09 novembro 2013

A MÍDIA E O TERRORISMO ECONÔMICO

2008: o ano que a mídia esqueceu


Saul Leblon, na Agência Carta Maior


As notícias contraditórias que chegam dos EUA, em recuperação, e da Europa, sob a ameaça de uma deflação que obrigou o BC a derrubar o juro na sua mínima histórica,  evidenciam a profundidade de uma desordem financeira que não cederá tão cedo, nem tão facilmente.

A consciência dessa longa travessia é um dado fundamental para a ação política em nosso tempo.

É imprescindível abrir o olhar ao horizonte mais largo das determinações  ofuscadas pelo alarido imediatista da mídia conservadora.

A agenda  do arrocho fiscal e monetário bate seu bumbo outra vez.

Com objetivos explícitos e implícitos.

De um lado, determinar a natureza das respostas à dura transição de ciclo de desenvolvimento vivida pelo país.

De outro, encurralar  a sucessão de 2014 em um ambiente contaminado pela represália iminente das agências de risco e dos investidores à ‘derrocada fiscal’.

É o palanque pronto para aqueles que prometem fazer mais e melhor, restaurando o ‘tripé’, recita a cristã-nova do apocalipse, Marina Silva.

Mudam as moscas. Resgata-se o enredo de 2002.

Nesta 6ª feira, na Folha, colunistas  já apregoam a necessidade de se voltar aos bons preceitos da Carta aos Brasileiros, bem como aos mandamentos do Consenso de Washington.

‘Não é que não deu certo; não foi bem aplicado’.

Tudo se passa como se setembro de 2008 nunca tivesse existido no calendário do país e do planeta.

O movimento de expansão do capital financeiro, cuja supremacia determina a dinâmica da economia em nosso tempo, e o faz com a imposição de dramáticos constrangimentos à soberania das nações e às escolhas do desenvolvimento,  antecede e explica  a crise que o conservadorismo apagou.

Não há  economicismo nessa constatação.

A política contribuiu de maneira inestimável para o modo como essa lógica se impôs, a velocidade com que ela se consolidou, a virulência de sua hegemonia e a agonia sem data para terminar de seu poder prevalecente.

 A espoleta da maior crise do capitalismo desde 1929  foi o recuo desastroso do controle da Democracia sobre o poder do Dinheiro.

Seu vetor: o desmonte das travas regulatórias impostas ao sistema financeiro no pós-guerra.

De novo: a regressão não foi obra do acaso.

Recuos e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a colonização de seu arcabouço pelos interditos neoliberais, alargaram os vertedouros ao espraiamento de uma dominância financeira que se tornou ubíqua em todas as esferas da vida.

A queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, sancionou-a no imaginário social como uma segunda natureza.

Era o  fim da história, diziam os áulicos.

Não era, mostrou setembro de 2008.

Mas a sociedade que cedeu a soberania ao suposto poder autorregulador dos mercados comprometera fortemente a sua capacidade política de gerar antídotos ao algoz.

A atrofia ideológica  dos partidos progressistas, por exemplo.

Com ela corroeu-se  a principal fonte de restauração do interesse público sobre a supremacia do dinheiro.

A combustão não foi espontânea.

Um jornalismo rudimentar no conteúdo, ressalvadas as exceções de praxe, mas agressivo na abordagem, capturou o discernimento histórico com uma camada de verniz naval de legitimidade incontrastável.

Durou décadas.

Deformou toda uma geração de jornalistas e de lideranças políticas.

Irradiou descrédito e desinteresse na política e no debate do desenvolvimento.

A economia tornou-se um templo sagrado, dotado de leis próprias, revestido de esférica coerência endógena, avesso ao ruído das ruas, das urnas e das aspirações por cidadania plena.

Alguma dúvida sobre o ventre de origem da revolta black bloc?

A crise mundial açoitou impiedosamente a sabedoria excretada nessa endogamia religiosa entre o circuito do dinheiro especulativo e o noticiário conservador.
Para dizê-lo de forma educada, a pauta dos mercados autorregulados revelou-se uma fraude.

Gigantesca.

Seus pressupostos, os valores por ela veiculados  adernam junto com o seu objeto há cinco anos.

Muito pouco, todavia, seria colocado em seu lugar.

Persiste na democracia um vácuo de representação e escrutínio que renova ao mercado a prerrogativa de pautar o país.

É imperioso resgatar as folhas arrancadas do calendário.

Em setembro de 2008, após um ciclo de fastígio da liquidez e do financiamento barato, a ponto de sancionar os famosos créditos ninjas, que bancavam aquisições de imóveis para cidadãos sem renda, sem emprego e sem garantias, deu-se o sabido.

O dominó começou a quebrar pelas sub-primes, lastreadas na evanescente solvibilidade dos mencionados ninjas.

 Graças à sofisticação atingida pela engenharia rentista, esse estoque  tóxico fora  fatiado e reempacotado em ‘produtos financeiros’ negociados em escala global.

O artifício destinado a ‘diluir os riscos’ acentuaria a sua natureza sistêmica, transformando-se  em um dos canais de irradiação da crise que alcançaria todas as praças do mundo.

Inclusive essa que no presente momento está sob o ataque das manchetes terminais  da atilada mídia conservadora.

Disposta a tudo para acuar o governo, ela fustiga o demônio do descontrole fiscal para obriga-lo a aceitar a talagada do veneno que há cinco anos entubou o mundo na UTI gastrofinanceira.

Os bons modos corporativos desaconselham.

