29 janeiro 2016

SINTOMA DE DECADÊNCIA

Isto não é jornalismo


Mino Carta, na Revista CartaCapital



 Incomodavam-me, em outros tempos, os sorrisos do sambista e do futebolista. Edulcorados pela condescendência de quem se crê habilitado à arrogância. Superior, com um toque de irônica tolerância. Ou, por outra: um sorriso vaidoso e gabola.
Agora me pergunto se ainda existem sambistas e futebolistas capazes daquele sorriso. Foi, aos meus olhos, por muito tempo, o sinal de desforra em relação ao resto do mundo, a afirmação de uma vantagem tida como indiscutível. Incomodou-me, explico, considerar que a vantagem do Brasil, enorme, está nos favores recebidos da natureza e atirados ao lixo pela chamada elite, que desmandou impunemente.
Quanto ao sambista e ao futebolista, não estavam ali por acaso. Achavam-se os tais, e os senhores batiam palmas. Enxergavam neles os melhores intérpretes do País e no Carnaval uma festa para deslumbrar o mundo.
O Brasil tinha outros méritos. Escritores, artistas, pensadores, respeitabilíssimos. Até políticos. Ocorre-me recordar a programação do quarto centenário de São Paulo, em 1954, representativa de uma metrópole de pouco mais de 2 milhões de habitantes e equipada para realizar um evento que durou o ano inteiro sem perder o brilho.
Lembro momentos extraordinários, a partir da presença de telas de Caravaggio em uma exposição do barroco italiano apresentada no Ibirapuera recém-inaugurado, até um festival de cinema com a participação de delegações dos principais países produtores.
A passar pela visita de William Faulkner disposto a trocar ideias com a inteligência nativa. Não prejudicaram a importância da presença do grande escritor noitadas em companhia de Errol Flynn encerradas ao menos uma vez pelo desabamento do primeiro Robin Hood de Hollywood na calçada do Hotel Esplanada.
A imprensa servia à casa-grande, mas nela militavam profissionais de muita qualidade, nem sempre para relatar a verdade factual, habilitados, contudo, a lidar desenvoltos com o vernáculo. Outra São Paulo, outro Brasil.
Este dos dias de hoje está nos antípodas, é o oposto daquele. A despeito da irritação que então me causava o sorriso do futebolista e do sambista, agora lamento a sua falta, tratava-se de titulares de talentos que se perderam.
Vivemos tempos de incompetência desbordante, de irresponsabilidade, de irracionalidade. De decadência moral, de descalabro crescente. Falei em 1954: foi também o ano do suicídio de Getúlio Vargas, alvejado pelo ataque reacionário urdido contra quem dava os primeiros passos de uma industrialização capaz de gerar proletariado, ou seja, cidadãos conscientes de sua força, finalmente egressos da senzala.
Recortes
Segundo a Folha, Lula carrega o triplex nas costas, igual a mochila
Não cabe, porém, compararCarlos Lacerda com os golpistas atuais, alojados na mídia, grilos falantes dos barões, a serviço do ódio de classe. Lacerda foi mestre na categoria vilão, excelente de fala e de escrita.
Os atuais tribunos de uma pretensa, grotesca aristocracia, são pobres-diabos a naufragar na mediocridade. Muitos deles, como Lacerda, começaram na vida adulta a se dizerem de esquerda, tal a única semelhança. Do meu lado, sempre temi quem parte da esquerda para acabar à direita.
Os sintomas do desvario reinante multiplicam-se, dia a dia. Alguns me chamam atenção. Leio, debaixo de títulos retumbantes de primeira página, que o ex-ministro Gilberto Carvalho admitiu ter recebido certo lobista.
Veicula-se a notícia como revelação estarrecedora, e só nas pregas do texto informa-se que Carvalho convidou o visitante a procurar outra freguesia. De todo modo, vale perguntar: quantos lobistas passam por gabinetes ministeriais ao praticar simplesmente seu mister? Mesmo porque, como diria aquela personagem de Chico Anysio, advogado advoga, médico medica, lobista faz lobby.
Outro indício, ainda mais grave, está na desesperada, obsessiva busca de envolver Lula em alguma mazela, qualquer uma serve. Tanto esforço é fenômeno único na história contemporânea de países civilizados e democráticos. Não é difícil entender que a casa-grande está apavorada com a possibilidade do retorno de Lula à Presidência em 2018, mesmo o mundo mineral percebe.
Mas até onde vai a prepotência insana, ao desenrolar o enredo de um apartamento triplex à beira-mar que Lula não comprou? A quem interessa a história de um imóvel anônimo? Que tal falarmos dos iates, dos jatinhos, das fazendas, dos Rolls-Royce que o ex-presidente não possui?
Este não é jornalismo. Falta o respeito à verdade factual e tudo é servido sob forma de acusação em falas e textos elaborados com transparente má-fé. Na forma e no conteúdo, amídia nativa age como partido político


