30 janeiro 2014

A DESIGUALDADE SOCIAL

Folha diz que violência epidêmica
em SP é "aceitável"


Luiz Flávio Gomes, na Agência Carta Maior



O Estado de São Paulo fechou 2013 com taxa de 10,5 assassinatos para cada 100 mil habitantes. Frente a 2012, houve redução de 24,5%. Em 2013, ocorreram 10.954 mortes intencionais. É elogiável a redução dos homicídios. Aliás, uma vida que seja preservada já é um feito extraordinário, sobretudo num país semialfabetizado em que a quase totalidade não sabe o que é a ética fundada no respeito à vida, aos animais, à natureza e ao bom uso da tecnologia. Todo esforço pela vida merece nosso apoio, mas dizer que a taxa citada é “aceitável” ou que se trata “de patamar considerado aceitável internacionalmente” (Folha 18/1/14, p. 1) é uma estupidez sem tamanho, pelo seu senso acrítico e desparametrado.


Acima de 10 assassinados para cada 100 mil pessoas já é violência epidêmica, sem controle, conforme a Organização Mundial da Saúde (da ONU). Aceitável, mas não justificável, é a média de 1,8 assassinatos dos 47 países mais desenvolvidos do planeta (o IDH, as desigualdades e os homicídios têm tudo a ver). A violência em SP, quase 6 vezes mais que essa média, é absurda e “inaceitável”. Com violência epidêmica, nem São Paulo (10,5), governado pelo PSDB, nem o Brasil (27,1, em 2011), comandado pelo PT, pode se dizer decente nesse item. São latrinas da insegurança pública.


O que está por trás da linguagem manipuladora de setores do jornalismo assim como de governos tão díspares como PSDB e PT? O exercício do poder simbólico (Pierre Bourdieu), que se funda na fabricação contínua de crenças no discurso dominante, sobretudo pela mídia (falada, televisada, escrita ou compartilhada). Isso induz o humano vulgar chamado Senso Comum a legitimar esse discurso e se posicionar no espaço social de acordo com seus critérios e padrões. Se andam dizendo que a violência epidêmica é “aceitável”, o Senso Comum acredita nisso. É por meio dessa violência simbólica que se exerce o manipulador poder simbólico.


A soma do Senso Comum com a mídia gerou, desde 70, no campo criminológico e político-criminal, o chamado populismo-midiático-vingativo (veja nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013), que é alimentado pelo pior modelo de capitalismo existente no planeta, o extrativista e parasitário, gerador de extremas desigualdades (como no Brasil e nos EUA) e que tem muito pouco a ver com o elogiável capitalismo evoluído e distributivo, fundado na educação de qualidade universalizada e praticado por Dinamarca, Suécia, Suíça, Holanda, Canadá, Japão, Coreia do Sul etc. (onde são assassinadas em média 1,8 pessoas para cada 100 mil, não 10,5).


