10 fevereiro 2011

O Fórum dos "ninguéns"

Patricia Simón – Periodismo Humano

O segundo Fórum Social Mundial realizado na África poderá aparecer nas notas de 20 segundos dos telejornais de todo o mundo como uma edição ainda mais festiva e colorida com uma maioria de participantes africanos, seguidos de brasileiros e, em proporção muito menor, franceses. Um Fórum marcado pelas revoltas na Tunísia e no Egito.

No entanto, assim como a marcha de abertura não foi tão festiva nem animada – sobretudo a partir da segunda metade do percurso, quando o calor e o cansaço começaram a afetar os participantes –, a influência das revoltas árabes foi visível na manifestação, mas tem sido até agora mais uma referência transversal nos debates do que um assunto protagonista em uma jornada dedicada ao tema “África e a diáspora”, com uma presença majoritária de organizações senegalesas – quase a metade das 1.200 registradas no Fórum.

O campus universitário Cheikh Anta Diop, uma verdadeira cidade dentro de Dacar onde ocorre a maioria das atividades do Fórum, é uma sucessão de edifícios de meados e final do século passado em péssimo estado onde a vida universitária não foi interrompida. Os estudantes, concentrados, repassam as notas de aula à sombra das árvores plantadas em uma área muito seca que faz as vezes de espaço de recreio.

Enquanto isso, os milhares de participantes do Fórum tentam se orientar e encontrar nas faculdades e nos núcleos de tendas de plástico algumas das conversas ou encontros que até o dia anterior não estavam confirmadas, quando foi publicado o programa do primeiro dia. Nas laterais das tendas, em cartazes pintados à mão, aparecem as atividades das próximas horas: “Soberania alimentar na África”, “Democratização no Magreb”, “Rede de apoio aos imigrantes em sua rota a Europa”...

A voz dos sobreviventes

Mas em meio ao aparente caos, o rumor de vozes só interrompido de vez em quando por aplausos, começa a se revelar que nos encontramos em uma ágora, uma assembleia onde têm voz as grandes ONGs e movimentos sociais, mas também pequenas organizações e sobreviventes que têm poucas oportunidades não só de contar sua história, mas também de apresentar sua organização, seu trabalho e suas demandas. Esta é a história do que ocorreu sob um destes toldos amarelos ontem à tarde.

Após uma breve apresentação de uma das voluntárias do Fórum, Ann Igoroma toma energicamente a palavra, em inglês: “Sou refugiada de Serra Leoa no Senegal. Tivemos que fugir de nosso país porque assassinaram nossos maridos, mataram nossos filhos, nos violaram”.
São quatro da tarde e o gesto do rosto sem idade de Ann, que mira diretamente nos olhos a única jornalista na sala, evidencia que não é a primeira vez que conta sua história em público, mas, sobretudo, que não é esta a história que ela vem contar. Pega um punhado de papéis manuseados e desgastados da mesa e os mostra à sala: “As Nações Unidas nos deram estes documentos dizendo que éramos refugiados, que iam nos proteger, que teríamos uma casa, que nossos filhos teriam direito à educação. Mas o Senegal não reconheceu o status de refugiadas para a maioria de nós e as poucas que foram reconhecidas ganharam um documento sem fotografia que a polícia não admite.

Ann mostra várias vezes os documentos como se, entre nós, alguém fosse encontrar a resposta ao absurdo de uma burocracia da qual sua vida depende, mas que não responde a nenhuma lógica.

Na frente, uma dezena de mulheres na mesma situação permanece sentada escutando seus infortúnios na boca de sua porta-voz. “Nunca pensamos que nos converteríamos em pessoas sem documentos. Muitas de nós dormem na rua, outras estão na cadeia... Chegamos nos anos 90, nossos filhos cresceram aqui sem educação, alguns deles terminaram na prostituição... Não sabemos o que fazemos aqui e tampouco podemos voltar a Serra Leoa”. Ela se senta.

Enquanto isso, algumas pessoas que passaram na frente da tenda acabam entrando, escutando e perguntando, por exemplo, que sentido tem o Senegal não aceitar como refugiados pessoas que a ONU reconhece como tais. Um advogado presente esclarece que este país “só concedeu esse status a cerca de 10% das pessoas apresentadas pela ONU”.