22 janeiro 2016

CORAGEM

A vez da coragem


Mino Carta e Luiz Gonzaga Belluzzo, na Revista CartaCapital





Desde a vitória eleitoral de Dilma Rousseff em 2014, CartaCapital, nesta e em muitas outras das suas páginas, aponta a única saída possível para a crise econômica que humilha o Brasil: crescer e crescer. O grande exemplo é o New Dealrooseveltiano, inspirado por lord Keynes, mas vale reconhecer que o presidente dos EUA contava com instituições sólidas e com uma base popular politizada. Mais ou menos o contrário da situação atual no Brasil.
Temos Executivo, Legislativo, Judiciário? Cabem ponderáveis, desoladoras dúvidas. Um juiz da província, um punhado de delegados de polícia e de promotores assumem tranquilamente o poder diante da indiferença governista e do comando da PF, enquanto um presidente da Câmara inequivocamente corrupto até hoje comanda a manobra golpista doimpeachment de Dilma Rousseff, legítima presidenta. Está claro, porém, que ela somente, na qualidade de primeira mandatária, tem autoridade para reverter a rota, já a trafegar em pleno desastre.
O tempo que lhe sobra para agir é escasso, é bom sublinhar. O começo da ação tem de se dar antes do início do ano brasileiro, ou seja, depois do Carnaval, conforme nossa grotesca tradição. Caberia a Dilma partir de imediato para o mesmo gênero de investimento público que em 1933 colocou Roosevelt no caminho certo para estancar os efeitos do craque de 1929.
Ao se mover com esse norte, a presidenta teria de enfrentar as iras do chamado mercado, o onipresente Moloch, espantalho do tempo e do mundo, onde, debaixo da sua hegemonia, pouco mais de 270 famílias detêm o equivalente a 50% da riqueza do resto da humanidade. Para decisões de tal porte, de tamanha ousadia, exigem-se coragem, bravura, desassombro além dos limites. A questão é saber se o governo tem estatura para chegar a tanto.
Por ora, é doloroso constatar que o Executivo se deixa acuar, em primeiro lugar pela mídia e por quem esta apoia e protege. Está provado que toda tentativa de mediar, compor, conciliar, fracassou. Há tempo o governo exibe uma assustadora incapacidade de reação, a beirar a resignação. A quem mais, senão a Dilma, compete salvar o País? Creio não exagerar no emprego do verbo.
Pouco importa quanto o FMI propala a nosso respeito. O próprio Banco Central mostra-se agora mais atento às pressões do Planalto do que às do Fundo (leia, logo abaixo, as observações de Luiz Gonzaga Belluzzo). O Brasil dispõe de recursos, a despeito do abandono a que foi relegada a indústria, maiores de quanto supõe a feroz filosofia oposicionista. Por exemplo, a chance de produzir petróleo a 8 dólares por barril, como se lê na reportagem de capa desta edição.
A tarefa que o destino atribui à presidenta é grandiosa e empolgante e lhe garantiria um lugar decisivo na nossa história. Os cidadãos de boa vontade, abertos a um diálogo centrado nos interesses nacionais, hão de esperar que Dilma encontre a força interior para agir.

