08 setembro 2014

POLÍTICA E ECONOMIA

A miséria da economia


Vladimir Safatle, na Revista CartaCapital




Sonhar é bom, mas eleição é hora de botar o pé no chão.” Esta frase, enunciada em um programa eleitoral do Partido dos Trabalhadores, é, provavelmente, uma das piores já ditas na política brasileira. Ela expõe claramente no que nossa política se transformou: em um lugar no qual depositamos os sonhos na soleira da porta antes de entrar. Pedir aos eleitores para deixar de sonhar na hora de votar é uma confissão de que não há nada mais a esperar, mas é melhor continuar como se está porque o futuro pode sempre ser ainda pior. Ou seja, é a pura e simples utilização do medo como afeto político central. Algo do tipo: “Não tenho realmente nada a te oferecer, mas esqueça isso e pense que outros podem vir e deixar tudo muito pior”. Já tinha ouvido discursos semelhantes de políticos conservadores e reacionários, mas juro que não esperava algo dessa natureza a guiar as estratégias políticas de alguém que se diz de esquerda, ou seja, de alguém que tem como razão de existência e como afeto político não a circulação do medo, mas da esperança em relação a grandes transformações. Quando você não consegue mais fazer as pessoas sonharem, melhor ir embora.
Como podemos aprender de Celso Furtado, política é “fantasia organizada”, capacidade de elevar os sonhos à condição de motor para ações concretas. Mas talvez seja melhor qualificar de forma mais precisa o que se passa na política brasileira atualmente. Não estamos diante da luta entre sonho e princípio de realidade. O que realmente está a acontecer é que não há mais sonho vindo de lado algum das principais peças do tabuleiro.
Marina Silva teve a sensibilidade de compreender que algo acontecera em junho. Tal sensibilidade lhe permitiu escrever a melhor parte de seu programa, a saber, esta que procura os primeiros passos para uma democracia de alta densidade. Mas, para tanto, ela resolveu fazer aquele típico movimento neurótico que consiste em dizer algo e anular seus efeitos logo em seguida, um pouco como esses sujeitos que, imersos em rituais compulsivos, abrem e fecham as mesmas gavetas de forma incessante. Pois, e este é o ponto mais inacreditável, sua política só funciona com participação popular à condição de retirar a economia de toda e qualquer interferência da vontade popular. Essa contradição é destruidora.
Afinal, o que pode significar a catastrófica ideia de independência do Banco Central, a não ser que a política econômica do governo estará à margem de qualquer possibilidade de interferência popular, pois gerida por um grupo de tecnocratas que se sentirão completamente livres para fazer o que bem entenderem a partir de metas previamente estabelecidas? Se houver mudanças das metas, se a população entender que as direções econômicas devem ser revistas, quem poderá pressioná-los, já que eles terão mandatos? Que tipo de democracia é essa na qual a economia não faz mais parte da política, mas estará nas mãos de pessoas que, logo depois de saírem do governo, procurarão emprego nos bancos que ela supostamente estava até há pouco regulando?
Quem realmente quer uma democracia de alta densidade deve voltar os olhos para a Islândia. Eis um país que, em seu pior momento de crise, decidiu dar ao povo a possibilidade de politizar a economia. No momento em que o Parlamento decidiu transformar a dívida privada dos bancos em dívida soberana do Estado, a Presidência deste pequeno país decidiu convocar um plebiscito para decidir o destino da dívida. Sim, para isso serve a democracia popular, ou seja, para lembrar a nossos economistas pagos regiamente através de consultorias para bancos mafiosos que quem paga a conta escolhe a música. E quem paga a conta da política econômica do Estado brasileiro são seus cidadãos. São eles que devem comandar a economia.
Ao propor retirar por completo as decisões econômicas da esfera da soberania popular, Marina apenas radicaliza o que temos visto nos últimos anos. Só que não é aceitável dormir com os sonhos das manifestações de junho e acordar com o pesadelo saído da cabeça de economistas liberais descomplexados e prontos a destilarem seu antiestatismo tosco, seu completo desprezo por políticas fortes de redução da desigualdade social e de limitação do processo de concentração de renda. Não foi para isso que a população saiu às ruas, mas para garantir um Estado capaz de prover serviços sociais de qualidade e um Estado com força para garanti-los.
 
 
 

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