28 março 2016

UM POUCO DA HISTÓRIA

Brasil, capital Curitiba

Lula ministro leva o complô e a incitação à desordem ao paroxismo

Mino Carta, na Revista CartaCapital


Evaristo Sa/AFP
Lula-e-Dilma
Lula e Dilma tomam a decisão mais corajosa e arriscada das suas vidas políticas


Meu caro e velho amigo Luiz Inácio Lula da Silva, com quem falo amiúde pelo telefone e pessoalmente, entende que da negação da política, objetivo do complô urdido contra Dilma, o PT e ele mesmo, surgirão os arrivistas à Berlusconi, como se deu na Itália depois da Operação Mani Pulite.
Na minha visão, a comparação está errada, bem como está quem vê semelhanças com o advento do fascismo e do nazismo. O Brasil é único na moldura do mundo contemporâneo. Trafegamos entre a Idade da Pedra e a Idade Média.
Fascismo e nazismo foram deflagrados contra a democracia. Contra o Estado de Direito e as instituições que lhe são próprias. Nós vivemos de aparências. De fato, as instituições não funcionam e o Estado de Direito inexiste.
À implantação estável de uma democracia autêntica está longe de bastar a realização de eleições periódicas. A ameaça do golpe vibra sempre no ar em um país onde casa-grande e senzala permanecem de pé e aquela sempre aspira a uma democracia sem povo.
Brasil, capital Curitiba, e daqui, epicentro do complô, saem as diretrizes e as motivações da operação golpista. Atingimos agora a fase aguda da incitação à desordem, para o carnaval dos burguesotes enraivecidos e espanto e desalento dos cidadãos sensatos. Desta situação não emergem tanto Berlusconi quanto Hitler e Mussolini. Nasce o caos.
Considerem as tradições, e nem vale procurar muito longe. O golpe de 1964 foi desferido com a pretensão de salvar a democracia. Aquilo que foi chamado de revolução cuidou de manter um simulacro democrático ao reabrir o Congresso, composto por dois partidos surgidos para confirmar a hipocrisia atávica. Conseguíamos ser únicos, na comparação com Argentina, Chile e Uruguai, vítimas também do golpe inspirado pelos Estados Unidos, prontos também a prestar ajuda material.
Reconheça-se a presença naqueles dias turvos de figuras dignas, na frente o doutor Ulysses, capaz de reunir debaixo da bandeira emedebista todas as resistências à ditadura, de uma irônica anticandidatura quando da “eleição” de Ernesto Geisel e, ao cabo, de comandar as Diretas Já. Vingaram, porém, as indiretas, e redemocratização rima com enganação. Só o governo Lula marcou uma mudança notável, graças a inéditas políticas sociais e de uma política internacional de insólita independência.
Regredimos progressivamente e a perspectiva é o caos. Haverá quem suponha que umPaulo Skaf qualquer, que patrocina antecipadamente as suas festas ao incentivar as manifestações diante do edifício assírio-babilônico da Fiesp na Avenida Paulista, ou um pueril juiz de província alçado a salvador da pátria, representam o dia de amanhã para os buzinados e os paneleiros moradores, frequentemente, de residências bem maiores que o do triplex da praia dos farofeiros.
Manifestação
Ainda há quem saiba quem é Sergio Moro (Foto: Charles Sholl/Estadão Conteúdo)
Disso tudo resulta, pela primeira vez na história brasileira, o risco monstruoso do marasmo na terra de ninguém. Há 39 anos enxergo em Lula a única liderança popular deste país único, na sua imaturidade e ignorância. Na resignação do povo e na prepotência da casa-grande. Na incapacidade da maioria de escapar à pregação midiática para formular sua própria ideia. São estes os brasileiros negados à compreensão de que Lula no governo representa a última esperança de evitar o pior. Não somente para ele próprio e o governo, para todos nós.