Em luta contra o Monstro

Nos últimos meses, alguns membros do Copom assopraram um aumento de 50 pontos na já alentada taxa Selic. Às vésperas da reunião do dito Conselho, escudado nas previsões do FMI sobre o PIB brasileiro, o presidente Tombini deu sinais de moderação. Na quarta-feira 20, o Copom manteve a Selic em 14,25%.
A franquia local dos Mestres do Universo manifestou seu aborrecimento. Os Senhores da Finança responderam às trapalhadas de comunicação do dr. Tombini & cia. com antecipações que preconizam elevações brutais da taxa de juros para 2016. A curva de juro longa empinou de forma nunca dantes observada.
Os próximos capítulos da novela “Manda Quem Pode, Obedece que tem Prejuízo” serão certamente dramáticos. Os mandões não arrefecem seu apetites travestidos de sabedoria científica.
As taxas de juros de agiota desempenham a honrosa função de tesouraria das empresas transnacionais sediadas no País, travestindo o investimento em renda fixa com a fantasia do investimento direto. Trata-se, na verdade, de arbitragem com taxas de juros: as subsidiárias agraciadas com os juros do dr. Tombini contraem dívidas junto às matrizes,  aborrecidas com os juros da senhora Janet Yellen ou do senhor Draghi.
Tombini
Selic na mesma, desafio aos Mestres do Universo (Antonio Cruz/ABr)
Essa arbitragem altamente rentável e relativamente segura conta com a participação dos nativos “desanimados”. Juntos, engordam o extraordinário volume de “operações compromissadas” – o giro de curtíssimo prazo dos recursos líquidos de empresas e famílias abastadas.
Aprisionada no rentismo herdado da indexação inflacionária, a grana nervosa “aplaca suas inquietações”, diria lord Keynes, no aluguel diário dos títulos públicos remunerados à taxa Selic.
A eutanásia do empreendedor é perpetrada pelos esculápios do rentismo. A indústria e a industriosidade vergam ao peso dos juros elevados, outrora em contubérnio com câmbio sobrevalorizado. A inflação dos preços administrados e a desvalorização cambial sustentam a indexação. O espectro do passado assombra o futuro. A irreversibilidade do tempo histórico aflige os que acreditam num futuro sem passado.
A economia global governada pela finança é um monstrum vel prodigium, fruto do cruzamento da mula sem cabeça com o bicho-preguiça. 



