17 janeiro 2012

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Os artigos abaixo tocam em assuntos que estão em destaque, de alguma forma, nas
mídias de todo tipo.
O escândalo BBB, e a ausência de um marco regulatório da mídia.
A atuação do Judiciário na vida política brasileira.
E, por fim, a atuação do governo paulista no combate ao "crack" , que está sendo
contestada por várias entidades, personalidades, jornalistas de responsabilidade e
autoridades no assunto drogas ilícitas. Que é um problema mundial.










Sem novo marco da mídia, 'caso BBB' só está ao alcance da Justiça

Suposto estupro em programa da Globo provoca denúncias e inquéritos no Ministério Público e só pode ser julgado na Justiça. Novo marco regulatório para rádio e TV deixado pelo governo Lula propunha agência de regulação de conteúdo como há na Europa, modelo com sanções mais ágeis. Militantes pela democratização da mídia usam episódio para pressionar governo Dilma.

BRASÍLIA - O debate sobre uma nova lei para empresas do setor de radiodifusão (emissoras de TV e rádio), que garanta democratização e regulação de um serviço que afinal é concessão pública, ganhou impulso com a polêmica gerada pela suspeita de estupro de uma participante do programa Big Brother Brasil (BBB), da TV Globo.

Desde segunda-feira (16), as redes sociais, redutos de militantes defensores da democratização da mídia, foram dominadas pela discussão do caso do participante do BBB que, com uma colega alcoolizada e “apagada”, movimentou-se sob o edredon que cobria ambos de uma forma que levou o público desconfiar de ato sexual. 

Circulam petições online pela responsabilização da Globo, propostas de campanha contra empresas patrocinadoras do BBB e a convocatória de uma manifestação contra a emissora para sexta-feira (20).

Em suma, uma polêmica tão aberta quanto o sinal da maior emissora do país, embora só quem seja assinante de TV paga é que tenha visto a transmissão do suposto crime.

Secretária-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e membro do Conselho Nacional de Psicologia, Roseli Goffman acredita que a responsabilidade da emissora no episódio está muito clara. 

“Ainda não há como saber se houve estupro, porque isso exige investigações. Mas é claro que houve um assédio muito intenso. E a emissora tinha, sim, como prever isso, considerando que realizou intensas entrevistas para definir o perfil dos participantes, antes de confiná-los em um local em que teriam que dividir as camas e estariam expostos a grande quantidade de álcool”, afirma.

Nesta terça-feira (17), militantes da Rede Mulher Mídia e de outras organizações do feministas decidiram entrar com representação no Ministério Público Federal cobrando apuração de responsabilidades da Globo, enquanto o MPF em São Paulo anunciava a abertura de investigação do caso com foco em "violação aos princípios constitucionais da Comunicação Social e ofensa aos direitos da mulher". 

Na véspera, a Secretaria de Políticas para Mulheres, órgão do governo federal, havia solicitado ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, onde está a sede da Globo, que "tomasse providências", mas aí com foco na violação de direitos da mulher. 

“O acusado [de estupro] já está sendo investigado pela polícia, mas a emissora não”, diz a jornalista Bia Barbosa, pesquisadora e militante do coletivo Intervozes, entidade que integra a Rede Mulher Mídia.

A representação da Rede questiona o que seria uma tentativa da Globo de omitir a ocorrência do fato, ao não relatá-lo à suposta vítima, e de retardar a apuração dos fatos, o que pode, inclusive, ter prejudicado as investigações policiais.

Segundo Bia, a Justiça é a única instância que pode apurar o ocorrido, já que o Brasil, ao contrário de outros países, não possui um órgão regulador previsto no Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962. 

Agência de conteúdo

Um projeto de novo marco regulatório foi esboçado no segundo governo Lula e propunha criar uma nova agência, paralela à de Telecomunicações (Anatel), para cuidar só de conteúdo. Num cenário destes, existente em países como Portugal, o "caso BBB" poderia ser apreciado pela agência de conteúde. Desde a posse da presidenta Dilma Rousseff, porém, o projeto está no ministério das Comunicações, que não tem simpatia pela criação de outro órgão.