(IN)SEGURANÇA PÚBLICA

Por trás da fumaça dos ônibus



Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa




“Depois de 32 ônibus municipais serem incendiados apenas neste mês, o secretário da Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, disse que não descarta a participação do crime organizado nas ações.”
Assim começa o texto que acompanha a fotografia de um ônibus incendiado, no alto da primeira página da edição de quinta-feira (30/1) do jornal O Estado de S. Paulo. Trata-se de um primor do reboleio verbal, que a imprensa paulista costuma usar quando tenta minimizar efeitos negativos de uma notícia.
Ora, dizer que a autoridade começa a desconfiar que eventualmente pode haver uma suposta organização por trás dos ataques aos ônibus é chamar o leitor de burro. Uma rotina de ônibus atacados, sempre com a mesma tática de promover distúrbios para desviar a atenção da polícia, precisa ter uma organização por trás. Se o resultado é um crime, trata-se de uma associação criminosa. Simples assim.
Mas os jornais estão viciados em uma semântica seletiva ao descrever certos eventos, agasalhando expressões que rodeiam o centro do fato, porque a realidade é politicamente indigesta: o governo de São Paulo não sabe lidar com essas questões.
O secretário ainda não entende se é ação de crime organizado, ou “se são movimentos sociais”. Os repórteres também não se interessaram em questionar o que poderia definir essa diferença, nem parecem desconfiar de que o crime organizado pode muito bem estar por trás de mobilizações coletivas.
Por obrigação profissional, os jornalistas devem sempre estar mais próximos da malícia do que da candura. Portanto, precisam desconfiar quando autoridades se valem de platitudes para prestar contas à sociedade de problemas que não conseguem controlar.
Observe-se que não foram “32 ataques a ônibus em menos de 30 dias” como diz a Folha de S. Paulo, número escolhido também pelo outro jornal paulista de circulação nacional. Segundo O Globo, 98 ônibus foram atacados e 32 foram incendiados nesse período, ou seja, o cidadão que mora na periferia de São Paulo vive um cotidiano de riscos e insegurança que o leitor típico dos jornais nem consegue imaginar.
Por alguma razão que o leitor atento pode conjecturar, a imprensa paulista agasalha a explicação que nada explica e reduz o impacto das informações, relativizando a gravidade dos acontecimentos.
Os serviços de “inteligência”
Um texto analítico publicado pelo Estado de S. Paulo associa os incêndios a ônibus com uma resposta de cidadãos ao não atendimento de demandas da população. Os registros da Secretaria da Segurança contabilizam uma variedade de causas imediatas dessas explosões de revolta, entre as quais a ação de integrantes do grupo criminoso conhecido como Primeiro Comando da Capital, o descontentamento de usuários do transporte coletivo, inundações, mobilizações de adolescentes insuflados por criminosos ou protestos contra assassinatos cometidos pela polícia.
O secretário Grella Vieira anuncia mais operações preventivas, o que significa maior presença da polícia nos pontos terminais onde acontecem os ataques, e repete pela milésima vez a expressão que encanta jornalistas: vai usar o “serviço de inteligência”. Os jornais não parecem desconfiar que, em uma década inteira de crises intermitentes, já era tempo de as autoridades terem demonstrado a utilidade de sua “inteligência”.
Não se pode descartar o fato de que, nos extremos da região metropolitana, há muitas razões para descontentamento, e as deficiências do sistema de transporte público são o eixo dessas carências, conforme ficou claro nas manifestações de junho do ano passado. Mas não é difícil concluir que a depredação de ônibus beneficia diretamente as organizações criminosas que constroem seu poder onde o Estado se omite; portanto, queimar ônibus é uma estratégia que interessa ao crime organizado para manter isolados seus domínios.
Seja de iniciativa de associações criminosas, seja resultado do ativismo de adolescentes frustrados em seus desejos de protagonismo, seja o caso de protestos legítimos contra a má qualidade do transporte, é dever da imprensa cobrar ações das autoridades, e não aceitar ainda mais especulações como resposta.
A mídia jornalística tradicional tem faro e espírito investigativo para rastrear o cardápio da comitiva presidencial em viagem oficial ao exterior, mas aceita platitudes de outras instâncias da política quando se trata de uma grave crise social na maior cidade do país.
 
 
 