15 janeiro 2016

A POLÍCIA TRABALHA A FAVOR DOS INTERESSES DA CASA-GRANDE

Conspiração policial


Mino Carta, na Revista CartaCapital



Já tivemos um exército de ocupação, convocado pela casa-grande em 1964. O gendarme indispensável ao golpe, a favor dos senhores com a bênção, não somente metafórica, de Tio Sam. De mais de uma década para cá, somos forçados a colher fortes indícios de que contamos com uma polícia para cuidar dos interesses da minoria privilegiada.
Aquelas Forças Armadas derrubaram o governo. Esta polícia, ou pelo menos alguns de seus núcleos, conspira contra o governo. O tio do Norte está aparentemente mais distante, mas não desgosta de um satélite em lugar de um país independente.
A postura conservadora da caserna, em momentos diversos francamente reacionária, sempre arcou com um papel poderoso, quando não decisivo, na história do Brasil.
Hoje, graças também a um comando firme e responsável, mantém a atitude correta na moldura democrática, a despeito dos esforços da mídia nativa para oferecer eco a vozes discordantes de reduzido alcance. A defesa do status quo ficou para a Polícia Federal?
A PF não foi treinada para a guerra, dispõe, porém, de armas afiadas para conduzir outro gênero de conflito, similar àquele da água mansa que destrói pontes.
Um dos instrumentos usados para atingir seus objetivos com a expressão de quem não quer coisa alguma é o vazamento, a repentina revelação de fatos do seu exclusivo conhecimento, graças ao fornecimento de informações destinadas ao segredo e, no entanto, entregue de mão beijada e por baixo do pano a órgãos midiáticos qualificados para tanto, sem descaso quanto à pronta colaboração do Ministério Público.
Na manhã de terça 12 sou atingido pela manchete da Folha de S.Paulo: “Cerveró liga Lula a contrato investigado pela Lava Jato”. O delator, diz o texto, declara ter sido premiado com um cargo público pelo então presidente da República por quitar “um empréstimo de 12 milhões de reais considerado fraudulento pela Lava Jato”.
Logo abaixo, com título em corpo bem menor em duas colunas, o jornal informa que o mesmo Cerveró “cita Renan Calheiros”. Finalmente, no mesmo corpo e extensão de texto, anuncia-se: “Delator fala em propina sob FHC”.
Incrível: na mesma manhã, o Estadão me surpreende ao se referir apenas ao envolvimento do governo de Fernando Henrique. O jornalão, é evidente, não foi beneficiado pelo vazamento de todo o material disponível.
Estadão redime-se aos olhos dos leitores no dia seguinte e na manchete declama: “Cerveró cita Dilma”. E no editorial principal da página 3, sempre fatídico e intitulado “No reino da corrupção”, alega a abissal diferença entre o envolvimento de Lula e de FHC.
Em relação a este “a informação é imprecisa, de ouvir dizer”. No caso de Lula, a bandalheira é óbvia e desfraldada. Patéticos desempenhos do jornalismo à brasileira. Inúmeros leitores não percebem, carecem da sensibilidade do quartzo e do feldspato.
Nada surpreende neste enredo, próprio de um país medieval, indigno da contemporaneidade do mundo civilizado e democrático. O vazamento de informações sigilosas tornou-se comum há muito tempo nas nossas tristes latitudes, como diria Lévi-Strauss.
Mesmo assim, seria interessante descobrir as razões desta conspirata policial. Inútil, está claro, dissertar a respeito dos comportamentos da mídia. Dos seus donos, o mesmo pensador belga observava: “Eles não sabem como são típicos”.