Papéis desgastados

Neste momento outra mulher começa: “Sim, sou refugiada, fugi da guerra, violaram minha filha quando tinha oito anos e mataram meu marido na minha frente. Cheguei ao Senegal sem nada nas mãos. Já fizemos muitas conferências de imprensa, mas não acontece nada...” É Neffie Jalloh, que volta a mostrar os papéis que sempre tem que levar com ela, que não servem para nada e que, de tão desgastados, deixam passar a luz do meio-dia.

Ann volta a tomar a palavra: “Mais de uma vez, nossos filhos nos perguntaram para que organizávamos atos públicos, para que estávamos concedendo entrevistas. Respondíamos que era para que nos ajudassem. Mas no dia seguinte não saía nada nos meios de comunicação e eles nos perguntavam o que tínhamos feito de errado. Estamos cansadas de contar a mesma história sem que isso sirva para nada”.

No público, o filho de uma delas, enquanto se levantavam para deixar o local para os seguintes “debatedores”, conta-nos como tem que sobreviver na economia subterrânea, ele descarregando barcos no porto, elas cozinhando para sua comunidade, ou em outros trabalhos que evitam que passem fome. O menino diz que conseguiu chegar a Barcelona como imigrante sem documentos há pouco mais de um ano. Foi deportado de volta ao Senegal porque era onde a ONU havia reconhecido sua condição de refugiado.

Por sua estabilidade em comparação com os demais países da região, o Senegal tem sido durante as duas últimas décadas o destino principal dos refugiados das guerras da África ocidental. Segundo os últimos dados da agência dos refugiados da ONU (UNHCR), em 2010 havia mais de 20 mil refugiados neste país procedentes de toda a região, a maioria deles da Mauritânia – e isso depois de, nos últimos três anos, terem sido repatriados mais de 20 mil mauritanos que estavam refugiados no Senegal havia duas décadas.

“Deportados”

No dia da marcha inaugural, algumas anciãs octogenárias carregavam um cartaz no qual pediam “Parar as deportações de mauritanos por parte do Senegal para a Mauritânia”. A explicação da estranha demanda é dada hoje nesta mesma tenda. “O sentimento de ser refugiado nos une”, diz o historiador Abdourahmane Allangara em francês, enquanto um jovem traduz, mal, ao inglês para que todos os assistentes, especialmente os de Serra Leoa, possam compreender sua situação.

O coletivo União para a Solidariedade e a Ajuda aos Refugiados Mauritanos no Senegal iniciou sua apresentação com a história da formação do país mauritano. Ela remonta à segunda metade do século XX, em que a discriminação da comunidade mauritana negra por parte da árabe berbere é cada vez maior, até chegar a 1989, quando um conflito fronteiriço com o Senegal desata uma onda de violência étnica contra os mauritanos negros que terminou com a deportação de dezenas de milhares deles para o Senegal e o Mali, enquanto outros tiveram que fugir para salvar a vida. No total, cerca de 60 mil mauritanos saíram do país e têm vivido como refugiados há 20 anos.

“Não somos considerados mauritanos porque somos negros. Desprezam-nos. Não queremos voltar.” Essa é a consigna que, na marcha inaugural e agora na mesa, alguns dos atingidos explicam. “Ninguém nos garante que vão devolver nossas terras, que não seremos torturados. Passei dois anos em uma delegacia de polícia em 1990, quando tentei voltar ao meu país.” Quem havia se levantado e começado a falar era um dos mauritanos que pedem para não ser “deportados” para seu próprio país.

Até aqui chega o rumor da tenda o lado, onde um grupo de religiosos que trabalham no Mali, Senegal, Mauritânia e Argélia ajudando os imigrantes em seu caminho para a Europa explicam as situações enfrentadas diariamente. Um pouco mais além, uma colombiana explica as contradições enfrentadas pelas missões internacionais de transparência eleitoral... O ex-presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e o presidente da Bolívia, Evo Morales, entre outras autoridades, pronunciaram discursos em atos que reuniram multidões nestes dois dias de Fórum. Muito perto, refugiados de Serra Leoa e da Mauritânia, também. Ainda que estes últimos pareçam muito cansados de contar sempre a mesma história.

Tradução: Katarina Peixoto



(Transcrito do site www.cartamaior.com.br)

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