“O novo marco regulatório defendido pelos movimentos detalha com mais precisão as sanções para casos de infração, porque o atual é muito defasado e prevê que somente a Justiça possa caçar concessões de canais de rádio e TV", afirma Bia. "Já o órgão regulador, que também é uma das bandeiras da luta dos movimentos, possibilitaria que sanções e até mesmo medidas preventivas fossem tomadas com mais agilidade.”

Mas, apesar das limitações impostas pela legislação, Bia acredita que, caso a responsabilidade da Globo seja comprovada, a cassação da concessão da emissora poderia até ser uma consequência a ser discutida. “Por enquanto, não podemos antecipar que foi um crime porque as enuncias exigem apuração rigorosa”, explica.

Para Roseli Goffman, o episódio reforçaria tamb[em a necessidade de um debate ainda mais polêmico, a proposta de “controle social” da mídia por meio de um conselho nacional de comunicação e similares regionais. O uso da expressão "controle social" é uma armadilha política para os militantes da democratização a mídia, pois ajuda a alimentar o discurso dos opositores da proposta (emissoras e seus porta-vozes políticos) de que se trata de censura disfarçada.

“A TV é um componente essencial na educação do brasileiro. E não são esses valores, de glamourização do uso exagerado do álcool e de apologia à violência do sexo não consentido, por exemplo, que queremos passar para nossas crianças”, critica a psicóloga.

A secretaria-geral do FNDC acredita também que o caso deveria forçar o Supremo Tribunal Federal (STF) a decidir logo sobre uma ação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) que tenta proteger filiadas de punição quando não respeitarem a classificação indicativa dos programas (informar a idade mínima adequada para que se assista ao programa). O julgamento no STF foi interrompido quando havia quatro votos (são 11 no total) a favor da Abert.

“Se não houver penalização, as emissoras não respeitarão as classificações indicativas, que terão mais razão de existir”, justifica Roseli, alegando que o instrumento já é muito mal utilizado no Brasil. O BBB, por exemplo, possui classificação indicativa para a faixa etária superior a 12 anos.
Fonte: www.cartamaior.com.br


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Tribunais viraram xerifes da política brasileira: isso é bom?

O Judiciário não pode ser um bom xerife. Na berlinda, enfraqueceu sua relação de confiança com os cidadãos desde que limitou a atuação do CNJ, o xerife do xerife. Mesmo tendo melhorado sua pontaria, suas armas são de curto alcance. Caça corruptos, mas continua a tratar corruptores como vítimas.

Dada a ausência de uma reforma política mais ampla, o Poder Judiciário tem atuado como uma espécie de xerife da política brasileira. Suas armas são a regulamentação dos pleitos eleitorais e, principalmente, o julgamento de casos concretos, que determinam a inelegibilidade ou impugnação de pré-candidatos ou mesmo a cassação de eleitos. 

Em época de eleição, os inúmeros escândalos e o clamor por providências vão parar nos tribunais eleitorais. Neles se deposita a maior dose de cobrança para que os abusos sejam coibidos e quem os pratica seja punido. É uma tarefa inglória, como a de acabar com pernilongos batendo palmas. 

Essa condição de xerife será reforçada com a Lei da Ficha Limpa, que ainda aguarda decisão final do Supremo sobre como será sua aplicação às eleições municipais deste ano. Benéfica em vários sentidos, a lei é limitada como remédio. Trata, mas não cura muitos males: o poder de muitos acusados em barrar investigações, a dificuldade na obtenção de provas e de sua aceitação como evidências incontestáveis, a morosidade dos processos até que ocorra a condenação em segunda instância, e o fato de que a corrupção política é capaz de sofrer mutações justamente para sobreviver ao antibiótico.

Além disso, o "controle de qualidade" na condução dos negócios públicos está em mãos de cúmplices de maracutaias escabrosas. Comprovar um crime depende de uma denúncia, o que, por sua vez, depende de um caluniador, ele próprio um malfeitor em quem não se pode confiar. É só quando uma serpente abre a boca que caem as poucas gotas para míseros frascos de soro antiofídico.

