30 abril 2014

PESQUISAS ELEITORAIS

Conhecimento e voto


Marcos Coimbra, na Revista CartaCapital





A tomar pelas pesquisas, a eleição presidencial de 2014 é peculiar em um aspecto importante. Nela, o nível de conhecimento dos candidatos cresce lentamente e parece ter pouca relação com a evolução das intenções de voto.
Não estamos, é claro, falando de Dilma Rousseff. Há três anos e meio no cargo, todo mundo sabe quem ela é. A novidade é o que acontece com Aécio Neves e Eduardo Campos. O conhecimento a respeito de ambos avança de forma diferente do que vimos em eleições passadas.
Desde o fim de 2012, a parcela do eleitorado que diz conhecer o candidato do PSDB passou de 36% para 49%, de acordo com a pesquisa CartaCapital/Vox Populi de abril. No mesmo período, os que conhecem Eduardo Campos foram de 14% para 31%.
Duas considerações. Em primeiro lugar, ainda que obviamente tenha crescido o conhecimento dos dois, o ganho em mais de 18 meses é modesto. Especialmente no caso de Campos, de quem, partindo de um patamar muito baixo, se esperaria performance melhor, dada a visibilidade que adquiriu a partir de setembro de 2013, quando recebeu a adesão de Marina Silva. Em outubro do ano passado, conheciam-no 26% dos eleitores, contingente que agora chegou a 31%, seis meses depois. Nesse ritmo, vai precisar de cinco anos para se tornar conhecido do eleitorado inteiro.
Em segundo lugar, o crescimento dos que conhecem os dois candidatos oposicionistas se deu de maneira linear, sem que fosse identificável qualquer efeito da propaganda de seus partidos. Não aconteceu com eles aquilo que foi típico de eleições anteriores, o rápido incremento do conhecimento dos “candidatos novos” provocado pela propaganda partidária.
Entre março e junho de 2013, o conhecimento de Aécio subiu apenas 3%, apesar de, em maio, ter estrelado as inserções e o programa partidário do PSDB. No segundo semestre de 2013, isso se repetiu: o conhecimento do tucano ficou parado entre julho e outubro, embora tivesse voltado a ser a figura central das inserções e do programa de seu partido em setembro.

Com Campos, a mesma história. No primeiro semestre de 2013, seu nível de conhecimento nada cresceu, apesar da propaganda do PSB que o teve como único destaque. No segundo semestre, foi o assunto Marina Silva que ampliou seu conhecimento, que, de junho a outubro, quase dobrou, indo de 15% a 26%. Nesse patamar, no entanto, quase estagnou até agora, em que pese seu uso monopolista da propaganda do PSB.
O lento avanço do conhecimento de ambos é ainda mais notável se lembrarmos o amplo e favorável tratamento que recebem dos veículos da “grande imprensa”. Enquanto desconstroem Dilma diariamente, apresentam com simpatia indisfarçável os dois oposicionistas.
Mas o mais relevante é que o crescimento do conhecimento de Aécio e Campos não se traduziu em aumento das intenções de voto. Entre setembro de 2013 e abril de 2014, o conhecimento do mineiro cresceu de 41% para 49% e sua intenção de votos permaneceu em 16% e 17%. No mesmo período, o de Campos subiu de 20% para 31%, enquanto seus votos estacionaram em 8%.
Isso sugere que estamos indo para uma eleição em que o conhecimento dos candidatos joga um papel diferente do que teve em 2010. Nela, era a questão central, pois percebia-se que o crescimento de Dilma só dependia disso e que a vantagem de José Serra se esvairia.
Nesta eleição, o conhecimento dos candidatos da oposição cresce devagar e de maneira vegetativa, insensível aos efeitos de mais ou menos mídia. E não se traduz em aumento da intenção de voto.
A principal razão é que vamos fazer uma eleição de reeleição, em que a primeira pergunta que a maioria do eleitorado tem de responder é a respeito do governo, e não sobre os candidatos. O que vemos é que, tirando a minoria hostil ao “lulopetismo”, o eleitor comum não se mostra curioso a respeito dos nomes oposicionistas.
Não é por falta de oferta de candidaturas (pois as suas “ainda” seriam “pouco conhecidas”) que a oposição não cresceu. É por falta de procura.
E daqui a quatro meses estará no ar a propaganda eleitoral. Nela, o argumento a favor de Dilma será visual: a obra feita, sempre maior que a imaginada pela população. Quanto às oposições, vão apresentar algo menos persuasivo: a conversa de que fariam melhor. A petista vai mostrar; os outros, falar.
É por isso que, nas eleições parecidas de Fernando Henrique Cardoso e Lula, quem cresceu quando começou a propaganda gratuita foram os candidatos à reeleição. Há alguma razão para ser diferente agora?