O ex-metalúrgico que perdeu três eleições à Presidência da República para ganhar a quarta, reeleger-se e deixar o governo com cerca de 90% de aprovação popular, tomou na manhã de quarta 16 a decisão mais corajosa de toda a sua vida política. O caminho à frente para o novo chefe da Casa Civil da presidenta Dilma Rousseff, de verdade destinado a um papel mais importante do que de hábito reservado à pasta, será certamente muito acidentado, vincado pela incerteza.
A reação enfurecida dos militantes do complô diz que Lula quis simplesmente evitar a prisão e tira disto argumentos para sustar sua atuação como ministro-chefe da Casa Civil. Dilma, ao chamar Lula, não escondeu seu primeiro propósito, mas neste embate cada qual combate com as armas possíveis.
Lula sabe, entretanto, que sua tarefa vai muito além da autodefesa. Há quem lhe atribua qualidades milagreiras, a serpentear nas entranhas da terra nordestina. Certo é que sua liderança é inegável.
Disse-me ele, pelo telefone grampeado, que o primeiro problema a ser enfrentado é a crise econômica. Suas ideias a respeito são conhecidas. Crescimento é a saída. Daí a necessidade de encontrar recursos para investimentos rápidos, assunto de uma reunião já agendada para a sexta 18, ou segunda 21, com a presidenta e o ministro Nelson Barbosa. Ideal keynesiano, um new deal adaptado às circunstâncias e ao volume de dinheiro disponível.
Diretas-Já
Outra foi a razão do comício das Diretas Já, mais um digno capítulo da história do doutor Ulysses (Foto: Rolando Freitas e Sérgio Amaral)
Seria um bom começo. Essa agenda, contudo, há de ser volumosa como uma Bíblia, para salvar um projeto de governo, devolver Dilma às promessas eleitorais e, desde logo, impedir o impeachment. O caminho se afigura especialmente íngreme. Não me surpreende, de todo modo, a serenidade que Lula conserva em meio à tempestade, como se deu quando na dita “condução coercitiva”, operação anticonstitucional e de inaudita violência executada por 200 policiais armados até os dentes.
A transcrição do depoimento de Lula no Aeroporto de Congonhas, deveria, a bem de uma plateia arguta, ser transformada em peça do teatro do absurdo, entregue à pena de Ionesco ou de Beckett. Tudo indica que o inquisidor espera por Godot, chega, porém, Lula e o ridiculariza. Com extrema sutileza, que a mídia não registra e o inquisidor não percebe. 
Não falta quem, escriba dos jornalões, aluda aos palavrões com que o depoente recheou algumas de suas respostas, e clame contra a “baixaria” digna de um botequim. A linguagem icástica do ex-metalúrgico não haveria de chocar em um país cuja elite prima pela vulgaridade, traço comum dos moradores da casa-grande e dos aspirantes aboletados no sótão.
Estão nessas páginas passagens fartas a merecer a hilaridade, sem contar a inutilidade cômica das perguntas sobre o funcionamento dos Instituto Lula ou sobre o trabalho de lobista desenvolvidos por Lula na qualidade de presidente da República, a favor de obras de empresas brasileiras no exterior. Sustenta o delegado inquisidor estar apenas em busca da verdade. Responde o interrogado: se for atrás da verdade, mande prender quem diz que o apartamento é meu.
O delegado evoca a delação premiada de Fernando Baiano: afirmou ter ouvido que um amigo do ex-presidente, José Carlos Bumlai, deu 2 milhões de reais à nora de Lula. E o interrogado, impassível: tenho quatro noras e gostaria de saber onde acabou este dinheiro. E o delegado: por que, ao assumir a Presidência, em 2003, Lula trocou a diretoria da Petrobras.
O interrogado: era tudo tucano, um deles foi trabalhar com Eike Batista e o afundou. E sobre as doações do Instituto, Lula acentua que certa empresa deu o dobro a Fernando Henrique. Enfim, constata que ninguém dá dinheiro sem ser solicitado, até o dízimo não é espontâneo, “se o pastor não pede, o cristão vira as costas e vai embora”.