Como se isso não bastasse, mais preocupante é o fato de que uma das raízes da corrupção no país não é tratada como crime. Ao contrário, é regra. Trata-se do financiamento privado de campanha. Isso afeta o controle de qualidade da política que, por excelência, numa democracia representativa, deve ser feito pelas eleições. 

O sistema eleitoral brasileiro não só permite como premia candidatos que são hábeis em amealhar recursos privados. O financiamento empresarial para candidaturas tem o eufemístico apelido de “doação”. Como se sabe, “não existe almoço grátis”. Salvo raríssimas exceções (se é que há), empresas não doam, emprestam. Não colaboram, investem. Os recursos “investidos" em uma campanha serão posteriormente cobrados com juros e correção monetária.

E quanto aos xerifes? No Velho Oeste, eles eram escolhidos diretamente pelos cidadãos. Em geral, preenchiam três critérios: tinham a confiança da comunidade, eram exímios no uso das armas (atiravam nas pessoas certas) e tinham a coragem de enfrentar tanto capangas quanto mandantes. Os filmes de faroeste mostram que os Jack Palances e Lee Van Cleefs não apareciam do nada. Estavam a serviço de chefões que os contratavam para intimidar pacatos cidadãos. 

A Justiça Eleitoral foi fundamental para a moralização dos pleitos no Brasil. Podemos dizer que, hoje em dia, não é mais possível fraudar uma eleição. O voto dado a um candidato será computado para este mesmo candidato. Mas é possível fraudar a vontade do eleitor. É lícito eleger alguém que diga que representará o cidadão, quando na verdade representa um consórcio de empresas. É lícito eleger candidatos com discurso de mudança que farão o governo da mesmice. Parcela relevante da política é feita por jogos ocultos. O voto vendido é proibido. O voto vendado é válido.

Assentada a poeira de alguns tiroteios espetaculares que promoveu e do chumbo grosso que poderá trocar em 2012, julgando os políticos, o xerife tende a levar a culpa de problemas crônicos. Por exemplo, quando cassa Nero e o substitui por Calígula. Quando permite a eleição do Dr. Jekyll, mas se diz de mãos atadas quando este se transforma no Sr. Hyde - respectivamente, o médico e o monstro da ficção de terror. 

O Judiciário não pode ser um bom xerife. Na berlinda, enfraqueceu sua relação de confiança com os cidadãos desde que tentou limitar a atuação do Conselho Nacional de Justiça, o xerife do xerife. Mesmo tendo melhorado sua pontaria com o uso de pistolas, elas são de curto alcance, embora mais barulhentas. O xerife caça corruptos, mas continua a tratar corruptores como vítimas.

Finalmente, o xerife não pode e em muitos casos não almeja ser um bom xerife. Já vimos juízes exímios no uso de rifles, que são mais silenciosos e miram os mandantes, sofrerem pressões internas e perderem seu distintivo, como aconteceu com aquele que dizia coisas do tipo: 

"Na Idade Média, o foro privilegiado protegia as pessoas mais abastadas". "No Brasil de hoje, ele também virou instrumento de proteção". "Desse modo, para que Justiça?"

Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.



Fonte: www.cartamaior.com.br







Crack é usado por miseráveis porque é barato

A explicação é tão simples que parece óbvia, mas para o especialista Dartiu Xavier da Silveira apenas o preço define o fato de que na Cracolância se fuma o crack. A droga vicia tanto quanto qualquer outra, inclusive o álcool, e as taxas de sucesso no tratamento são as mesmas. A diferença é que, neste caso, o “ser miserável” precede o “fumar crack”. Qualquer política de combate ao uso da droga tende ao fracasso, se não for precedida de uma política social conseqüente. Silveira define o lobby da comunidade terapêutica para drogados junto ao Sistema Único de Saúde (SUS) como “pesado”, e diz que a ação policial na Cracolândia é simplesmente “política e midiática”. A reportagem é de Maria Inês Nassif.