ONDE ESTÁ A GRAVIDADE

Nota de Joaquim Barbosa revela que ele não sabe de nada


Antônio Lassance,  na Agência Carta Maior




Arquivo


Irritado com as declarações do ex-presidente Lula à Rádio e Televisão Portuguesa (RTP), contrárias à condução do processo do mensalão, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, soltou uma nota em defesa do processo e externando sua visão sobre o STF.

Nela, afirma que Lula tem “dificuldade em compreender o extraordinário papel reservado a um Judiciário independente em uma democracia verdadeiramente digna desse nome” e arremata dizendo que o STF é um "pilar essencial da democracia brasileira".

Barbosa avalia que a declaração de Lula "é um fato grave que merece o mais veemente repúdio", e que emite um sinal ruim ao "cidadão comum".

"Cidadão comum", como sabemos, é uma daquelas expressões orwellianas, usadas por quem acha que todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros. Há cidadãos e "cidadãos comuns".

Na condição de "cidadão comum", creio que o fato mais grave e que merece repúdio é alguém que se diz parte de um "pilar da democracia" não admitir o direito de quem quer que seja de criticar o STF, assim como podemos hoje criticar qualquer governo e o Congresso. São todos órgãos do Estado, fundados e mantidos pelo cidadão.

O grave é uma autoridade do Estado se utilizar de seu cargo para conclamar, em uma nota assinada enquanto presidente do Supremo Tribunal Federal, o repúdio a pessoas e a opiniões.

Se alguém tem dificuldade para compreender alguma coisa em matéria de democracia, de uma forma que seja "verdadeiramente digna desse nome", esse alguém é o próprio Joaquim Barbosa.

Qualquer aula de introdução à Ciência Política e qualquer cursinho sobre instituições políticas brasileiras mostram que o pilar da democracia é o princípio da soberania popular. 

Nossa Suprema Corte não é constituída por esse princípio. Não é sócia fundadora da democracia. É fundada por ela. É ramo, e não raiz.

Barbosa poderia ter dito, por óbvio que seja, que o Judiciário é um pilar da Justiça, da liberdade, dos direitos humanos, inclusive contra os riscos dos governos da maioria.

Barbosa poderia e até deveria ter dito que esse não é um órgão democrático e representativo, pois não é eleito, mas que não deve se envergonhar disso. Trata-se de um órgão meritocrático, e até isso pode ser posto em dúvida. Até que ponto os ministros que vão para o Supremo são, de fato, os melhores? Há controvérsias saudáveis a respeito.

A confusão de Barbosa explica, em grande medida, sua dificuldade de distinguir entre a missão do Judiciário e o serviço do justiceiro.

Tal confusão demonstra de onde vem sua obsessão por invadir o espaço reservado aos demais Poderes. Em seu cálculo, o risco institucional vale menos que uma manchete. Daí o gosto pelos saltos triplos carpados hermenêuticos, como disse um ex-ministro daquele mesmo STF, que também gostava de praticar ginástica institucional.

