19 junho 2014

INSULTO É OUTRA COISA

O duradouro espírito da coisa

Lembranças de uma tarde de insultos à uma mulher, no Pacaembu, num dia de Santos x Grêmio. Era 1964

 
 
Paulo Moreira Leite, em seu blogue
 
 
 
É bom tomar cuidado com alguns bonzinhos.
Estou falando daqueles que, depois do insulto a Dilma Rousseff,  decidiram lembrar os palavrões que costumam ser ouvidos nos campos de futebol – uma tradição brasileira, que tornou nossos estádios, durante décadas, um universo patriacal masculino, onde as mulheres só entravam para ser humilhadas e ofendidas.
A sugestão é que tudo é inocente, inofensivo, sem significado maior.  Procura-se até apagar qualquer responsabilidade e toda demonstração de falta de respeito pela avaliação, marqueteira, de que a presidente acabou "saindo como vítima do episódio." Saindo como vítima?   
Lembro de uma tarde de domingo, em janeiro de 1964, no  Pacaembu quando fui assistir a um jogo Santos e Grêmio com meu pai. O jogo entrou para história porque, naquele dia, Gilmar foi expulso e  Pelé terminou a partida com a camisa negra de goleiro. O Santos venceu por 4 a 3 mas não  dá para esquecer aquele jogo, até por causa de um episódio ocorrido antes da partida começar. 
Quando um cidadão apareceu nas arquibancadas acompanhado de uma mulher bonita, de cabelos longos, calça comprida branca, bem justa, o casal foi vaiado e insultado. No máximo da agressão, alguns torcedores atiravam laranjas sobre ela. Humilhados, os dois foram embora. Alguns torcedores riram, divertidos com a cena. Outros se levantavam para berrar mais palavrões. Meu pai, sempre pronto a ensinar os filhos, ficou indignado.
 Em junho de 2014, os bonzinhos – um pouco mais espertos – dedicam-se a nivelar por baixo o debate sobre o insulto a Dilma. Perguntam: como se pode reclamar contra um insulto, num país onde os políticos são xingados todos os dias, por todo mundo? E o discurso do ódio, da raiva?
 Vamos combinar.
  Ódio e raiva – que estão presentes nas melhores famílias -- são sentimentos, que as crianças aprendem a controlar em casa. Mas estão presentes na vida de todos os indivíduos da mesma forma que o afeto e o desejo.
  O insulto é outra coisa.
  É uma demonstração de poder. É um decalque social. Você insulta uma pessoa para poder diminuir sua imagem, atingir sua dignidade, definir espaços – como se mostrou, com palavrões e bagaços de laranja, àquela atrevida mulher de calças brancas.
   A função do insulto é silenciar, não dar direito de defesa. Desumanizar. Apontar quem não tem os mesmos direitos que os demais – e comemorar essa posição de superioridade. Os insultos podem ser perversos, mas deixam seus autores  risonhos, felizes em sua maldade. Em sua mente, estão dando uma lição  às suas vítimas.
    Imagine o que eram os direitos da mulher, há 50 anos. Não podia nem ir a um jogo de futebol. Nem precisamos dizer o que faz a mais recente mulher insultada por uma parcela dos  estádios...
    Os insultos se tornaram um instrumento político em nossa época a partir do nazismo. Leonardo Boff meciona que os nazistas costumavam insultar autoridades, o que não era de estranhar. Em seu esforço cotidiano para construir um poder totalitário, o nazismo dedicava-se a atacar os símbolos do poder democrático, o que implicava em desmoralizar seus representantes. Era uma forma de garantir a seus aliados que nada poderia detê-los – nem rituais desprezíveis da legalidade política. E era uma forma de intimidar advesrários.
   Nessa marcha que conduziu a uma das mais vergonhosas tiranias do século XX, pessoas que se julgavam da elite assumiam atitudes e posturas que costumavam condenar, copiando comportamento que elas próprias consideravam típico da “ralé”, como observa Hanna Arendt.  Espancavam, batiam, xingavam. Não é que os nervos estivessem a flor da pele. Isso aconteceu antes e depois.   Queriam definir novos padrões de convívio social – e direitos políticos – a partir de suas  noções de hierarquia e desigualdade. Em seu apogeu, as hordas nazistas quebravam vidraças, espancavam e humilhavam seus inimigos. Impediam, pela força e também pela ameaça, que saíssem a rua. Quando Hitler invadiu Viena, integrantes  da comunidade judaica foram arrancados de suas casas e forçados a usar escovas de dentes para limpar as calçadas da capital austríaca. Podemos até imaginar o que aqueles homens e mulheres ouviam, enquanto eram obrigados a se curvar – o serviço era feito de joelhos. Podemos ouvir as risadas dos agressores, as ofensas multiplas – como eu ouvia, numa situação bem menos horrorosa, mas também lamentável, no Pacaembu daquele Santos x Grêmio.
   Em 2011, integrantes da comunidade judaica de Higienópolis, bairro vizinho ao Pacaembu, se mobilizaram contra a abertura de uma estação de metrô na região. Discordo da opinião deles. Mas acho que todos tem o legítimo direito de manifestar-se.  Um suposto humorista/jornalista, no entanto, permitiu-se uma ironia macabra e racista, dizendo:
   “Entendo os velhos de Higienópolis temerem metrô. A última vez que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz.”
  Não espanta que, três anos depois, no dia do insulto a Dilma, tenha sido um dos mais ativos para divulgar. É um espírito, entende?
   Só no fim deste texto me dei conta que a chuva de laranjas e ofensas naquela tarde, no Pacaembu ocorreu  num país que, apenas três meses depois, assistiria ao golpe de 1964.
   Foi em São Paulo, que era sede da conspiração civil contra Jango. Entende o espírito da coisa?  
 

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