São Paulo - O grande equívoco da ação policial do governo do Estado de São Paulo e da prefeitura da capital na chamada Cracolândia, o perímetro onde se aglomeram moradores de rua e dependentes de crack na cidade, definiu, de cara, o fracasso da operação: o poder público partiu do princípio de que a droga colocou aqueles usuários em situação de miséria, quando na verdade foi a miséria que os levou à droga. Esse erro de avaliação, segundo o psiquiatra e professor Dartiu Xavier da Silveira, por si só já desqualifica a ação policial. 

Professor do Departamento de Psiquiatria e coordenador do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (PROAD), Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, Silveira há 25 anos orienta pesquisas com usuários de drogas e moradores de rua, normalmente patrocinadas pela Organização das Nações Unidas, e tem sido consultor do Ministério da Saúde na definição do Plano de Combate ao Crack. Nas horas vagas, ele desmistifica os argumentos usados pela prefeitura, município e uma parcela de psiquiatras sobre usuários de drogas. 

A primeira contestação é essa: o abandono social vem antes, o crack vem depois. E a política social tem que preceder qualquer ação junto a essa comunidade, inclusive a médica. 

Outras desmistificações vêm a tiracolo. O crack é droga pesada, concorda ele, mas o dependente da droga tem as mesmas chances de cair no vício do que um usuário de álcool, por exemplo. “Em qualquer droga existem os usuários ocasionais e os dependentes”, diz o médico. Inclusive no caso do crack. O tratamento por internação compulsória de qualquer uma – álcool, cocaína etc – situa-se na ordem de 2%, ou seja, 98% dos usuários internados compulsoriamente, inclusive os de crack, não conseguem manter abstinência. O tratamento ambulatorial garante a maior taxa de sucesso, de 35% a 40% dos usuários tratados. Isso também vale para os usuários de crack. 

Daí, outra mistificação é derrubada pelo médico: não se joga simplesmente fora os outros 60% a 65% que não vão conseguir se manter abstinentes. Do ponto de vista da saúde pública, é um ganho se o usuário se beneficiar de uma política de redução dos riscos. “O usuário não vai parar, mas pode reduzir o uso e até estudar ou trabalhar”, afirma. Isso vale também para o viciado em crack. 

Por que o crack e não outra droga? Porque a população miserável só pode comprar o crack. Existem usuários de classe média, concorda Silveira, mas crack, pobreza e população em situação de rua são situações que convergem. “A gente sempre tem essa noção de que a rua é um espaço horrível, e é mesmo, mas em muitos casos a situação da família é tão agressiva que é um alivio para a criança estar fora de casa.”

Com todas essas evidências de que o problema da Cracolândia é fundamentalmente social, Silveira apenas consegue atribuir ações policiais na área e a defesa instransigente que políticos e profissionais de saúde fazem da internação compulsória como ligadas a “causas menos nobres”. Que envolvem também interesses econômicos de alguns médicos.

CARTA MAIOR: Como o crack pode deixar de ser tratado como um caso de polícia para tornar-se política pública?

DARTIU XAVIER DA SILVEIRA: Essa ação (policial) na Cracolândia começou com um equívoco básico, que é atribuir aquela situação à presença da droga. É como se a droga tivesse colocado aquelas pessoas em situação de miséria, e isso não é verdade. Todos os estudos feitos com população de rua mostram que, na realidade, o que leva essas pessoas ao crack é a exclusão social, a falta de acesso à educação, saúde e moradia, ou seja, a privação da própria cidadania e identidade. Isto, sim, é um fator de risco para a droga. A droga vem porque tem um prato cheio para florescer. A droga é consequência, não é causa disso.

CARTA MAIOR: Então, essa história de que o crack está atingindo as famílias de classe média no geral é uma bobagem?