O raciocínio rasteiro que subjaz à sua baboseira retórica revelou-se, não faz muito tempo, na indecisão de Barbosa quanto a sair ou não candidato. Embora já não possa se candidatar em 2014, até hoje ele continua falando e agindo como candidato, e não como presidente de um Poder da República.

Sua "lição" de estadista contra Lula mostra o quanto Barbosa se desentende com o que é ser um estadista. Nem mesmo seu cargo de presidente do Supremo; nem sua assessoria; nem sua toga esvoaçante foram capazes de encobrir seu despreparo na hora de redigir uma nota em que deva expressar uma correta definição sobre o que é e para que serve o STF.

O Supremo é um um órgão essencial, mas hoje tristemente comandado com mão de ferro - e como se isso fosse uma virtude, e não um veneno - por quem não tem qualquer traço de estadista, muito menos de democrata.


(*) Antonio Lassance é cientista político.


Créditos da foto: Arquivo

AUTODESTRUIÇÃO

Quem desmoralizou o STF foi o
próprio STF


Paulo Nogueira, no Diário do Centro do Mundo



barbosa_holofote
Você pode discordar da porcentagem utilizada por Lula para definir o que foi o julgamento do Mensalão.
Lula falou em 80% de critérios políticos e 20% de critérios jurídicos.
O que não dá, a não ser que você seja um fanático antipetista, um caçador de petralhas, é discordar de que os juízes se pautaram muito mais pela política do que pela justiça em si.
O julgamento foi político do início ao fim. Você começa pelo empenho em juntar quarenta réus com um único propósito. Fornecer à mídia – visceralmente envolvida na politização do julgamento – a oportunidade de usar a expressão “Ali Babá e os quarenta ladrões”.
Outras coisas foram igualmente absurdas. Por que, em situações juridicamente semelhantes, Eduardo Azeredo do PSDB percorreu o caminho jurídico normal e os réus do Mensalão foram direto ao Supremo, sem chance, portanto, de outras instâncias?
E depois, como classificar a Teoria do Domínio do Fato, que dispensou provas para condenar?
E a dosimetria, pela qual, numa matemática jurídica abstrusa, condenados tiveram penas maiores do que o assassino serial da Noruega?
Num gesto cínico bizarro, o ministro Marco Aurélio de Mello disse que o STF é “apartidário” para rebater as afirmações de Lula.
Quem acredita nisso acredita em tudo, como disse Wellington. Um simples olhar para Gilmar Mendes – que até a jornalista Eliane Cantanhede num perfil classificou como tucano demais destroi o “apartidarismo”.
O STF se desmoralizou não porque Lula falou nos 80%, mas pelo comportamento de seus juízes.
Ou eles estavam zelando por sua honra e prestígio ao posar festivos ao lado de jornalistas “apartidários” como Merval Pereira e Reinaldo Azevedo, como se entre mídia e justiça não houvesse um problema de conflito de interesses?
E quando emergiram as condições em que Fux conquistou seu lugar no STF com o famoso “mato no peito” depois de uma louca cavalgada na qual se ajoelhou perante Dirceu?
A completa falta de neutralidade do STF se estenderia para além do julgamento. Como classificar a perseguição de Joaquim Barbosa a Dirceu e a Genoino?
E a tentativa de negar o direito aos chamados recursos infringentes fingindo que a Constiuição não previa isso? Apartidarismo?
Um argumento falacioso que se usa a favor do STF é o seguinte: mas foi o PT quem tinha indicado a maioria dos juízes.
Ora, então indicou mal, a começar por Barbosa, nomeado por Lula. Eles foram antipetistas estridentes a despeito de terem sido nomeados pelo PT.
Seria horrível se agissem como petistas, é claro. Mas foi igualmente horrível terem se comportado como antipetistas.
O que a sociedade queria, ali, era uma coisa chamada neutralidade, uma palavra muito usada hoje por conta do Marco Civil da internet.
Outro argumento desonesto é o que estica os dedos acusatórios para Lewandowski. Ora, Lewandowski não emplacou uma. Foi voto vencido sempre que se contrapôs à manada.
Entre os juízes da primeira leva, foi o único que se salvou, e isto provavelmente vai ficar claro quando a posteridade estudar o Mensalão.
Se pareceu petista foi porque o ar estava viciadamente antipetista. Era como no passado da ditadura: num ambiente tão anticomunista, todo mundo era comunista.
O STF é hoje um arremedo de corte suprema, mas por culpa sua, e apenas sua.
O Mensalão deixou claro, ao jogar luzes sobre o STF, que uma reforma na Justiça é urgente para que o Brasil possa avançar.
 
