2008: o ano que a mídia esqueceu
Saul Leblon, na Agência Carta Maior
As notícias contraditórias que chegam dos EUA, em recuperação, e da Europa, sob a ameaça de uma deflação que obrigou o BC a derrubar o juro na sua mínima histórica, evidenciam a profundidade de uma desordem financeira que não cederá tão cedo, nem tão facilmente.
A consciência dessa longa travessia é um dado fundamental para a ação política em nosso tempo.
É imprescindível abrir o olhar ao horizonte mais largo das determinações ofuscadas pelo alarido imediatista da mídia conservadora.
A agenda do arrocho fiscal e monetário bate seu bumbo outra vez.
Com objetivos explícitos e implícitos.
De um lado, determinar a natureza das respostas à dura transição de ciclo de desenvolvimento vivida pelo país.
De outro, encurralar a sucessão de 2014 em um ambiente contaminado pela represália iminente das agências de risco e dos investidores à ‘derrocada fiscal’.
É o palanque pronto para aqueles que prometem fazer mais e melhor, restaurando o ‘tripé’, recita a cristã-nova do apocalipse, Marina Silva.
Mudam as moscas. Resgata-se o enredo de 2002.
Nesta 6ª feira, na Folha, colunistas já apregoam a necessidade de se voltar aos bons preceitos da Carta aos Brasileiros, bem como aos mandamentos do Consenso de Washington.
‘Não é que não deu certo; não foi bem aplicado’.
Tudo se passa como se setembro de 2008 nunca tivesse existido no calendário do país e do planeta.
O movimento de expansão do capital financeiro, cuja supremacia determina a dinâmica da economia em nosso tempo, e o faz com a imposição de dramáticos constrangimentos à soberania das nações e às escolhas do desenvolvimento, antecede e explica a crise que o conservadorismo apagou.
Não há economicismo nessa constatação.
A política contribuiu de maneira inestimável para o modo como essa lógica se impôs, a velocidade com que ela se consolidou, a virulência de sua hegemonia e a agonia sem data para terminar de seu poder prevalecente.
A espoleta da maior crise do capitalismo desde 1929 foi o recuo desastroso do controle da Democracia sobre o poder do Dinheiro.
Seu vetor: o desmonte das travas regulatórias impostas ao sistema financeiro no pós-guerra.
De novo: a regressão não foi obra do acaso.
Recuos e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a colonização de seu arcabouço pelos interditos neoliberais, alargaram os vertedouros ao espraiamento de uma dominância financeira que se tornou ubíqua em todas as esferas da vida.
A queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, sancionou-a no imaginário social como uma segunda natureza.
Era o fim da história, diziam os áulicos.
Não era, mostrou setembro de 2008.
Mas a sociedade que cedeu a soberania ao suposto poder autorregulador dos mercados comprometera fortemente a sua capacidade política de gerar antídotos ao algoz.
A atrofia ideológica dos partidos progressistas, por exemplo.
Com ela corroeu-se a principal fonte de restauração do interesse público sobre a supremacia do dinheiro.
A combustão não foi espontânea.
Um jornalismo rudimentar no conteúdo, ressalvadas as exceções de praxe, mas agressivo na abordagem, capturou o discernimento histórico com uma camada de verniz naval de legitimidade incontrastável.
Durou décadas.
Deformou toda uma geração de jornalistas e de lideranças políticas.
Irradiou descrédito e desinteresse na política e no debate do desenvolvimento.
A economia tornou-se um templo sagrado, dotado de leis próprias, revestido de esférica coerência endógena, avesso ao ruído das ruas, das urnas e das aspirações por cidadania plena.
Alguma dúvida sobre o ventre de origem da revolta black bloc?
A crise mundial açoitou impiedosamente a sabedoria excretada nessa endogamia religiosa entre o circuito do dinheiro especulativo e o noticiário conservador.
Para dizê-lo de forma educada, a pauta dos mercados autorregulados revelou-se uma fraude.
Gigantesca.
Seus pressupostos, os valores por ela veiculados adernam junto com o seu objeto há cinco anos.
Muito pouco, todavia, seria colocado em seu lugar.
Persiste na democracia um vácuo de representação e escrutínio que renova ao mercado a prerrogativa de pautar o país.
É imperioso resgatar as folhas arrancadas do calendário.
Em setembro de 2008, após um ciclo de fastígio da liquidez e do financiamento barato, a ponto de sancionar os famosos créditos ninjas, que bancavam aquisições de imóveis para cidadãos sem renda, sem emprego e sem garantias, deu-se o sabido.
O dominó começou a quebrar pelas sub-primes, lastreadas na evanescente solvibilidade dos mencionados ninjas.
Graças à sofisticação atingida pela engenharia rentista, esse estoque tóxico fora fatiado e reempacotado em ‘produtos financeiros’ negociados em escala global.
O artifício destinado a ‘diluir os riscos’ acentuaria a sua natureza sistêmica, transformando-se em um dos canais de irradiação da crise que alcançaria todas as praças do mundo.
Inclusive essa que no presente momento está sob o ataque das manchetes terminais da atilada mídia conservadora.
Disposta a tudo para acuar o governo, ela fustiga o demônio do descontrole fiscal para obriga-lo a aceitar a talagada do veneno que há cinco anos entubou o mundo na UTI gastrofinanceira.
Os bons modos corporativos desaconselham.
Mas é forçoso dizê-lo nos dias que correm.