SILVEIRA: Ela atinge também a classe média, mas não com a gravidade com que atinge as pessoas mais pobres, porque a situação delas é grave do ponto de vista social, não apenas do ponto de vista do consumo da droga. É uma população mais vulnerável. E por que é o crack? Porque é a droga mais barata para essa população mais miserável. Se fosse na Europa não seria o crack. As populações excluídas da Europa do Leste também abusam, mas de heroína ou de álcool, porque lá crack seria muito caro. Mas essa é a situação que se vê no mundo inteiro entre as populações excluídas. O abuso de drogas é igual, só que a droga usada é a mais barata. Por conta desse equívoco básico, existe esse discurso que diaboliza o crack, faz da droga a causa de tudo. 

CARTA MAIOR: A política social, então, deve preceder qualquer outro tipo de política?

SILVEIRA: Exatamente. Existe outro dado alarmante, e as pessoas se esquecem disso, que é um dado epidemiológico. As pesquisas mostram: pode pegar qualquer droga, lícita ou ilícita – álcool, cocaína, qualquer substância. Existem sempre os usuários ocasionais e as pessoas que são dependentes. E isso ocorre também com o crack. Até para drogas pesadas existem usuários ocasionais. Do ponto de vista médico, as pesquisas são direcionadas para entender isso: por que, por exemplo, pessoas conseguem beber socialmente e outras viram alcoólatras. Por que tem gente que consegue cheirar cocaína esporadicamente e tem gente que é dependente? As respostas são muito parecidas. O que vai diferenciar um usuário ocasional de um dependente são outros fatores que não têm nada a ver com a droga: se a pessoa tem outro problema psíquico associado, como depressão e ansiedade, e começa a usar o álcool e a cocaína para resolver problemas, ou situações de muito stress... Numa situação como a das pessoas que vivem na Cracolândia, ser morador de rua já é, por si só, uma situação de risco.

CARTA MAIOR: No caso de criança é uma situação de abandono completo? Não dá para imaginar uma criança com grande problema psíquico ou stress em condições minimamente normais, não é?

SILVEIRA: Sim, é uma situação de abandono completo. O stress que estou falando é de forma geral, que afeta também a classe média. Na situação da Cracolândia, o abandono é fundamentalmente a situação de risco. Têm crianças de classe média que abusam de algumas drogas também, mas elas normalmente vêm de famílias muito desestruturadas, têm pais muito agressivos. Esse não é um ‘privilégio’ da classe desfavorecida. Mas numa situação extrema de crianças de rua, o risco é altíssimo, porque essa criança é privada de tudo.

CARTA MAIOR: Como é a família de uma criança de rua e usuária de droga? Ela tem alguma possibilidade de reatar laços afetivos?

SILVEIRA: Algumas famílias têm condições, e quanto a gente identifica essa possibilidade, faz a intermediação. Outras famílias, não. A gente tem sempre essa noção de que a rua é um espaço horrível – e é mesmo horrível morar na rua – mas em muitos casos a situação da família é tão agressiva que ir para a rua é um alívio para a criança. Por exemplo, muitas crianças vão para a rua porque não aguentam o abuso sexual dentro de casa, por parte do pai, ou do irmão mais velho. Ir para a rua pode ser uma progressão positiva, pode representar escapar de uma situação muito inóspita de vida. Tem uma situação até emblemática, relatada em um trabalho que fizemos com adolescentes de rua. Identificamos vários adolescentes usando drogas. A uma delas, a gente perguntou: por que você usa droga, o que você está procurando na droga? A resposta dela foi um tapa na cara da gente. Ela virou e disse: ‘olha, tio (veja você, uma cabecinha de criança, me chamando de tio), eu nem gosto muito do efeito da droga, mas o problema é que para eu sobreviver na rua eu preciso me prostituir, e para eu suportar uma relação sexual com um adulto só sob o efeito de droga.’ Agora, como dizer que a droga é um problema na vida dessa menina? A droga é uma forma de solução, para ela conseguir sobreviver. A droga já é consequência de uma situação de prostituição que ela foi obrigada a encarar por omissão do Estado, da sociedade como um todo. O depoimento dessa menina torna todas essas justificativas para as ações feitas na Cracolândia uma hipocrisia, uma total falta de sensibilidade para reconhecer o fenômeno.