 
 

STF DESQUALIFICADO

LULA, JOAQUIM E CHACRINHA

Joaquim Barbosa reclama de Lula mas já definiu STF como "maioria de circunstância" com "argumentos pífios"

 
Paulo Moreira Leite, em seu blogue

 A irritação do STF com as declarações de Lula sobre a AP 470 é compreensível. Ninguém gosta de ser criticado, muito menos por um político – o mais popular do país -- que falou palavras claras e duras sobre o julgamento.
Palavras que devem ser compreendidas como uma opinião política, direito fundamental assegurado pela Constituição.
Imaginar que uma decisão do STF não pode ser criticada e deve ser sacralizada contraria o comportamento do próprio tribunal, a começar pelo presidente do STF.
Não custa lembrar.
No fim de fevereiro, quando o STF  absolveu os réus pelo crime de formação de quadrilha, Joaquim Barbosa julgou-se no direito de fazer  um pronunciamento, em pleno tribunal, onde empregou termos muito mais graves – alguns podem até ser considerados ofensivos – para se referir a decisão do plenário.
 Ele definiu os juízes que tomaram a decisão como “maioria de circunstância”. 
 Falta de respeito?
Joaquim classificou os próprios embargos que permitiram a revisão -- aprovados com apoio do decano Celso de Mello -- como um “recurso à margem da lei.”
Disse que os ministros empregaram "argumentos pífios". 
 Acusou os colegas de serem tomados por uma  “sanha reformadora”. Sabe o que é sanha? “Rancor, desejo de vingança”, diz o Houaiss.
 Joaquim não dava uma entrevista nem respondia a pergunta de jornalistas. Definiu sua fala como um “alerta a nação.” 
 Usou termos rudes para se referir a um trabalho tão legítimo  como o dele.
 A menos que queria instituir um regime político no qual a judicializaçao inclui o direito de censura a uns e a liberdade a outros, a única reação coerente é aceitar que juízes, políticos, jornalistas, trabalhadores e 200 milhões de brasileiros  possam dar sua opinião.
 O resto é puxa-saquismo e submissão, incompatíveis com a democracia. 
 É por isso que Eduardo Campos e Aécio Neves cometeram um erro feio quando saíram em publico para criticar Lula, mesmo de forma velada. Nem vamos falar que é uma postura inteiresseira, de quem quer ajuda de Joaquim para ganhar Ibope junto a determinados eleitores e fazer pinta de amigo da ordem. Não vamos ser deselegantes.
Nem vamos dizer que é uma forma de gentileza por parte de quem teve aliados -- como o ex-ministro tucano Pirmenta da Veiga -- que receberam dinheiro de Marcos Valério e ficaram de fora da AP 470. Pimenta, como se sabe, embolsou 300 000 reais -- e isso a Polícia Federal apontou logo no começo da investigação. O que aconteceu? Nada lhe aconteceu durante anos. Mais tarde, entrou no mensalão mineiro, tardiamente, de fininho...candidato certo a prescrição por idade. E claro, com direito a duplo grau de jurisdição, se for necessário. 
Não é disso que estou falando. Vamos a substância.
