Fatos e versões
Uma vitória, por exemplo, pode ficar parecida a uma derrota, de tão diminuída e apequenada. Depende do que sobre ela se diz. Por maior e mais extraordinária que seja, os derrotados podem se vingar, ganhando a batalha das versões. Os vitoriosos, em vez de comemorar e receber elogios, ficam na posição de se explicar, se defender. Os perdedores lhes roubam a cena.
Neste fim de campanha eleitoral, à medida que nos aproximamos da data da eleição, a perspectiva de uma vitória de Dilma por larga margem só tem aumentado. Ao que tudo indica, ela vai conseguir o que Lula não conseguiu em nenhuma das eleições que disputou: ganhar no primeiro turno. A crer nos números das pesquisas, ela está prestes a alcançar, já em 3 de outubro, a votação que ele obteve apenas no segundo turno de 2006, quando chegou a 60% dos votos válidos. Não é nada, não é nada, Dilma tem tudo para se tornar, daqui a três semanas, a pessoa mais votada de nossa história.
Enquanto a eleição real avança, a guerra de narrativas sobre seu provável resultado está em curso. De um lado, a que é formulada pelas forças políticas e as correntes de opinião que não conseguiram apoio na sociedade para levar seu candidato à vitória. Do outro, a dos vencedores.
Paradoxalmente, são os prováveis derrotados na batalha eleitoral real que estão em vantagem na briga das versões. Vão perder, ao que parece, na contagem dos votos, mas têm, pelo menos por enquanto, o consolo de fazer que sua interpretação prevaleça.
É o oposto daquilo que o professor Edgar de Decca, da Unicamp, caracterizou há alguns anos. Escrevendo sobre a Revolução de 1930, ele mostrou que ela entrou para nossa história através da narrativa daqueles que a venceram. Tudo aquilo pelo qual se bateram os derrotados foi ignorado ou desconsiderado. Sobre aquele movimento, nossa historiografia só nos conta a versão dos vencedores. Ninguém mais se lembra do que queria o outro lado. Impôs-se a ele “o silêncio dos vencidos”.
Em 2002, Lula e o PT venceram tanto a eleição quanto a batalha das versões. Quando o resultado objetivo foi proclamado, estava pronto um
discurso: era “a vitória da esperança sobre o medo” e o Brasil podia sentir orgulho de sua própria coragem ao colocar na Presidência um metalúrgico. Ninguém deslegitimou o que as urnas disseram.
Se Lula começasse seu segundo mandato depois de uma apertada vitória sobre Alckmin no primeiro turno da eleição de 2006, seria complicado livrar-se da interpretação de que, depois do mensalão, havia diminuído de tamanho. Mas, no segundo turno, cresceu tanto que até seus detratores tiveram que reconhecer que nada indicava que fosse essa a realidade.
Agora, na véspera do que todos calculam ser a eleição de Dilma, está sendo elaborada uma versão que a reduz. Nela, a vitória é apresentada como um misto de manipulação (“usaram o Bolsa Família para comprar o voto dos miseráveis”), ilegalidade (“Lula passou por cima de nossa legislação eleitoral”) e jogo sujo (“montaram um fábrica de dossiês para derrotar José Serra”).
Nesse tipo de combate, não faz a menor diferença se algo é verdade ou não. Como é apenas uma guerra de versões, o que conta é falar alto. Quem tem meios de comunicação (jornais, revistas, emissoras de televisão) à disposição para propagandear seus argumentos, sempre leva vantagem. Pode até ganhar.
Que importa se apenas 20% do voto de Dilma vem de eleitores em cujo domicílio alguém recebe o benefício (ou seja, que ela tem votos suficientes para ganhar no primeiro turno ainda que esses fossem proibidos de votar)? Que importa se nossas leis são tão inadequadas que até uma passeata de humoristas a modifica? Que importa se nada do resultado da eleição pode ser debitado a qualquer dossiê, existente ou imaginado?
Mas fatos são sempre fatos. E as versões, por mais insistentes que sejam, não os modificam. Ganha-se no grito, mas perde-se no voto. Lá na frente, os fatos terminarão por se impor.
Matéria origalmente publicada no Correio Braziliense
Marcos Coimbra
Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi. Também é colunista do Correio Braziliense.
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