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA

O "mensalão" do PSDB mineiro e
os direitos fundamentais


Pedro Estevam Serrano, na Revista CartaCapital




Quem tem a curiosidade de acompanhar ocasionalmente meus artigos neste espaço sabe de minhas críticas ao julgamento do chamado caso do "mensalão", da ação penal 470. Em apertada síntese entendi que foram mal observados pela Suprema Corte direitos fundamentais de alguns réus, tais como o do juiz natural, do duplo grau de jurisdição, da coerência nos julgamentos e da presunção de inocência.
A razão de tal inobservância é complexa e ainda impossível de se detectar integralmente, mas certamente alguns de seus elementos já se vislumbram, como, por exemplo, a influência poderosa da mídia no julgamento. Esse papel da mídia na pressão sobre os julgadores e no relato do processo trouxe como efeito outro o uso do julgamento para fins políticos.
Em verdade consolidou-se a tendência que nasceu desde o renascimento de nossa democracia, muito por graça histórica do próprio PT, qual seja o uso de expedientes judiciais com fins políticos. Quando na oposição, o PT inaugurou o uso de medidas junto ao MP e ao Judiciário como forma de combate político. Ocorre aqui não a propalada judicialização da política, mas uma politização da justiça.
Até certo ponto de nossa historia recente essa postura rendeu bons frutos para a sociedade, com ampliação dos poderes do MP para proteção das minorias sociais, dos interesses coletivos, do patrimônio público e da moralidade administrativa e o surgimento de ações judiciais próprias para tanto. Esse caminho, contudo, passa a ir por vias obscuras quando ingressa no percurso autoritário na restrição a direitos fundamentais das pessoas. Quando se cria na sociedade um clima de justiçamento que é abraçado pela jurisdição acriticamente, onde todos agentes públicos disputam o papel do Robespierre em falsete  da ocasião
Obviamente esse clima passa a ser usado de várias formas por vários interesses de grupos organizados e pessoas proeminentes, de interesses nobres e ingênuos aos inconfessáveis e rasteiros.
Consolidado o erro do "mensalão" do PT se avizinha a possibilidade de erros semelhantes no "mensalão" do PSDB por mecanismos semelhantes de acolhimento de pressão indevida.
Embora beneficiado com a correta decisão do STF  de “partir” o caso, enviando para julgamento em instância inferior os réus não titulares de mandato, os processos do chamado "mensalão" mineiro correm o risco de sofrer forte pressão política e midiática de tendência restritiva aos direitos fundamentais dos réus.
Isso porque alguns dos setores políticos que se julgaram atingidos pelos erros do julgamento do "mensalão" petista têm se expressado nas redes sociais, blogs e na mídia comercial exigindo a condenação dos réus do "mensalão" do PSDB de Minas da mesma forma que ocorreram as condenações no "mensalão" do PT, mesmo criticando-as como equivocadas. Ou seja, pleiteiam pela repetição do erro sem lembrar que estão ali como réus pessoas, seres humanos, que devem ter seus direitos fundamentais rigorosamente observados.
Nada mais justo que protestem contra o grave erro de nossa Corte Suprema em relação ao julgamento de alguns réus da ação penal 470, que postulem pela revisão do julgado etc. Mas postular pela condenação de outros na repetição do mesmo erro, pelo simples fato de pertencerem ao partido adversário é um imenso equívoco.
No Fla-Flu exacerbado da conjuntura politica brasileira o que vai pelo ralo são os direitos fundamentais de nossa Constituição, conquistados após ampla e árdua luta contra a ditadura militar, após mais de duas décadas de esforço jurisdicional por sua consolidação jurisprudencial e até hoje não alcançada sua universalização.
Essa disputa partidária legítima, mas cada vez mais mesquinha e menos ideológica não pode comprometer conquista civilizatória única em nossa história. Lamentável que quadros políticos da maior importância tenham sido condenados sem provas, como foram alguns dos réus do chamado "mensalão" petista, mas que esse erro se limite a esse caso e seja posteriormente corrigido é o que se deseja.
Ações judiciais e investigações policiais vêm sendo cada vez mais usadas como instrumentos de luta politica. É bem verdade que isso, em alguma medida, ocorre também nas democracias mais evoluídas do planeta, mas esses países em geral contam com tradições sólidas de proteção e garantia dos direitos dos acusados, o que por aqui vínhamos construindo em nossa Corte Suprema, mas demos passos atrás nos últimos tempos.
É evidente que a corrupção tem de ser combatida com rigor e a moralidade pública preservada, mas não à custa de nossa civilização democrática. Não há democracia ou mesmo vida civilizada sem direito de defesa pleno, presunção de inocência, juiz natural e outros direitos fundamentais.
Em uma democracia, a luta politica de interesses de grupos e partidos políticos que disputam pacificamente o poder é legitima desde que se respeitem as regras do jogo, dentre as quais figuram com máxima importância os direitos fundamentais da pessoa humana. Parecem ser direitos desse ou daquele réu, mas de fato são de todos nós.
 