Para quem afirma que as decisões do Supremo não podem ser discutidas, devem ser 100% cumpridas, eu pergunto: se pensam mesmo assim, quando é que eles vão pedir ao Supremo que cumpra a decisão que garantiu a José Dirceu o direito ao regime semi aberto? Tá demorando, vamos combinar.
A coragem para criticar Lula não é mesma para cobrar Joaquim? 
Olha só: Dirceu nunca recebeu uma sentença que, transitada em julgado, o impedisse de sair do presídio para trabalhar. Nunca. Ou seja: nunca recebeu regime fechado como pena.  No entanto, está lá, trancafiado na Papuda, desde 15 de novembro de 2013. 
Já deu para perceber quem está “discutindo” a decisão do Supremo. Quem está "questionando", não apenas com palavras, mas atos. Imagine quem está descumprindo, Eduardo Campos.
Lula? Eu?
Ou o próprio presidente, inconformado com a derrota do rancor da maioria de circunstancia que aplicou um recurso a margem da lei.
Há outro aspecto. Um tribunal que não gosta de ver suas sentenças debatidas deveria ter outro comportamento. Deveria ser mais discreto, mais circunspecto e reservado. Repito que as decisões do STF e de qualquer outra corte podem e devem ser debatidas. Sem isso, a Justiça não avança. Se a população americana jamais discutisse decisões sobre o aborto ele jamais teria sido legalizado, certo?
O problema é outro, também. Nosso Supremo decidiu ser pop. 
Nosso STF faz questão de televisionar os julgamentos ao vivo. Os juízes foram vistos, na AP 470, fazendo até piadinhas e comentários irônicos sobre os petistas. Pudemos assistir, várias vezes, o mesmo Joaquim Barbosa tendo modos grosseiros e furiosos contra seus colegas.  E assim por diante.
Não adianta negar. 
Não saíram máscaras de carnaval de Joaquim? Não teve gente que se achou no direito de chamar Ricardo Lewandovski de Livrandovwski? Ele não foi tratado com grosseria quando foi votar?
E então?
Estamos no mundo pop, gente. Pode ser vulgar, grosseiro, interesseiro, comercial. 
Se queria ser tratado com a reverência de uma Suprema Corte americana, por exemplo, o STF deveria comportar-se de outra maneira, estabelecer outros códigos.
Jamais poderia tentar proibir o cidadão comum de comentar, criticar ou elogiar suas decisões. Isso, repito até cansar, Voltaire, é direito democrático.
Imagine: em 1964 o STF disse que a presidência estava vaga, dando base legal ao golpe. Não era correto dar opinião?
Imagine se todo mundo, agora, tivesse de concordar com a absolvição total de Fernando Collor e achar que não há nada de errado com a condenação completa do PT de Lula? 
O STF em sua fase atual poderia aprender uma nova versão da lição do velho Abelardo Chacrinha, o patrono da moderna comunicação brasileira. 
Chacrinha dizia que quem não comunica se estrumbica. Faltou entender a segunda lição; quem comunica também se estrumbica – quando passa a mensagem errada.  
 