CARTA MAIOR: Outro mito do crack é que é a droga definitiva, que é impossível livrar-se dela. Isso é verdade?

SILVEIRA: É um mito completo. Ela não é uma droga pior que heroína, que a cocaína, em termos de grau de dependência. É difícil sair? É, mas é difícil como qualquer droga. O crack não é pior. 

CARTA MAIOR: Então, para essa população, a questão é muito mais uma política social do que médica.

SILVEIRA: Exatamente. Por isso que os trabalhos mais bem-sucedidos são os feitos in loco, por meio de educadores de rua, desses agentes de saúde. Não são médicos que vão fazer uma consulta médica na rua. A gente chama de consultório de rua mas não é um consultório. A equipe vai investigar o que está acontecendo caso a caso, se a pessoa está com falta do quê, de lugar para morar, ou o problema é o relacionamento com a família, ou o problema é assédio de algum tipo, por parte de alguém. É uma coisa mais social, mesmo.

CARTA MAIOR: É um encaminhamento de assistência social e os profissionais de saúde só entram quando for o caso para aquela pessoa?

SILVEIRA: Frequentemente os aspectos psicológicos são muito relevantes, porque essas crianças estão psicologicamente abaladas – não apenas elas, aliás, mas os jovens, os moradores de rua em geral. Mas a intervenção médica, mesmo nesses casos – e não estou desqualificando a importância dela – não é primordial.

CARTA MAIOR: Então a intervenção médica é só para casos extremos.

SILVEIRA: Exatamente.

CARTA MAIOR: E desde que não seja internação compulsória?

SILVEIRA: Desde que não seja compulsória. As experiências de internação compulsória são simplesmente um fracasso. As taxas de insucesso chegam a 98%. Na hora que você interna compulsoriamente uma pessoa, ela não vai ter acesso à droga porque está em isolamento social. Nessa condição, é fácil para um dependente se manter abstinente. Na hora que sair de lá e voltar para os problemas da vida, no entanto, essa pessoa recai. 98% recaem. Isso, sem questionar que o governo não tem equipamento para fazer internação compulsória de todo mundo. As internações são feitas geralmente em verdadeiros depósitos de drogados. Parecem mais um campo de concentração do que uma estrutura hospitalar.

CARTA MAIOR: E é tudo privatizado, não é?

SILVEIRA: E a privatização não melhorou nada essa situação. Os hospitais psiquiátricos privados têm um custo baixíssimo. A economia é feita com a contratação de pessoal. Não existem equipes adequadas para tratar esses dependentes. É um trabalho muito porco, de segunda categoria.

CARTA MAIOR: Esse atendimento privado se misturou muito com religião?

SILVEIRA: Sim, e isso não é bom. Eu não tenho nada contra religião, não é uma questão de princípio, mas o que se vê são diversos grupos religiosos montando o que eles chamam de “comunidades terapêuticas” que partem do princípio de que só a intenção e a conversão religiosa são fator de cura. A maioria dos casos não tem bom resultado. E por quê? Porque a gente sabe que o melhor tipo de tratamento para a dependência química é feito por uma equipe multidisciplinar. A grande maioria das comunidades terapêuticas não tem equipes para trabalhar com dependentes.

CARTA MAIOR: O relatório do Conselho Federal de Medicina sobre as clínicas de tratamento para drogados é impressionante.

SILVEIRA: O relatório é dramático. E é verdadeiro. No relatório tem até denúncias de abuso, espancamento, maus-tratos a pacientes, ou seja, não são pessoas minimamente capacitadas para darem conta do problema que estão lidando com os usuários nesses lugares.

CARTA MAIOR: Isso acaba sendo a reintrodução do manicômio, mas para dependente químico?

SILVEIRA: Exatamente. A Lei Antimanicomial vai por água abaixo, porque o sistema manicomial está voltando sob a justificativa de que a droga demanda uma intervenção urgente. E isso não é verdade.