 
 

OS VERDADEIROS HERÓIS









HEROIS DA CONVERSINHA

Joaquim Barbosa deve a Ação Penal 470 a conversinha de um réu, Roberto Jefferson

 
Paulo Moreira Leite, em seu blogue

 
As afirmações mais recentes de Joaquim Barbosa merecem dois reparos. 
 
Referindo-se a entrevista de João Paulo Cunha, o presidente do STF disse que não costuma ficar de “ conversinha com réus.” 
 
Em outro comentário, reclamou com os jornais que tratam os condenados da Ação Penal 470 como se fossem heróis, quando o lugar dos condenados deveria ser o ostracismo, que seria parte da pena.
 
Começando pela “ conversinha com réus.” Joaquim Barbosa está sendo injusto. A principal testemunha da ação penal 470 é Roberto Jefferson. 
 
Para empregar a liguagem de Joaquim, ele mostrou uma típica conversinha de réu, como notou o revisor Ricardo Lewandovski.  
 
Pense no que seria o julgamento da AP 470 sem a “conversinha” do então presidente do PTB. 
 
Pense na ideia de “ compra de votos".   
 
Na voz de barítono gritando “ sai daí, Zé...sai.” 
 
Pense na teoria do domínio do fato. Que nome dar a isso? Jurisprudência?
Ou é uma conversinha, uma reunião de indícios e personagens? 
 
 
Cadê as provas? 
 
Comprometido pelo depoimento de um protegido nos Correios tão escancarado na captação de dinheiro alheio que foi capaz de embolsar R$ 3 000 de uma pessoa que nem conhecia, o réu Jefferson contra atacou de “mensalão.” 
Pura conversinha. 
 
Não deu provas. Mas a “ conversinha” de Jefferson, tão fraquinha que ele próprio entraria em contradição em outros depoimentos, chegando a dizer que mensalão era criação mental, acabou fazendo um tremendo sucesso. 
 
Mas a conversinha de Jefferson era uma narrativa sob medida para uma denúncia que tinha provas fracas mas queria  a penas fortes. 
Olha só: foi na base dessa conversinha que o Ministério Público, o relator Joaquim Barbosa e tantos ministros falaram em “ compra de votos”  embora não tenha surgido o nome de um único parlamentar vendido nem de um único projeto comprado. 
E assim acabamos diante do “ maior escândalo de corrupção da história”
 
Eta conversinha boa, não? 
 
No puro gogó Jefferson teve a pena reduzida pelos serviços prestados, embora não tenha revelado sequer o que fez com R$ 4 milhões que recebeu do esquema. O que se agradeceu? A conversinha. 
 
Jefferson não foi conduzido a prisão em avião no 15 de novembro, embora outro condenado, em condições análogas, tenha sido embarcado e algemado – sem que nenhum médico tivesse feito uma avaliação adequada.
 
Deve ter sido para não estragar a conversinha de Jefferson que nada menos que 78 volumes do inquérito 2474 foram deixados de lado no julgamento. Provas, fatos, testemunhos e sabe-se mais o que foram ignorados – para não fazer ruído ou quem sabe para não atrasar um julgamento que muita gente achava indispensável que fosse realizado no ano eleitoral de 2012. 
 
Sabemos hoje que nem a acusação contra Henrique Pizzolato, apontado e condenado como “ único responsável “ pelo desvio de R$ 73,8 milhões do Fundo Visanet, resiste aos documentos armazenados sem conversinha.  
Prova-se que Pizzolato não agiu nem poderia ter agido sozinho. Sequer era o responsável pelos pagamentos. 
No mínimo, teria de ser julgado como co-réu. Mas isso, claro, estragaria a conversinha da acusação, não é mesmo?   
Da mesma forma, o relatório do delegado Luiz Fernando Zampronha...
Entende-se, portanto, porque o presidente do STF não quer saber de conversinha de réu. 
 
Mas não se entende por que ele questiona a atenção que os jornais e revistas têm dado aos condenados da ação penal. É uma atenção modesta e especialmente tardia. 
 
Os réus deveriam ter sido ouvidos antes do julgamento, quando poderiam explicar-se, dar argumentos, contrariar o que a acusação dizia. Numa cobertura tendenciosa e até facciosa, como reconhecem mestres do jornalismo, os meios de comunicação preferiram retirar seu direito ao contraditório ou, como se diz no jornalismo, ao outro lado. 
 