 
 
 

DE VOLTA AOS TEMPOS DA DITADURA

Assassinato do torturador lembra que a
repressão não acabou

Alberto Dines, no Observatório da Imprensa




A parolagem da mídia e das autoridades sobre a morte do tenente-coronel reformado Paulo Malhães nos remete diretamente aos tempos da ditadura.
E não apenas porque a vítima era um notório vilão, torturador confesso, violador assumido dos direitos humanos, figura de proa na máquina da repressão militar e importante testemunha na Comissão Nacional da Verdade.
A repentina volta ao passado dá-se em parte porque reencontramos os mesmos subterfúgios, manhas e evasivas dos tempos em que a linha-dura fazia o que bem entendia e o resto do país se contentava com as migalhas dos releases policiais.
Compreende-se o cuidado do governo, mas ninguém está clamando pela revisão ou revogação da Lei da Anistia. O que chama a atenção e assusta é a cobertura morna, burocrática, de um caso que as autoridades (inclusive federais) não poderiam tratar com tanta displicência e a mídia com tanta ligeireza.
Compreende-se que família e amigos desejassem apressar as providências funerárias. Mas o lado pessoal não pode sobrepor-se aos aspectos legais, morais e humanitários. A morte de um brutamonte não encerra os efeitos das brutalidades. Só comprova que a brutalização está viva. Ativa.
Página aberta
As dúvidas e suspeitas que envolvem o personagem e a sua eliminação não admitem tamanha desatenção e rapidez. A divulgação da guia de sepultamento atendia ao desejo da família de enterrar o corpo, mas acabou criando um clima de “caso encerrado” com a menção a um edema pulmonar, isquemia do miocárdio e miocardia-hipertrófica. Acontece que esta última era pré-existente, as duas primeiras ocorrências podem ter sido causadas por um estresse muito grande (asfixia, por exemplo).
Na segunda-feira (28/4), no quinto dia depois do assassinato, a curiosidade dos jornalões parecia plenamente satisfeita. Ninguém cobrou o laudo local e cadavérico, nem a lerdeza da Polícia Civil do Rio a quem o caso foi encaminhado.

E exceção vai por conta do valente O Dia, do Rio de Janeiro, que em reportagem de Juliana Dal Piva, publicou detalhada entrevista com a viúva Cristina Malhães (a última mulher do militar) onde revela importantes dados sobre a ação por ela testemunhada: o casal foi rendido à luz do dia por três bandidos que estavam com as armas da própria coleção de Malhães. Durante 10 horas ficou presa enquanto os criminosos faziam o serviço. Depois foi ameaçada de morte (ver “Paulo Malhães foi rendido com suas armas”). 
A hipótese inicial de latrocínio só foi descartada na tarde da segunda-feira quando se revelou que afinal a Polícia Federal entrara na investigação e examinaria os computadores do militar. Certamente porque o governo estava incomodado com a cobrança da Comissão de Direitos Humanos da ONU anunciada horas antes.

É possível que a partir de agora a mídia abandone o faz-de-conta informativo dos tempos da autocensura. E lembre-se dos laudos de legistas como o famigerado Harry Shibata que sequer examinava os cadáveres das vítimas da tortura.
A ditadura não é uma página virada, nem se encerra com as rememorações sobre os seus primeiros 50 anos.
 
 
 

JANIO DE FREITAS: DECEPÇÃO COM O MEIO

Melhor, mas pior

Janio de Freitas

Com intervalo de quatro dias, dois dos jornalistas que mais respeito pela integridade e aprecio pela qualidade, Vinicius Torres Freire e Ricardo Melo, levam-me a ser mais uma vez desagradável com o meu meio.

Na Folha de ontem, Ricardo Melo relembra a presença de "representantes do 'mercado'" no Conselho de Administração da Petrobras, quando comprada a refinaria de Pasadena, e pergunta: "Pois bem: onde foram parar nessa história toda Fábio Barbosa, Cláudio Haddad, Jorge Gerdau, expoentes do 'empresariado' brasileiro que, com Dilma Rousseff e outros, aprovaram o negócio? Serão convocados a depor, ou deixa pra lá?".

A pergunta não expõe apenas Aécio Neves, Eduardo Campos, Aloysio Nunes Ferreira e seus subsidiários, que se limitam a explorar, na "história toda" de Pasadena, o que lhes pode dar proveito eleitoral. Os empresários citados não serão "deixados pra lá". Já foram deixados. Pela imprensa. Nas práticas simultâneas de repetir, dia a dia, no noticiário e em artigos, a aprovação do negócio pelo "conselho presidido por Dilma Rousseff" e jamais mencionar os outros conselheiros.

Se o negócio foi aprovado pelo conselho, nos termos e condições expostos aos conselheiros, é óbvio que não houve um votante só. Mas os outros não interessam. Nem é apenas por serem empresários que mais conselheiros também estão dispensados de menção na imprensa. É, só pode ser, porque a exclusividade adotada vem do mesmo objetivo de Aécio Neves, Eduardo Campos e outros. Se a imprensa o faz, ou não, para beneficiar esse ou aquele, pouco importa. Mais significativa é a predominância da prática política.

