As escolhas de Dilma
Saul Leblon, na Agência Carta Maior
As notícias que chegam dos correspondentes deCarta Maior na Europa formam um denso exclamativo de alerta.
A austeridade estala o relho do desemprego nas costas de quase 27 milhões de pessoas no continente –mais de 19 milhões só na zona do euro.
Um círculo vicioso de arrocho social, demência fiscal e privilégio às finanças escava o fundo do abismo.
Aleija o Estado; esquarteja o tecido social.
A fome está de volta numa sociedade que imaginava tê-la erradicado com a exuberância da política agrícola do pós- guerra, associada à rede de proteção do Estado social.
Quem não se lembra das montanhas de manteiga e trigo?
Inútil é a opulência quando a repartição se faz pela supremacia dos mercados desregulados.
Que meio milhão de pessoas passem fome no coração financeiro da Europa, como informa o correspondente em Londres, Marcelo Justo, nesta pág, deveria ser suficiente para afastar as ilusões na ‘solução ortodoxa’ para a crise sistêmica do capitalismo desregulado.
Mas a história não segue uma lógica moral; tampouco é imune a retrocessos.
A calibragem fina entre a barbárie e a libertação humana não está prevista nos manuais de economia.
Esse apanágio pertence à democracia.
Vale dizer, ao movimento das gigantescas massas de forças acumuladas na caldeira social de cada época.
A esquerda europeia, ao longo dos últimos 30 anos, jogou água fria no vapor.
Sua rendição histórica representa hoje o chão firme em que prospera a restauração conservadora.
A regressividade econômica se faz acompanhar da contrarrevolução sempre que a esquerda troca a resistência pela adesão à lógica cega dos mercados.
Os paralelepípedos de Paris assistem, estarrecidos, às marchas extremistas contra os direitos das minorias --num ensaio de assalto aos das maiorias, patrocinado pela tibiez do governo Hollande.
A França vive o seu ‘Maio de 68 de direita’.
Quem avisa, nesta pág, é o experiente jornalista Eduardo Febbro, correspondente de Carta Maior que tem o olho treinado na cobertura de grandes levantes sociais do Oriente Médio à América Latina.
A exceção alemã, ademais de suspeita num continente devastado, assenta-se em mecânica perversa.
Frau Merkel gaba-se de ter acrescentado 1,4 milhão de vagas ao mercado de trabalho germânico no século 21.
O feito encobre uma aritmética ardilosa.
Desde 2000, a classe trabalhadora alemã perdeu 1,6 milhão de empregos.
Vagas de tempo integral, com direitos plenos.
Substituídas por 3 milhões de contratações em regime precário, de tempo parcial.
O salário mínimo (hora/trabalho) do semi-emprego alemão só não é pior que o dos EUA de Obama.
É no alicerce das ruínas trabalhistas que repousa o sucesso das exportações germânicas, cantadas em redondilhas pelo jogral conservador aqui e alhures.
Exportando arrocho, o colosso alemão consegue vender mais do que consome internamente.
A fórmula espalha desemprego e ‘bons exemplos’ ao resto do mundo.
O ‘modelo alemão’, ademais, traz no DNA a singularidade que o torna inimitável: se todos acionarem o moedor de carne de Frau Merkel, quem vai comprar o excesso de salsicha?
O fundo do poço, enevoado neste caso pelo lusco-fusco da retomada norte-americana contrastada pela desaceleração asiática, é o ponto mais perigoso da crise. De qualquer crise.
As fragilidades estão no seu nível máximo.
E sempre surge alguém para propor que a hora é de escavar o porão com mais arrocho e desmanche social.
Roosevelt ouviu os conselhos dos ‘austeros’, em 1937, quando a economia dos EUA começava a respirar. O rebote depressivo foi tão longe que dele o país só saiu com o keynesianismo de guerra.
O próprio FMI alerta : nas condições atuais, cada unidade adicional de austeridade produz duas vezes mais decrescimento, do que no início do ‘ajuste’.
A ortodoxia acha que nada disso vale para o Brasil.
O país ingressa nesse capítulo do colapso neoliberal equilibrado em trunfos e flancos significativos.
Sua engrenagem econômica se ressente da mortífera sobrevalorização cambial que inibe exportações e transfere demanda para o exterior; as contas externas padecem, ademais, com a erosão nas cotações das commodities; o parque industrial retraído e defasado tecnologicamente é acossado pela invasão dos importados.
A determinação central, porém, é a luta pelo poder.
A disputa eleitoral de 2014 comanda o relógio dos mercados.
Os ponteiros do capital buscam candidaturas ‘amigáveis’.
Não investir na ampliação da oferta, capaz de domar a inflação, faz parte da campanha.
‘Culpa das incertezas’, justifica a mídia obsequiosa.
A mesma que encoraja a retranca aos investidores:
“Não façam agora o que poderá ser feito depois, lubrificado por ‘reformas desregulatórias’, caso a Dilma intervencionista seja derrotada”.
O BC endossa o cantochão.
Se não há investimento para atender a demanda, o equilíbrio virá pelo arrocho.
Pau nos juros.
A negociação do futuro não pode ficar restrita ao monólogo entre o mercado e o diretório do BC.
O saldo é mundialmente conhecido. As ruas da Europa dão seu testemunho.
O falso ‘remédio’ agrava a doença e calcifica o recuo do investimento.
Tudo adornado pela guarnição sabida: angu de desemprego com caroço de atrofia fiscal.
Perigosamente ilusória é a hipótese de curar essa indigestão com saltos nas grandes obras públicas.
O retrospecto não endossa a expectativa.
O Brasil já tem uma parte daquilo que as nações buscam desesperadamente (leia o artigo do economista Amir Khair, nesta pág.)
O singular trunfo brasileiro é o binômio ‘pleno emprego e demanda popular de massa’, parcialmente ancorado no Real 'forte'
Foi ele que protegeu o país da crise até agora.
É preciso erguer linhas de passagem para um novo ciclo. Mas essa é uma tarefa política e não contábil.
Se não dilatar o espaço da política na condução da economia, o governo corre o risco de perder o que já tem, sem obter o que a ortodoxia lhe promete.
Ao contrário da Europa, o Brasil tem forças sociais organizadas; suas centrais sindicais e a inteligência progressista dispõem de propostas críveis e sensatas.
Não foram desmoralizadas pela rendição ao neoliberalismo.
O governo construiu sólidas políticas sociais, ademais de estruturas de Estado para ampliá-las.
O conjunto permite à Presidenta Dilma negociar rumos e metas do desenvolvimento com a sociedade; bem como preservar seu mercado de massa com o reforço nas políticas sociais.
Acreditar que a ação do BC será suficiente para reordenar a economia no rumo dos investimentos é terceirizar o país à lógica conservadora, até agora restrita à exortação midiática.
Política é economia concentrada.
O governo Dilma tem escolhas a fazer. E legitimidade para exercê-las.
É a hora.
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