31 maio 2013

O CASAL

Mudança suspeita


Leandro Fortes, na Revista CartaCapital



Em boa medida, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, caminhava para uma aposentadoria tranquila. Desde a sua recondução ao cargo, em 2011, havia se tornado símbolo de um moralismo seletivo e, por consequência, ídolo da mídia. O desempenho no julgamento do “mensalão” petista o blindou de variados lapsos e tropeços, digamos assim, entre eles o arquivamento das denúncias contra o senador goiano Demóstenes Torres, dileto serviçal do bicheiro Carlos Cachoeira, como viria a demonstrar a Operação Monte Carlo.
A três meses de se aposentar, Gurgel decidiu, porém, unir-se à frente de apoio ao banqueiro Daniel Dantas. E corre o risco de se dar muito mal. Em uma decisão inusual no Ministério Público Federal, ele e sua mulher, a subprocuradora-geral da República Claudia Sampaio, alteraram totalmente um parecer redigido por eles mesmos um ano e três meses antes. Não é só a simples mudança de posição a despertar dúvidas no episódio. Há uma diferença considerável entre os estilos do primeiro e do segundo texto. E são totalmente distintas a primeira e a segunda assinatura da subprocuradora-geral nos pareceres.
O alvo principal da ação é o deputado federal Protógenes Queiroz, delegado federal responsável pela Operação Satiagraha, investigação que levou à condenação em primeira instância de Dantas a dez anos de prisão. Há duas semanas, Gurgel e Claudia Sampaio solicitaram a José Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal, o prosseguimento de um inquérito contra o parlamentar que a própria dupla havia recomendado o arquivamento. Pior: basearam sua nova opinião em informações falsas provavelmente enxertadas no processo a pedido de um advogado do banqueiro, o influente ex-procurador-geral da República Aristides Junqueira.
É interessante entender a reviravolta do casal de procuradores. Em 20 de outubro de 2011, documento assinado pela dupla foi enviado ao STF para tratar de questões pendentes do Inquérito nº 3.152, instaurado pela 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo. A ação contra Queiroz, iniciada pelo notório juiz Ali Mazloum, referia-se a pedidos de quebra de sigilo telefônico do então delegado federal, de Luís Roberto Demarco, desafeto de Dantas, e do jornalista Paulo Henrique Amorim, alvo de inúmeros processos judiciais do dono do Opportunity. O parecer foi encaminhado ao Supremo por causa do foro privilegiado assegurado ao delegado após sua eleição a deputado federal em 2010.
Nesse primeiro texto, Gurgel e Claudia Sampaio anotam: “O Ministério Público requereu a declaração de incompetência do citado juízo para processo e julgamento do feito (...); a declaração de nulidade da prova colhida de ofício pelo magistrado na fase pré-processual, bem como o desentranhamento e inutilização”.
O segundo parecer é completamente diferente. Em 12 de março deste ano, o casal solicita a Toffoli vistas dos autos. Alegam, no documento, que um representante de Dantas os procurou “diretamente” na PGR com “documentos novos”. O representante era Junqueira, e os “documentos novos”, informações sobre uma suposta apreensão de dinheiro na casa de Queiroz e dados acerca de bens patrimoniais do delegado. Tudo falso ou maldosamente distorcido.
Apenas seis dias depois, em 18 de março, Gurgel e sua mulher encaminharam a Toffoli outro documento. Tratava-se do encadeamento minucioso de todas as demandas de Dantas transcritas para o papel, ao que parece, pelo casal de procuradores. Ao que parece, pois o estilo do segundo texto destoa de forma inegável da redação do primeiro. Em 11 páginas nas quais consideram “fatos novos trazidos pela defesa de Daniel Dantas”, o procurador-geral e a esposa afirmam ter cometido um equívoco ao solicitar o arquivamento do inquérito em 2011.
O novo parecer acolhe velhas teses de Dantas para explicar seus crimes. Segundo o banqueiro, a Satiagraha foi uma operação montada por desafetos e concorrentes interessados em tirá-lo do mercado de telefonia do Brasil. O Opportunity era um dos acionistas da Brasil Telecom e há quase uma década vivia em litígio com os demais sócios, a Telecom Italia e os maiores fundos de pensão do País.
A mentira incluída pelos procuradores no pedido de reabertura do caso diz respeito à apreensão de 280 mil reais em dinheiro na casa de Queiroz durante uma busca e apreensão determinada pela 7ª Vara Federal de São Paulo em 2010. Segundo Gurgel e Claudia Sampaio, “haveria registro até mesmo de conta no exterior”, e insinuam, com base em “indícios amplamente noticiados na imprensa”, que o deputado do PCdoB teria um patrimônio “absolutamente incompatível” com as rendas de funcionário público. Citam, na lista de suspeitas, dois imóveis doados ao hoje parlamentar por um delegado aposentado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, José Zelman.
“É incrível, mas o procurador-geral da República plantou provas falsas em um processo do STF a pedido do banqueiro bandido Daniel Dantas”, afirma Queiroz. E Toffoli não só acatou o pedido da Procuradoria Geral como, na sequência, autorizou a quebra do sigilo bancário do deputado e o sigilo telefônico de Demarco. Postas sob segredo de Justiça, as medidas tomadas pelo ministro do STF só foram informadas ao deputado há 15 dias. Sua primeira providência foi exigir do STF uma certidão dos autos de apreensão e busca citados pelo Ministério Público. O parlamentar foi à sala de Toffoli. Recebido pela chefe de gabinete Daiane Lira, saiu de mãos vazias. 