Também na Folha, dia 24 último, Vinicius Torres Freire observa: "O Datafolha registra um nível de insegurança econômica inédito desde os piores dias de FHC, embora a situação econômica e social seja muito melhor agora".

Algo provoca tal contradição. Não pode ser a percepção espontânea e geral, porque a situação "muito melhor" não lhe daria espaço. O que poderia ser, senão os meios de comunicação desejosos de determinado efeito? Se, apesar da situação melhor, o sentimento é pior, claro que se trata de sentimento induzido. Um contrabando ideológico.

Terminaram depressa as rememorações do golpe de 64. O corporativismo apagou a memória da função exercida pela imprensa no preparo do golpe e no apoio à apropriação do poder, de todos os poderes, pelos militares. Não há, nem de longe, semelhança entre aquela imprensa e a atual. Mas o seu estrato mais profundo, econômico, social e político, mudou menos do que a democracia pede. E conduz às recaídas cíclicas dos meios de comunicação em práticas próprias de partidos e movimentos políticos. Estamos entrando em mais uma dessas fases.

28 abril 2014

VIVENDO E APRENDENDO

O que aprendemos com as Diretas-Já


Antônio Lassance, na Agência Carta Maior




 Há 30 anos, um Congresso Nacional majoritariamente de direita colocava o pé na porta de manifestações populares e enterrava a esperança do povo de eleger diretamente o seu presidente da República.

Depois daquele 25 de abril de 1984, o Brasil, por sorte, nunca mais seria o mesmo. Os brasileiros, também não.

Aprendemos muito com aquela derrota.

Aprendemos que, para se frustrar a expectativa da maioria, basta que alguns não façam nada. A emenda constitucional apresentada pelo então deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT) foi derrotada não só pelos parlamentares que votaram contra, mas, principalmente, pelos que se abstiveram, que foram em número bem maior.

Aprendemos que regimes que não se orientam pela mudança, mais cedo ou mais tarde, são atropelados pelo povo. Viram passado.

Os comícios gigantescos, que exigiam o direito que o povo tem de eleger seu presidente, levaram a ditadura ao seu epílogo. No ano seguinte, as diretas seriam restabelecidas como regra, e uma assembleia constituinte seria convocada.

Aprendemos que mudanças institucionais importantes dependem de grandes mobilizações populares e de uma ampla articulação de atores políticos e sociais. Até de atores que não se bicam, mas que podem caminhar juntos.

As Diretas levaram milhões às ruas e congregaram trabalhadores, estudantes, empresários, artistas, religiosos, políticos.

Aprendemos que, mesmo quando coisas extraordinárias acontecem ao ar livre, diante dos nossos olhos e sendo do conhecimento de todos, a mídia dominante pode simplesmente ignorá-las ou distorcê-las.

Aprendemos que eleger presidentes é essencial, mas eleger um bom Congresso é uma condição obrigatória se quisermos evitar frustrações e para fazer com que as coisas no país andem mais rápido.

Aprendemos que a conscientização é pressuposto da mobilização, e que as manifestações fazem mais do que inundar as ruas de gente. Gera-se uma energia transformadora que fica à espera de quem lhe dê rumo político e consequência prática.

O grande problema das Diretas é o tempo. Passadas três décadas, aquelas mobilizações são patrimônio de toda uma geração que hoje é composta de pais e avós de novas brasileiras e brasileiros.

Essa nova geração não viveu aquele momento. Não compartilhou desse aprendizado.

Precisará aprender, por si só, o que muitos já não podem ensinar.

Terá que caminhar de novo sobre as mesmas ruas que testemunharam um sonho derrotado que despertou vitorioso.

Terá que descobrir que um país é um imenso território, cujas trilhas para um novo caminho dependem da disposição de se caminhar junto.


(*) Antonio Lassance é cientista político.