O cargo de diretor da PF é da exclusiva competência do Palácio do Planalto, que o subordina ao seu ministro da Justiça, no caso, José Eduardo Cardozo.
Fernando-Henrique-Cardoso
A abissal diferença entre a notícia do possível envolvimento de Lula e de FHC nos jornais brasileiros (Valter Campanato/Agência Brasil)

Foi ele quem indicou o delegado Leandro Daiello, aquele que em julho passado proclamou, a bem da primeira página do Estadão: “A Lava Jato prossegue, doa a quem doer”. E a quem haveria de doer?
Nos bastidores da PF, Cardozo é apelidado de Rolando Lero, personagem inesquecível criado por Chico Anysio, o parlapatão desastrado que diz muito para não dizer coisa alguma.
Tendo a crer que Cardozo aplica seu lero-lero em cima da presidenta Dilma e consegue deixar tudo na mesma. De fato, o nosso ministro é tão incompetente no posto quanto vaidoso.
Achou, porém, em Daiello o parceiro ideal. O homem foi capaz de tonitruar ameaças, dentro da PF, contudo,  carece de verdadeira liderança. A situação resulta, em primeiro lugar, dessas duas ausências.
Da conspirata em marcha, vislumbro de chofre três QGs, em recantos distintos. Número 1, escancarado, em Curitiba, onde três delegados dispõem da pronta conivência do Ministério Público e da vaidade provinciana do juiz Sergio Moro, tão inclinado a se exibir quando os graúdos lhe oferecem um troféu.
Os representantes locais da polícia não hesitaram, ainda durante a campanha eleitoral, em declinar suas preferências pelo tucanato, sem omitir referências grosseiras a Dilma, Lula e PT. De onde haveriam de sair os vazamentos se não desses explícitos opositores chamados a ocupar cargos públicos?
Há algo a se apontar no Paraná: a falta de liderança, também ali, de superintendente. Não é o que se dá em São Paulo, onde o chefão recém-empossado decidiu prender um filho do presidente Lula na mesma noite da festa de aniversário do pai, debaixo do olhar indiferente de Cardozo e Daiello. Diante de cenas como essa, o arco-da-velha desmilingue.
O novo superintendente substituía outro da mesma catadura, brindado por serviços prestados por uma das mais cobiçadas aditâncias, como se diz na linguagem policial, em embaixadas localizadas nos mais aprazíveis recantos, Paris, Roma etc. 
As aditâncias fazem a felicidade de alguns, destacados delegados, espécie de prêmio à carreira. Tal seja, talvez, o sonho do superintendente em Belo Horizonte, que se distingue sinistramente por seus desmandos em relação ao governador Fernando Pimentel.
Passou por cima da lei e do decoro para torná-lo seu perseguido em nome de uma autoridade de que carece, como é fácil provar.
Até que ponto haveria um comprometimento político e ideológico entre esses policiais e os partidos da oposição? Vale imaginar que, egressos da chamada classe média, alimentem o descabido ódio de classe de quem acaba de sair do primeiro, ínfimo degrau, e atingiu um patamar levemente superior.
Donde, ojeriza irreversível em relação àqueles que nutrem preocupações sociais. Existem, também, claramente detectáveis, umas tantas rusgas, a soletrar a diferença salarial entre delegados e advogados da União, consagrada a favor destes pela presidenta.
É possível, entretanto, que quem vaza informações sigilosas não se dê conta das consequências? Os conspiradores atuam à vontade, com o beneplácito silencioso dos chefes.