Dar a palavra aos condenados, hoje, é uma obrigação. A população tem o direito de saber o que têm a dizer.
 
Embora a legislação reserve ao juiz da Vara de Execução Penal o direito de autorizar ou vetar entrevistas de condenados, é bom não confundir as coisas. 
Ao proibir entrevistas, o que se faz é censurar a liberdade de expressão. Salvo casos que colocam a segurança dos condenados em risco, não vejo justificativa razoável.
 
Por que a proibição? 
Medo da conversinha? 
Joaquim disse: 
 
"Eu tenho algo a dizer: eu acho que a imprensa brasileira presta um grande desserviço ao país ao abrir suas páginas nobres a pessoas condenadas por corrupção. Pessoas condenadas por corrupção devem ficar no ostracismo. Faz parte da pena. No Brasil, estamos assistindo à glorificação de pessoas condenadas por corrupção à  medida em que os jornais abrem suas páginas a essas pessoas como se fossem verdadeiros heróis".
 
É curioso o presidente do STF achar que não possam existir heróis entre os condenados da ação penal 470.
 
Heróis são personagens históricos, reconhecidos, em última análise, pelo povo de um país. Estão além dos tribunais, dos governos, dos homens de fortuna. .
Um tribunal pode ou não mandar prendê-los. Pode dizer que são criminosos de alta periculosidade. Podia, no passado, até aplicar penas de banimento. 
 
Mas não pode decidir seu lugar na memória de um país. Nelson Mandela enfrentou 25 anos de cadeia antes de se tornar o principal herói africano. Passou 20 como  criminoso e terrorista. 
 
Foi alvo de ataques permanentes da elite de seu país e também das potencias internacionais, lideradas por Ronald Reagan e Margareth Thatcher, interessadas na manutenção do apartheid. Nos primeiros diálogos com Mandela, uma comitiva de Thatcher concluiu que, “infelizmente, ele não aprendeu nada após ficar duas décadas na prisão”. Pois é. Eles achavam que a cadeia deveria reeducar.
 
Um tribunal não pode negar ao povo de um país a última palavra sobre  homens e mulheres que fizeram sua história.   
 
José Genoíno foi tratado como criminoso pelos tribunais da ditadura,  aqueles que não tiveram dignidade para investigar suas denúncias de tortura. Saiu da prisão como herói. 
 
José Dirceu ficou um ano preso sem julgamento porque, sem prova nenhuma para acusá-lo, a Justiça Militar temia que fosse obrigada a declarar sua inocência e não marcava julgamento. Voltou do exílio para receber homenagens, reunir multidões, liderar. 
 
Condenados pela ação penal 470, ninguém sabe  o destino que terão. 
No final do século XIX, na França, o capitão Alfred Dreyfus foi condenado por alta traição num julgamento de 72 horas. Quando acharam que era pouco, seus juízes decidiram que ficasse preso a ferros, nos pulsos e nos tornozelos, sob o sol da Ilha do Diabo. Era tortura, ainda que, na época, chamassem isso de castigo.
Bastaram dois anos e alguns personagens decentes para que sua inocência ficasse demonstrada. 
Mas foram necessários dez anos para que, por decisão presidencial, ele fosse colocado em liberdade.
 
Dreyfus não era um herói. Mas tornou-se um símbolo da resistência dos franceses contra o antissemitismo, a favor da democracia e da separação da Igreja e do Estado. 
 
Dirceu, Genoino, serão heróis? Símbolos? 
 
Não sei. Ninguém sabe. 
Não há hipótese, no entanto, de que venham a cair no ostracismo, como deseja Joaquim Barbosa. Isso não se resolve por decreto. 
Ele pode proibir entrevistas, pode pressionar os jornais. Quando Genoino era torturado, eles prestavam serviços de todo tipo à repressão.  
 
Veiculavam histórias forjadas, sob medida para acobertar assassinatos. Ajudaram o golpe militar.  
 
Nós sabemos que nunca faltarão covardes para abaixar a cabeça diante de uma voz autoritária. 
 