Em duas oportunidades, Lula diz do seu desapontamento sem alterar o tom: “Eu ando muito p. da vida porque a falta de respeito e a cretinice comigo passaram da conta”. E ainda: “Espero que, quando tudo isso terminar, alguém peça desculpas, que alguém fale ‘desculpa, pelo amor de Deus’”.
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As semelhanças apavorantes entre a marcha de 1964 e o desfile de 2016 (Foto: Estadão Conteúdo e Miguel Schincariol/AFP)
Uma pesquisa Datafolha relata que mais de 70% dos entrevistados aprovam a violência praticada pela polícia contra Lula, na sexta 4. Onde sobraram os brasileiros que foram beneficiados durante a Presidência do ex-metalúrgico?
Talvez o habitante do limbo careça de memória. Este é, porém, traço comum à maioria. Tal a chave de entendimento dos eventos dos dias de hoje, ao menos uma das razões. Permito-me andar na contramão.
Faz 52 anos, 19 de março de 1964, postei-me na esquina da Rua Marconi com Barão de Itapetininga para ver passar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Era aquele um dos pontos elegantes de São Paulo, a Livraria Brasiliense de Caio Prado ficava por perto, em frente a uma galeria de arte, um Fasano que servia chá ao som de violinos, lojas como Vogue, Madame Rosita, Old England.
Calçadas apinhadas, um helicóptero sobrevoava a área. Entalado no espaço exíguo, o volumoso governador Adhemar de Barros seguia do alto a manifestação, enquanto desfiava um terço sempre extraído do bolso do colete nas oportunidades convenientes. E a caravana passou na direção de um Bósforo espraiado entre o Mappin Stores e o Theatro Municipal, inspirado no Olympia parisiense.
Vinham na frente os inconfundíveis quatrocentões, sócios do Clube Harmonia, mesclados a alguns ousados carcamanos e turcos endinheirados, e a uma turba de fâmulos, camareiras, cozinheiras, mordomos, jardineiros, motoristas, creio não faltassem os pedicuros. Eram seguidos pelos sócios do Paulistano, um degrau abaixo nas escala da aristocracia paulistana, com a provável ausência de mordomos e pedicuros.
Decrescia, assim, aos poucos, a projeção social dos marchadores, todos trajados, porém, à altura do evento, cavalheiros de terno e gravata, muitas damas de tailleur, algumas de chapéu. Falou-se em 500 mil pessoas, como, segundo a Folha de S.Paulo, se deu domingo 13 de março de 2016 e declamou na primeira página do Estadão, estampada a data sobre a foto da maré humana.
Falou-se em 500 mil também por ocasião do comício das Diretas Já, em janeiro de 1984, e aquele, sim, foi um evento empolgante, exemplo de bravura no desafio à ditadura. Ao cabo da manifestação, grupos de participantes caçaram a reportagem da Globo, a se esmerar na condenação do movimento, e um veículo da emissora foi incendiado na Avenida Paulista.
Prova de coragem ainda maior aconteceu quando do culto ecumênico realizado na Catedral da Sé, no sétimo dia da morte de Vlado Herzog, assassinado pelos torturadores da masmorra da Rua Tutoia. Era 31 de outubro de 1975.
Exército tentou bloquear os caminhos de acesso à Sé e dispôs atiradores de elite nas janelas dos prédios em torno da praça, canos de rifles e metralhadoras riscavam sombras oblíquas sobre as fachadas. A missa atendia à convocação do cardeal-arcebispo dom Paulo Evaristo Arns e contava com a pronta adesão do rabino Sobel e do pastor Wright. Quinze mil cidadãos desassombrados lotaram a catedral.
Outro gênero de brasileiros, bem diferente daqueles que marcharam em 64 e desfilaram no domingo 13 e também da moçada de cara pintada aglomerada para celebrar a renúncia de Fernando Collor empurrada pela mesma Globo que o elegera, com a extraordinária contribuição da revista Veja, em cuja redação nasceu a definição “caçador de marajás”.