06 janeiro 2016

OTIMISMO E PESSIMISMO

Más notícias, fartura em 2015


Rolf Kuntz, no Observatório da Imprensa




Se a má notícia é a única notícia de fato, como afirma um velho aforismo,  jornalistas de economia tiveram no Brasil um ano de fartura. O balanço de 2015 foi essencialmente um inventário de estragos.  O país chegou a dezembro com as contas oficiais em frangalhos, dívida pública em alta, inflação acima de 10%, retração econômica de mais de 3% e uma crise política sem solução à vista. “Brazil’s fall” (Queda do Brasil) foi título de capa da última edição da revista britânica The Economist.
Além dos danos também foi registrado um esforço de reparação. O pagamento de R$ 72,4 bilhões de pedaladas fiscais foi assunto de primeira página de três grandes jornais – Estado de S. Paulo, Globo e Folha de S. Paulo – no último dia do ano. O governo decidiu liquidar esse valor de uma vez, segundo a explicação mais citada,  para reduzir o risco de impeachment. Se o lance terá esse efeito só se verá nos próximos meses. Mas quantos leitores conhecem de fato a acusação contra a presidente Dilma Rousseff?
Uma boa explicação apareceu raramente nos jornais, tevês e rádios. As pedaladas foram quase sempre descritas como atraso de pagamentos devidos ao BNDES, ao Banco do Brasil, à Caixa e ao FGTS. Em todos os casos, o Tesouro teria retardado a transferência de verbas destinadas a programas oficiais. Mas onde estaria o crime de responsabilidade?
É difícil entender por que um atraso de pagamento, ou de repasse de verba, pode ser considerado um delito punível com a perda de um posto político. O castigo parece desproporcional, e talvez fosse, mesmo, se o deslize do governante fosse apenas um calote temporário. Além disso, seria motivo suficiente para o Tribunal de Contas da União (TCU) recomendar a rejeição do  relatório do Executivo?
A história é só um pouco mais complicada, mas poucas vezes foi exposta com clareza nos meios de comunicação. Em 2012 o governo atribuiu a si mesmo, por decreto presidencial, o direito de só liquidar as contas com os bancos oficiais dois anos depois de apurado o valor devido. Em outras palavras: o governo inventou um meio de se fazer financiar pelos bancos estatais. Mas a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000, proíbe esse tipo de financiamento.
Quem sabe um pouco da história econômica e administrativa do Brasil até os anos 90 deve conhecer os  desmandos políticos e fiscais cometidos com instituições financeiras do setor público. Bancos e caixas eram importantes ferramentas eleitorais e instrumentos de poder tanto pessoal quanto partidário. Quando o Plano Real foi lançado, muitas dessas instituições estavam quebradas ou muito perto disso. O socorro financeiro a Estados teve como contrapartida, em vários casos, o fechamento dessas instituições.
Funcionários do Tesouro logo identificaram o risco das pedaladas fiscais. Advertiram os superiores, mas seus avisos foram desprezados. A história das advertências foi muito bem contada, com base em declarações e documentos, em reportagem de Leandra Peres no Valor. Nenhuma discussão sobre as pedaladas e sobre a deliberada violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, nesse caso, será completa sem uma referência a essa história.
Mas por que descrever o episódio como um caso de pedaladas? Os jornais poderiam ter esclarecido – ou explicado mais cuidadosamente – esse detalhe. A palavra já era usada há um quarto de século, pelo menos,  para descrever formas de levar adiante um negócio em condições financeiras desfavoráveis.
Os truques mais comuns consistiam em assumir novas dívidas para liquidar compromissos de vencimento mais próximo ou em atrasar certos pagamentos para cuidar de outros. A imagem ciclística tem um sentido claro, quando se percebe o lance financeiro. Pedala-se para manter a bicicleta em movimento e para evitar a perda de equilíbrio. Em outros tempos, o substantivo pedalada e o verbo pedalar foram usados no imprensa para descrever jogadas financeiras malsucedidas e nem sempre muito limpas.
A novidade, agora, é a inclusão da pedalada na gestão rotineira das finanças federais. Neste caso, no entanto, há uma particularidade politicamente importante: o recurso ao financiamento do Tesouro por instituições financeiras federais. É prerrogativa dos congressistas propor e aprovar outro entendimento desses fatos. Mas é tecnicamente complicado negar a ocorrência daquele financiamento e, portanto, a violação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
A notícia do pagamento daqueles R$ 72,4bilhões foi parte de um enorme conjunto de informações sobre a crise. Boa parte dos números disponíveis, na semana final do ano, cobria o período até novembro. Mas esses dados eram suficientes para mostrar mais um ano perdido e, quase certamente, para anunciar pelo menos mais doze meses de enormes dificuldades.
De janeiro a novembro o setor público acumulou, em todos os níveis da administração, um déficit primário de R$ 39,52 bilhões – sem contar, portanto, o custo dos juros. Todos os jornais deram destaque ao desastre fiscal e acentuaram um ponto politicamente sensível; com as operações de dezembro  e com o pagamento de mais de R$ 70 bilhões de pedaladas,  seria possível manter o resultado primário dentro do novo limite negociado com o Congresso? Esse novo limite é um déficit primário de R$ 119,9 bilhões em 2015.
Todos os jornais destacaram esses pontos, mas, como sempre, deram pouca importância ao resultado nominal, calculado com inclusão dos juros. Em 12 meses o déficit nominal do setor público bateu em 9,3% do produto interno bruto (PIB), mais que o triplo do limite prescrito para a União Europeia, 3%. Na média, o déficit fiscal dos europeus deve ter ficado abaixo desse limite, em 2015.
Em todo o mundo poucos países têm uma situação fiscal parecida com a do Brasil, quando se considera o resultado geral das contas públicas. Mas também esse detalhe tem sido pouco explorado, apesar de seu valor informativo.
Pouco se avançou, no fim de ano, em projeções para 2016. Os jornais continuaram dependendo principalmente das estimativas de instituições financeiras e consultorias, coletadas semanalmente pelo Banco Central na pesquisa Focus. A mediana das projeções divulgadas no dia 28, segunda-feira, indicou para o novo ano uma contração econômica de 2,81% . Será um resultado desastroso depois da recessão de 3,7% estimada para 2015. A inflação, segundo essas fontes, deve recuar de 10,7% para 6,86%, continuando, muito acima da meta de 4,5% e também do limite de tolerância de 6,5%.
De resto, cada nova notícia tem sido acompanhada, quase invariavelmente, de uma previsão ruim. Exemplo: o novo salário mínimo, R$ 880, deve abrir um buraco de R$ 2,9 bilhões no Orçamento de 2016, porque o custo para a União deve ultrapassar a estimativa já embutida nas contas. Resta para os otimistas, no entanto, uma esperança. Nos últimos cinco anos os fatos foram sempre piores que as projeções iniciais. Como as previsões para o novo ano já são muito ruins, talvez a ordem finalmente se inverta.