Mas o lugar dos homens e mulheres que souberam ligar-se a história de um povo está assegurado e ninguém vai apagar isso. Nem  muita conversinha. 




 


MUJICAR E FRANCISCAR

Precisamos falar sobre Dilma


Paulo Nogueira, no Diário do Centro do Mundo



Dilma
Dilma
Precisamos falar sobre Dilma. Dilma e Lisboa.
Vou, antes, colocar todas as ressalvas. Sabemos que são hipócritas as críticas aos gastos da polêmica parada em Lisboa.
Todo presidente brasileiro se hospeda em hotéis como o de Dilma em Lisboa e come no mesmo tipo de restaurante.
A diferença é que uns são cobrados por isso e outros não. E não só por isso. Uma filha de FHC usava regularmente avião da FAB para ir de Brasília ao sítio da fazenda em Minas para passar os finais de semana. Mas isto não era notícia.
Voltando.
Com todas as ressalvas para o farisaísmo das críticas aos gastos de Dilma em Lisboa, o fato é que é hora de promover um choque de frugalidade e austeridade no uso do dinheiro público no Brasil.
E ninguém melhor que o presidente, ou presidenta, da República para comandar uma mudança de mentalidade.
Os tempos pedem isso.
Dois homens são particularmente inspiradores: um é Pepe Mujica, e o outro é o papa Francisco.
Paro momentaneamente aqui para aplaudi-los. De pé.
Está enraizada na vida pública brasileira uma suntuosidade absurda que só se explica porque o dinheiro gasto para sustentá-la não é de quem gasta.
O dinheiro público é desrespeitado em todas as esferas: dos banheiros reformados e das diárias europeias de Joaquim Barbosa ao caviar de Roseana Sarney, do helicóptero de Sérgio Cabral aos camarões de Renan, é uma farra.
Frugalidade é vital do ponto de vista da simbologia. A mensagem que é passada aos brasileiros comuns quando ela não existe não poderia ser pior. “É assim que gastam o dinheiro que pago de imposto”: é a conclusão da voz rouca das ruas.
A tentação de sonegar aumenta, ao mesmo tempo que baixa a crença na boa fé dos homens públicos – e as duas coisas juntas são péssimas para a construção de um país saudável.
Os mais cínicos dizem que no final é pouco dinheiro, e este é um argumento falacioso. O problema real não são as cifras em si, mas o que elas representam.
Como mudar? Nada melhor que a força do exemplo.
Mujica não existem dois, é verdade. Não estou dizendo que o próximo presidente brasileiro deveria renunciar ao Planalto para ficar num sitiozinho cuidando de suas cabras.
Mas Francisco está provando que você pode conciliar poder com simplicidade. Ele não pode levar no Vaticano a vida simples que tinha na Argentina, onde andava de ônibus e ia comprar pessoalmente seu jornal numa banca de revistas.
Mas ele não se deixou tragar pelos luxos reservados há séculos aos papas. Dentro das circunstâncias, tem a vida mais frugal que poderia ter.
Este é o ponto.
O mundo carece disso.  A cultura da simplicidade é vital no combate ao grande mal de nossos dias: a desigualdade. O oposto dela – o culto da opulência e do consumo conspícuo – acaba levando a uma corrida frenética para ver quem tem mais dinheiro, e a raiz de iniquidade reside aí.
Não é tão difícil assim mudar um costume antigo na vida pública brasileira. Um bom exemplo, ao estilo de Mujica e Francisco, e as coisas começam rapidamente a mudar.
Dilma mesma pode promover esta pequena e necessária revolução caso se reeleja.
Ela pode, e deve, mujicar. Ou se impregnar do franciscanismo do papa. Será um avanço para ela — e para o país.
 