CARTA MAIOR: Isso está sendo um motivo de discórdia grande dentro da sua área de especialidade? Não faz muito tempo, a luta pela Lei Antimanicomial foi abraçada como uma luta pelos Direitos Humanos.

SILVEIRA: E a lei foi um ganho muito importante. Só vou abrir parênteses nessa questão: eu não sou contra a internação, eu interno meus pacientes, mas apenas quando eles precisam. Eu não interno por questão social, ou porque a família está me pressionando, ou porque não se aguenta o paciente em casa. Os abusos que se cometiam nessas internações, isso acho intolerável, se internava muito mais do que era necessário. Hoje em dia se interna ainda, é importante ter espaços de internação, mas é para casos excepcionais, não para a regra. É para surto psicótico ou risco de suicídio. Ponto. Não tem outra aplicação.

CARTA MAIOR: Dos programas que estão sendo anunciados por município, Estados e União, tem algum que não assume essas orientação da internação compulsória?

SILVEIRA: Os programas de intervenção mais eficazes para dependentes são os que adotam o modelo ambulatorial, onde o paciente aprende a se manter abstinente convivendo em sociedade, com a ajuda de uma equipe multidisciplinar. Essa proposta estaria plenamente contemplada nas orientações do Ministério da Saúde e dentro da filosofia do Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS), e existe um número mínimo de CAPS para fazer esse trabalho. O problema, no entanto, são as equipes dos CAPS – falta gente e falta gente bem treinada. Existem exceções, é lógico, como o da Água Funda, um modelo que deu muito certo. Porque não é desumano.

CARTA MAIOR: Ainda assim os resultados são melhores do que a internação compulsória?

SILVEIRA: Em regra, os melhores resultados, em relação à dependência química, giram em torno de 35% a 40%, contra os 2% da internação compulsória. Os que sobram, de 60% a 65%, no entanto, não podem ser apenas considerados um fracasso e pronto. O que nós aprendemos nos últimos anos é que mesmo as pessoas que não conseguem ficar em abstinência podem se beneficiar de política de redução de danos. Esse usuário pode não vai ficar completamente abstinente, não vai parar, mas vai se drogar com uma frequência menor, em circunstâncias de menos risco. Do ponto de vista da saúde pública, é um avanço se esse usuário for mantido em condições de estudar, trabalhar, levar uma vida normal.

CARTA MAIOR: A internação ajuda a desintoxicação inicial, ao menos?

SILVEIRA: A desintoxicação não precisa ser feita na internação, e se as pessoas forem internadas, o ideal é que não ultrapasse os 90 dias. Para a grande maioria das pessoas, é possível fazer a desintoxicação com medicamentos que tiram a crise de abstinência. Elas podem levar vida normal. Isso já é possível com o avanço da medicina. Os CAPS-AD (específicos para dependentes de álcool e drogas) têm esse tipo de medicação, mas poucas equipes capacitadas a administrá-las.

CARTA MAIOR: Se as diferenças de resultado são tão grandes, por que ainda se defende a internação?

SILVEIRA: As causas para defesa da internação não são nada nobres. Em primeiro lugar, acho que a ação feita na Cracolândia foi uma mera ação política e midiática. Para uma população menos informada, a impressão que se tem, numa ação policial como essa, é que o poder público está desempenhando muito bem suas funções. A grande maioria das pessoas que defende a internação compulsória ou é despreparada, ou é de médicos que têm interesses econômicos nisso. Como o SUS (Sistema Único de Saúde) não tem leitos para atender uma demanda dessa, vai ter que contratar leitos de hospitais particulares. E isso interessa a muitos médicos.

CARTA MAIOR: O lobby das clínicas é pesado, então?

SILVEIRA: A atual gestão do Ministério da Saúde é muito séria e está tentando fazer o melhor possível, mas enfrenta uma série de problemas. O pior deles é, de fato, o grande lobby da comunidade terapêutica para drogados junto ao SUS. O Ministério está sendo obrigado a engolir goela abaixo essas pressões, em prejuízo de seu próprio projeto, que é muito mais eficiente.














   

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