Paulo-Skaf
Skaf sonha ser o Berlusconi nativo e celebra antecipadamente (Foto: Ayrton Vignola)
Já então declaravam o pretenso combate à corrupção aqueles que a praticam impunemente. Aliás, já disse e repito agora: Collor não cairia não fosse a revista IstoÉ para descobrir a ligação entre a Casa da Dinda e o Palácio do Planalto. Na época comandava a sucursal de Brasília João Santana, hoje preso pela Lava Jato.
A corrupção no Brasil é endêmica, está arraigada no ânimo de um país predado pelos colonizadores, subjugado pelos interesses dos impérios, antes inglês, depois americano, entregue à lei do mais forte, dado à propina, tanto como autor quanto como receptor.
Somos campeões, no dia a dia, no golpe baixo, no passa-moleque, no “levar vantagem”, na trapaça miúda e graúda. Vale perguntar aos nossos botões quanto gastou a Fiesp de inúmeros empresários que preferem ser rentistas em lugar de produtores de bens e serviços para financiar, ao menos em parte conspícua, o desfile do domingo 13. Esta também é uma forma de corrupção.
Favorecidos pelo Fisco que os coloca em pé de igualdade com pobres e remediados, e ainda prontos a comprar o fiscal, os senhores não se emendam porque não precisam. Cuidam, porém, do seu desenho maior, acabar com Dilma, o PT e qualquer veleidade de retorno de Lula. Supõem da sua conveniência estimular a tábula rasa da política para propor como herói Sergio Moro, quem sabe Cássio Conserino, aquele que confunde Hegel com Engels.
A tragicomédia de 64 assume agora duas tonalidades distintas. Seja de ópera-bufa em muitos lances, inclusive nas inconsistentes acusações dirigidas contra Lula. Seja de pura tragédia ao desvendar a possibilidade do seu resultado final: o caos.
Além dos previsíveis bonecos de Lula e Dilma devidamente caracterizados, dos cartazes e faixas carregados de ódio, muitos vieram com filhos e babás, sem descuidar de geladeirinhas portáteis para se abastecer de guaraná, cerveja e até champanhe.
Inúmeros envergam a camisa amarela da CBF, antro de corrupção, de João Havelange, grão-mestre dos seus sucessores na Fifa, a Ricardo Teixeira, de Marin a Del Nero, sem excluir Neymar, a esperança coral de ouros e taças pelos gramados do mundo.
Mas no país privado de Estado de Direito, corruptores e corruptos do tamanho, por exemplo, de Paulo Maluf e Daniel Dantas, precisam ser condenados no estrangeiro para ser atingidos pelo castigo que merecem. Aqui vivem à larga.
Em relação a 64, um fato muito positivo, sinal de progresso em meio ao desbragamento geral. Dois colunistas globais, Merval Pereira e Ricardo Noblat, prontificam-se a insinuar que as Forças Armadas se dispõem a rechaçar as milícias petistas, em caso de distúrbios. Denunciam suas esperanças e as dos seus patrões.
Um documento assinado pelo general Otávio do Rêgo Barros, do Centro de Comunicação Social do Exército, logo esclarece: “Quando empregamos tropas em eventos de pacificação ou de garantia da lei e da ordem, a determinação nos é dada por meio da Presidência da República”.
Em entrevista ao jornal Valor, o general Otávio disse mais: “É essencial que as Forças Armadas, até pela credibilidade que têm, tenham papel completamente institucional e de Estado. Consideramos muito importante que a instituição fique pairando acima de qualquer viés ideológico”.
A postura constitucional das Forças Armadas diante da crise neste momento conforta, bem ao contrário do que ocorre em relação à Suprema Corte de um país único e negativamente peculiar.



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