da pobreza (e sua atenuação) do campo da caridade pessoal para a esfera da responsabilidade institucional e do direito à cidadania substantiva, ou seja, parte do reconhecimento institucional de uma dívida social e inicia o processo de habilitação de cidadãos. É diferente do assistencialismo tradicional porque, primeiro, assegura regularmente o atendimento de necessidades básicas sem as quais qualquer direito à cidadania é puramente formal. Segundo, exige a contrapartida da frequência escolar e, de fato, reduz o trabalho infantil, a repetência e a baixa escolaridade nas famílias beneficiadas, um arranjo central da reprodução da pobreza e subcidadania. Terceiro, a transferência de dinheiro aumenta a responsabilidade individual e confere uma autonomia mínima antes desconhecida pelas mães beneficiárias.
Os autores partem da teoria de Georg Simmel a respeito do poder liberatório do controle do dinheiro sobre relações de dependência pessoal opressoras e para a construção de subjetividades autônomas. Todavia, rejeitam a proposta liberal que a transferência de renda monetária deva substituir e não complementar outras políticas sociais e de desenvolvimento regional, sem as quais o processo de habilitação de cidadãos não avançará. Sem escolas de qualidade, infraestruturas que aumentem o acesso a serviços públicos e apoio a atividades econômicas locais, as capacitações necessárias para a superação social da pobreza terão um desenvolvimento limitado. A luta das famílias por tudo isso, porém, era inviável enquanto se mantivessem em situação de extrema precariedade monetária. “Qualquer solução diferente da distribuição de uma renda monetária poderia ser classificada como assistencialista e até paternalista”, afirmam.
As entrevistas revelaram que a bolsa é a primeira experiência de renda regular para boa parte das beneficiárias. Essa experiência parece mudar a subjetividade e iniciar a superação da cultura da resignação com sua sina, da qual esperam subtrair os filhos. Para muitas famílias, simplesmente inaugura a experiência de planejamento do uso do dinheiro e de formação de economias para gastos maiores. Constatou-se enorme moralidade no planejamento do gasto, voltado à garantia da alimentação dos filhos, roupas e material escolar, porém complementando outras fontes de renda, com o tempo, até a compra de móveis e eletrodomésticos básicos. O desperdício com cachaça é um mito conveniente.
Os autores defendem que a ampliação dos direitos de cidadania seria reforçada se as prefeituras não se limitassem a cadastrar as beneficiárias mas criassem canais de interlocução e controle social do programa. Afinal, o BF não assegura nem a solução do problema da pobreza nem a formação de uma cultura de cidadania ativa, embora seja o primeiro passo indispensável para ambas. Seu principal efeito, argumentam, não é o de superar o círculo vicioso da pobreza, mas iniciar um círculo virtuoso dos direitos, em que a expansão de um direito dá origem a reivindicações por outros direitos, em uma luta pelo reconhecimento da legitimidade de novas expectativas. Se estiverem certos, os filhos das famílias beneficiárias não apenas terão mais capacitações que os pais para cruzar as portas de saída do programa. Nos protestos de rua e de campo no futuro, portarão os cartazes que os pais estiveram incapacitados de escrever.
*É professor do Instituto de Economia da Unicamp
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