 
 

28 janeiro 2014

ROTEIRO DE CHANCHADA

O Magistrado e a imprensa bandida


Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa



Os três principais diários brasileiros de circulação nacional registraram com zelo a mais recente manifestação do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, que viaja pela Europa em férias oficiais, com direito a diárias e cobertura regular da imprensa. Desta vez, o ministro se queixa da Folha de S. Paulo, que publicou entrevista com o deputado João Paulo Cunha (PT-SP), que foi condenado na Ação Penal 470 mas não pode começar a cumprir sua pena porque o presidente do STF não deixou o mandado assinado. De quebra, atira para todo lado, ao se referir a uma tal “imprensa bandida”.
O noticiário em torno do magistrado ganha contornos de chanchada, aqueles velhos filmes feitos na “Boca do Lixo”, em São Paulo, tal o conjunto de falsos improvisos e dramas capazes de fazer rir.
Observe-se, por exemplo, como o ministro aparece sempre em situações de aparente casualidade, fazendo compras numa loja de departamentos típica da classe média, sentado na poltrona da classe econômica de um avião e caminhando pelas ruas como um cidadão comum. É preciso muita comunicação entre assessor de imprensa e repórteres para criar esse clima de improviso.
Registre-se que os correspondentes e enviados especiais dos jornais estão sempre um passo à frente, esperando-o nos embarques e desembarques, estão informados de que ele chegará em tal lugar a tal hora, e podem contar que ele terá uma frase de efeito para assegurar um lugar de destaque na edição seguinte.
Detalhe: embora tenha recebido regularmente suas diárias como se estivesse a serviço, por conta de palestras que proferiu na França, o presidente do STF encontra-se oficialmente em gozo de férias, mas a cobertura é de chefe de Estado.
Também há muita comicidade nos diálogos, ou melhor, nas falas do ministro, sempre recheadas de expressões fortes e pontuadas por um mau humor digno do Seu Madruga, o irritadiço personagem da série televisiva “Chaves”. Se o observador isolar a severidade que as carrancas do magistrado tentam induzir em suas manifestações, o conjunto apresentado pela imprensa ganha ares de comédia popular.
Mas jornalistas não deveriam aceitar a imputação geral de “imprensa bandida”.
Roteiro de chanchada
Vejamos, então, o capítulo apresentado nas edições de terça-feira (28/1): em outra circunstância “casual” que a imprensa não explica, o presidente da Suprema Corte declara a jornalistas do Estado de S.Paulo,Folha de S.Paulo e O Globo que a imprensa não deveria ter publicado entrevista com o deputado João Paulo Cunha, porque, tendo sido condenado à prisão, o parlamentar tem que permanecer no ostracismo.
À parte o natural questionamento que deveria se seguir a essa afirmação no mínimo controversa, não ocorreu a nenhum dos repórteres observar que o deputado deu a entrevista porque está fora da prisão, e só não foi preso porque o ministro viajou sem emitir o respectivo mandado.
Afora o fato de que os editores do Estado de S. Paulo confundem os sentidos das palavras “mandado” e “mandato”, registre-se que o principal motivo de irritação do ministro foi uma frase do parlamentar condenado, na qual ele afirma que a omissão do presidente do STF, ao viajar sem ter assinado o mandado, foi manobra planejada para se manter no noticiário, mesmo em férias e ausente do país. Foi, segundo o deputado, “pirotecnia para ter mais dois minutos de repercussão”.
O Estado também cita, mas os demais jornais não tiveram acesso, ou preferiram ignorar, uma entrevista concedida pelo magistrado à Radio France Internationale, na qual ele declarou o seguinte: “Há uma certa imprensa bandida no Brasil, com pessoas pagas com fundos governamentais que estão aí para me atacar, enquanto eu faço o meu trabalho”.
“Faço o meu trabalho e estou pouco ligando. Minha honestidade cabe aos brasileiros avaliarem, não a esses bandidos”, completou o ministro, numa demonstração de que se leva em altíssima conta.
Na interpretação do diário paulista, ele se referia à denúncia de que estaria recebendo diárias no valor de R$ 14 mil, mesmo em viagem de férias. O jornal vestiu a carapuça, ao lembrar ter sido o veículo a revelar a informação sobre as diárias, o que coloca seus editores na obrigação de responder ao xingamento.
A menos, claro, que os editores do Estado de S.Paulo acolham a ofensa, e como nas histórias de “amores bandidos”, aceitem apanhar em silêncio.
Isso também é típico das chanchadas.