Aqueles que hoje ministram extrema-unção diária ao país --‘se não for hoje, de amanhã o Brasil não passa’-- são os mesmos sacerdotes da santa inquisição neoliberal que, durante décadas, transformaram o jornalismo econômico numa obsequiosa prestação de serviço ao dinheiro graúdo.
Vigiar e punir quem ousasse afrontar os interesses dos mercados financeiros e das agências de risco internacionais era ( é ) a sua pauta de estimação.
Para isso são regiamente retribuídos.
E fazem jus ao diferencial.
O primeiro impulso do jogral midiático quando a tempestade se instaurou, em 2007/2008, foi instar o Brasil a aderir ao afogamento coletivo.
De preferencia com os pés amarrados a uma bola de chumbo de juros altos; as mãos decepadas pelos cortes de um virulento arrocho fiscal.
O BC brasileiro, dirigido pelo comodoro Henrique Meirelles, aquiesceu de bom grado.
Na noite de 10 de setembro de 2008, quando a água invadia os mercados urbi et orbi, o país era informado de que a operosa autoridade monetária, a mão firme no leme, subira a taxa de juro, já um colosso de 13%, para graúdos 13,75%.
Arrancou aplausos do jornalismo tupiniquim, o mesmo que agora pede bis.
Cinco dias depois quebrava o Lehman Brothers.
Na época, o quarto maior banco dos EUA.
O buraco de US$ 3,9 bi na instituição de 159 anos marcaria simbolicamente a temporada de esfarelamento das verdades graníticas com as quais a emissão conservadora tutelava o país até então.
Após o desastroso ato pró-cíclico do BC, o governo Lula soube aproveitar a margem de manobra ampliada pela desmoralização plutocrática e inverteu a ênfase.
Em vez de trazer a crise mundial para dentro do Brasil, como pedia a mídia isenta, ergueu diques para afrontá-la na porta.
Um vigoroso acervo de medidas de extração contracíclica foi acionado.
Ampliou-se o crédito ao consumo, programas sociais foram expandidos, desonerações favoreceram o investimento produtivo, fomentou-se um gigantesco plano de habitação, articulou-se uma fornada de urgentes inversões em infraestrutura e logística social.
Enquanto o mundo se liquefazia na maré do desemprego, o país continuou a crescer e a expandir seu mercado de trabalho.
Calcula-se que entre subsídios, renúncia fiscal e incentivo ao investimento, ademais de ações sociais, a resistência ao naufrágio tenha acumulado gastos da ordem de R$ 400 bilhões.
É em torno dessa conta que se afina a partitura da tragédia fiscal iminente, anunciada agora pelo jornalismo econômico.
Esponja-se na fronteira do acerto de contas.
Os que incitavam o governo a jogar o país ao mar em 2008, retrucam que o custo de não tê-lo afogado na hora certa acarretou custos insustentáveis.
Tucanos, de sabedoria econômica comprovada pelos resultados diante de outras crises, endossam o clamor pela eutanásia.
FHC: “Os governos petistas puseram em marcha uma estratégia de alto rendimento econômico e político imediato, mas com pernas curtas e efeitos colaterais negativos a prazo mais longo. O futuro chegou...” (Estadão;03-11-2013)
Recomenda-se vivamente beber a cota do dilúvio desdenhada irresponsavelmente em 2008.
A politização do debate econômico –que o governo não fez a tempo, abrindo os canais para tanto, e o PT vocaliza de modo delicado-- é o primeiro passo para livrar a agenda da crise desse garrote infernal.
A persistir a hesitação, a hegemonia falida ditará as regras à superação da própria falência, coisa que nem o código de falência do capitalismo permite.
O resultado, aí sim, jogará o Brasil no abismo contornado há cinco anos.
Não há, nunca houve, solução sem custo para os desequilíbrios intrínsecos a um processo de desenvolvimento.
Desenvolvimento exige projeto, força e consentimento.
À democracia compete libertar a economia da fraudulenta camisa-de-força 'técnica' que circunscreve as alternativas aos limites intocáveis dos interesses dominantes.
Desmoralizada pelos mercados, a política ficará refém dos black blocs de máscara e aqueles, muito mais perigosos, de gravata de seda.
As escolhas a fazer não são singelas.
O país precisa do investimento público e privado para adequar uma infraestrutura planejada para a 1/3 da população ao mercado de massa nascido nos últimos anos.
Estamos falando de proporções épicas: em vidas humanas e recursos financeiros.
Nada que se harmonize do dia para a noite.
O crucial é erguer as linhas de passagem, pactuar seus custos, os ganhos e prazos.
A persistir a livre mobilidade dos capitais, do lado externo, e a captura dos fundos públicos para os juros da dívida, no plano doméstico, a travessia fica vulnerável à chantagem rentista.
Sobra uma pinguela estreita e oscilante.
Não cabe o Brasil.
Um ano de juro da dívida equivale a 71 anos de merenda escolar diária para 47 milhões de crianças e adolescentes da rede pública brasileira.
É só uma ilustração. Mas também é a síntese das proporções em jogo na arquitetura que será preciso escolher.
A crise desnudou o fatalismo econômico que estruturou a narrativa dominante nas últimas décadas.
Mas alguém precisa dizer que o rei está nu.
E, sobretudo, erguer mirantes de pluralidade para que o país possa enxerga-lo como tal. E a partir daí reescrever a sua própria história.
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