06 abril 2015

TAMBÉM HUMILHADOS E OFENDIDOS

Pobres e desprezados


Mino Carta, na Revista CartaCapital



Um livro de recomendabilíssima leitura acaba de sair na França, intitulado Le Mépris du Peuple, o desprezo do povo. Subtítulo: de como a oligarquia fez da sociedade seu refém. Autor, Jack Dion, jornalista de origem esquerdista.
Escreve Dion: “Quando os partidos que chegam ao poder se tornam instrumentos de defesa do establishment, o povo transforma-se em inimigo e passa a simbolizar um perigo potencial”. O autor aponta o emprego enganoso do termopopulismo para negar alternativas ao liberalismo, ou seja, à ortodoxia neoliberal, como único caminho destinado a preservar a democracia.
Dion recorda que há 40 anos o então chanceler alemão, Helmut Schmidt, socialista, dizia que os lucros de hoje serão os investimentos de amanhã e os postos de trabalho de depois de amanhã. Quarenta anos após, são os dividendos de amanhã e o desemprego de depois de amanhã. E em lugar de Schmidt, a Europa e o mundo padecem Angela Merkel.
Caso voltasse seus olhos para o Brasil, Dion anotaria, como sinônimo de populismo, outro termo esbanjado, chavismo, eventualmente associado a comunismo, em um país cujos burguesotes em 2010 qualificavam a candidata Dilma Rousseff como guerrilheira. Com o estímulo e o apoio dos escribas da mídia nativa, sem deixar de sublinhar que a palavra escriba não indica lida fácil com o vernáculo.
Dion escreve um vigoroso libelo contra a esquerda do ex-Primeiro Mundo, insensível e desarmada diante da concentração da riqueza nas mãos de uma minoria cada vez mais diminuta, fenômeno de maior evidência nos Estados Unidos, onde, faz seis anos, 95% do crescimento é confiscado por 1% da população. E haja Tea Party. Pois saiba Dion que nós temos o nosso Tea Party, promovido pela mídia nativa, com o beneplácito, quando não da colaboração de quem já se disse de esquerda, ou ainda se diz, impávido.
Sejamos claros: o primeiro governo de centro-esquerda na história do País foi o de Lula. Houve, a precedê-lo, a Carta aos Brasileiros e, após a posse em janeiro de 2003, a entrega do Banco Central a Henrique Meirelles. Logo, porém, políticas foram praticadas para tirar da miséria mais de 30 milhões de cidadãos. Lula liquidou a dívida externa, encheu as burras do Estado, inaugurou uma política internacional independente. Ótimo governo que conseguiu escapar aos dias piores da crise econômica global.

Esta, contudo, não poupou Dilma, e nem poderia. Inútil, além de hipócrita ou estulto, negar que o recrudescimento da crise foi determinante na baixa progressiva do nosso PIB. Erros foram cometidos, inegavelmente, para piorar a situação. O descaso governista em relação à indústria, antes de mais nada. Mesmo assim, parte das políticas sociais cultivadas por Lula foi mantida, e algumas até reforçadas.
Foi quanto bastou para justificar o apoio de CartaCapital à candidatura da presidenta ao segundo mandato, na certeza de que uma vitória tucana nos devolveria ao final do século passado, quando FHC reinava. Em meio às vicissitudes, esperávamos por um governo de centro-esquerda, aquilo que o de hoje não é, submisso ao mercado, indiferente ao rentismo dominante, em retirada nas políticas sociais, refém de predadores do porte mais primário, para não dizer primitivo, de Eduardo Cunha e Renan Calheiros.
Há tempo CartaCapital reconhece a necessidade de um reajuste fiscal, permite-se, no entanto, a seguinte dúvida: pode a manobra ser da responsabilidade de um discípulo de Angela Merkel? Não dos mais atilados, diga-se, seu depoimento de terça 31, no Senado, é uma obra-prima de incongruências. Se Dion encarasse o Brasil, não deixaria de verificar que por aqui está em curso um ataque à própria razão, não bastassem as mesuras a quem faz o mal do mundo. Para combater a criminalidade, cogita-se de atirar menores nas cadeias superlotadas. Para combater a corrupção, pretende-se aprisionar réus a partir da condenação em primeira instância. Meu professor de Direito Romano na Faculdade do Largo de São Francisco, Alexandre Correa, padeceria de um sobressalto interior, talvez fatal.
E o ministro da Justiça opina a respeito? Silêncio condescendente. Em compensação, contamos na pasta da Agricultura com uma latifundiária, a representar aquele 1% que detém a propriedade de 50% das terras agriculturáveis. Os ricos erguem seus palácios, blindam seus carros, exigem valet parking nos logradouros públicos e seguranças engravatados enquanto circulam de bermudas e havaianas. Ao mesmo tempo, 40% do território nacional não é alcançado pelo saneamento básico e mais de 60 mil brasileiros morrem assassinados anualmente. E nada disso fere a consciência dos demais. Alegremente desprezam-se os pobres, e estes deixam-se desprezar.
 
 

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