Mas é forçoso dizê-lo nos dias que correm.

Aqueles que hoje ministram extrema-unção diária ao país   --‘se não for hoje, de amanhã o Brasil não passa’--  são os mesmos sacerdotes da santa inquisição neoliberal que, durante décadas, transformaram o jornalismo econômico numa obsequiosa prestação de serviço ao dinheiro graúdo.

Vigiar e punir quem ousasse afrontar  os interesses dos mercados financeiros  e das agências de risco internacionais era ( é ) a sua pauta de estimação.

Para isso são regiamente retribuídos.

E fazem jus ao diferencial.


O primeiro impulso do jogral midiático quando a tempestade se instaurou, em 2007/2008, foi instar o Brasil a aderir ao afogamento coletivo.

De preferencia com os pés amarrados a uma bola de chumbo de juros altos; as mãos decepadas pelos cortes de um virulento arrocho fiscal.

O BC  brasileiro, dirigido pelo comodoro Henrique Meirelles, aquiesceu de bom grado.

Na noite de 10 de setembro de 2008, quando a água invadia os mercados urbi et orbi, o país era informado de que a operosa autoridade monetária, a mão firme no leme,  subira a taxa de juro, já um colosso de 13%, para graúdos 13,75%.

Arrancou aplausos do jornalismo tupiniquim, o mesmo que agora pede bis.

Cinco dias depois quebrava o  Lehman Brothers.

Na época, o quarto maior banco dos EUA.

O buraco de US$ 3,9 bi na instituição de 159 anos marcaria simbolicamente a temporada de esfarelamento das verdades graníticas com as quais a emissão conservadora tutelava o país até então.

Após o desastroso ato pró-cíclico do BC, o governo Lula soube aproveitar a margem de manobra ampliada pela desmoralização plutocrática e inverteu a ênfase.

Em vez de trazer a crise mundial para dentro do Brasil, como pedia a mídia isenta, ergueu diques para afrontá-la na porta.

Um vigoroso acervo de medidas de extração contracíclica  foi acionado.

Ampliou-se o crédito ao consumo,  programas sociais foram expandidos, desonerações favoreceram o investimento produtivo, fomentou-se um gigantesco plano de habitação, articulou-se uma fornada de urgentes inversões em infraestrutura e logística social.

Enquanto o mundo se liquefazia na maré do desemprego, o país continuou a crescer e a expandir seu mercado de trabalho.
Calcula-se que entre subsídios, renúncia fiscal  e incentivo ao investimento, ademais de ações sociais, a resistência ao naufrágio tenha acumulado gastos da ordem de R$ 400 bilhões.

É em torno dessa conta que se afina a partitura da tragédia fiscal iminente, anunciada agora pelo jornalismo econômico.

Esponja-se na fronteira do acerto de contas.

Os que incitavam o governo a jogar o país ao mar em 2008,  retrucam que o custo de não tê-lo afogado na hora certa acarretou custos  insustentáveis.

Tucanos, de sabedoria econômica comprovada pelos resultados diante de outras crises, endossam o clamor pela eutanásia.

FHC: “Os governos petistas puseram em marcha uma estratégia de alto rendimento econômico e político imediato, mas com pernas curtas e efeitos colaterais negativos a prazo mais longo. O futuro chegou...” (Estadão;03-11-2013)
Recomenda-se vivamente beber a cota do dilúvio desdenhada irresponsavelmente em 2008.

A politização do debate econômico  –que o governo não fez a tempo, abrindo os canais para tanto, e o PT vocaliza de modo delicado--  é o primeiro passo para livrar a agenda da crise desse garrote infernal.

A persistir a hesitação, a hegemonia falida ditará as regras à superação da própria falência, coisa que nem o código de falência do capitalismo permite.

O resultado, aí sim, jogará o Brasil no abismo contornado há cinco anos.

Não há, nunca houve, solução sem custo para os desequilíbrios intrínsecos a um processo de desenvolvimento.

Desenvolvimento exige projeto, força e consentimento.

À democracia compete libertar a economia da fraudulenta camisa-de-força 'técnica' que circunscreve  as alternativas aos limites intocáveis dos interesses dominantes.
Desmoralizada pelos mercados, a política ficará refém dos black blocs de máscara e aqueles, muito mais perigosos,  de gravata de seda.

As escolhas a fazer  não são singelas.

O país precisa do investimento público e privado para adequar uma infraestrutura planejada para a 1/3 da população ao mercado de massa nascido nos últimos anos.

Estamos falando de proporções épicas: em vidas humanas e recursos financeiros.

Nada que se harmonize do dia para a noite.

O crucial é erguer as linhas de passagem, pactuar seus custos, os ganhos e prazos.

A persistir a livre mobilidade dos capitais, do lado externo,  e a captura dos fundos públicos para os juros  da dívida, no plano doméstico, a travessia fica vulnerável à chantagem rentista.

Sobra uma pinguela estreita e oscilante.

Não cabe o Brasil.

Um ano de juro da dívida equivale a 71 anos de merenda escolar diária para 47 milhões de crianças e adolescentes da rede pública brasileira.

É só uma ilustração. Mas também é a síntese das proporções em jogo na arquitetura que será preciso escolher.

A crise desnudou o fatalismo econômico que estruturou a narrativa dominante nas últimas décadas.

Mas alguém precisa dizer que o rei está nu.

E, sobretudo, erguer mirantes de pluralidade para que o país possa enxerga-lo como tal. E a partir daí reescrever a sua própria história.



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