AS FONTES DE NOTÍCIAS

Nada a declarar: tudo a esconder


Aldo Schmitz, no Observatório da Imprensa




Em meio à lama de tantos escândalos ficam evidentes as estratégias equivocadas das fontes de notícias – não só dos envolvidos, mas também de seus porta-vozes e assessores. O público já sabe que não atender os jornalistas, responder por meio de notas vazias, dizer que foi “orientado pelo advogado a não falar” ou “nada a declarar” significa “tudo a esconder”.
A isso acrescente-se a manipulação de estatísticas, o engendramento de informações, a fabricação de mensagens subliminares, a distribuição de releases enganosos e a cooptação de jornalistas com o propósito de tornar uma verdade relativa, na versão que lhe convém. Isso tem nome, uma palavra tão estranha quanto essa manobra: tergiversação, ou seja, desculpa, evasiva, rodeio de quem adultera os fatos para maximizar os aspectos positivos e minimizar os negativos, que se universalizou na expressão spin doctor.
Praticado às escancaras por políticos envolvidos em escândalos, empresas em crise e celebridades em apuros, torna-se um “prato cheio” para os jornalistas, pois o público, ávido por conflitos, desconfia da mensagem engendrada e forma-se uma opinião pública passageira e mutante.
Em geral, o jornalista não tem outro propósito senão da produtividade e do sucesso de audiência que os veículos lhe impõem para vender as notícias, uma vez que o negócio da mídia é a “defesa do interesse público”.
Toda fonte almeja relatar as informações positivas de suas ações ou impedir que se espalhe uma versão inconveniente. Para o jornalista isso pouco importa, nem mesmo uma autopromoção ou um factoide. Importa, sim, a noticiabilidade.
Notícias sem contextualização nem contraditório
Na contrafação dos acontecimentos reais, os “fatos” são deliberadamente planejados e roteirizados pelas fontes para serem noticiáveis. Trata-se de estratégias para induzir o público a acreditar que um evento artificial seja um fato.
Geralmente, nessa situação, as fontes tergiversam uma “realidade”, produzem uma versão da “verdade relativa” para persuadir o público. Para reverter os fatos negativos, essas fontes buscam controlar a situação “a ferro e fogo” com o propósito de neutralizar opiniões contrárias.
Usam as técnicas e o saber jornalístico para fazer publicidade, buscam no jornalismo, por ser polifônico e controverso, um espaço para legitimar seus discursos e falas relevantes que nutrem o noticiário, entregando aos jornalistas tudo “mastigadinho”, pronto para publicar.
Desse modo, ocorre a comodidade dos jornalistas, que publicam parcialmente ou na íntegra seus releases. Assim, a cobertura jornalística torna-se burocrática, menos investigativa (as notícias são de investigações dos outros) e os conteúdos muito semelhantes.
Esse fenômeno leva a mídia a ser pautada, em vez de pautar, já que prefere o regalo da informação pronta e ouvir as mesmas fontes. Isso resulta em notícias sem contextualizações nem o contraditório, princípios básicos do jornalismo. Enfim, os jornalistas se tornam estenógrafos, escribas.
Também há uma notável interferência das redes sociais digitais, que impõem uma “escravidão digital” viciante e uma “liberdade de expressão” fascista liberal na incondicional aprovação ou reprovação de qualquer ideológica.
Portanto, “nada a declarar” é bem mais que uma frase de efeito.
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Aldo Schmitz é jornalista, mestre em Jornalismo e doutor em Sociologia Política. É autor dos livros Fontes de notícias (2011) e Jornalista a serviço das fontes (2015)