Queiroz solicitou a mesma certidão a Mazloum, que o condenou em 2010 a três anos de prisão por vazamentos de informações da Satiagraha. Uma fonte acima de qualquer suspeita, portanto. Segundo o parecer enviado a Toffoli por Gurgel e senhora, Mazloum ordenara a busca que resultou na apreensão dos tais 280 mil reais. O juiz enviou a certidão ao STF, mas não sem antes declarar publicamente a inexistência de qualquer apreensão de dinheiro na residência do delegado. “Isso é fantasia. Em nenhum momento apareceu qualquer apreensão de dinheiro. Acho grave uma acusação baseada em informações falsas”, afirmou o juiz na quarta-feira 29 ao blog do jornalista Luis Nassif.
O deputado encaminhou uma representação contra o procurador-geral no Conselho Nacional do Ministério Público. Na queixa, anexou diversas informações, entre elas escrituras de seus imóveis. Os documentos provam que seu patrimônio atual foi erguido na década de 1990, quando atuava como advogado e antes de ingressar na Polícia Federal. Zelman, padrinho de batismo de Queiroz, doou ao afilhado dois imóveis em 2006, bem antes da Satiagraha, portanto.
Os procuradores também miraram em Demarco, ex-sócio do Opportunity que travou uma longa batalha judicial contra Dantas.
Com base em notícias publicadas pelo site Consultor Jurídico, de propriedade de Márcio Chaer, dono de uma assessoria de imprensa e um grande amigo do ministro Gilmar Mendes, Gurgel e Claudia Sampaio voltam a uma espécie de bode na sala, um artifício batido recorrentemente evocado pelos advogados do banqueiro: a investigação em Milão de crimes de espionagem cometidos por dirigentes da Telecom Italia. A tese de Dantas, sem respaldo na verdade, diga-se, é que os italianos financiavam seus desafetos no Brasil, inclusive aqueles infiltrados no governo federal e na polícia, para persegui-lo.

Procurado por CartaCapital, Demarco preferiu não comentar o caso, mas repassou três certidões da Procuradoria da República de Milão que informam não existir nenhum tipo de investigação contra ele em território italiano.
Dantas costumava alardear, segundo o conteúdo de escutas telefônicas da Operação Satiagraha, que pouco se importava com decisões de juízes de primeira instância por ter “facilidades” nos tribunais superiores. De fato, logo após ser preso e algemado por Queiroz em 2008, conseguiu dois habeas corpus concedidos pelo ministro Gilmar Mendes em menos de 48 horas. Um recorde. As motivações de Toffoli ao atender o pedido de Gurgel e Claudia Sampaio sem checar a veracidade das informações continuam um mistério. A assessoria do ministro informou que ele não vai se manifestar sobre o assunto por se tratar de processo sob segredo de Justiça.


ECONOMIA

Juro alto, crescimento baixo

Em abril, quando o Banco Central debatia a necessidade de elevar a taxa de juros, escrevi aqui neste espaço.



Paulo Moreira Leite, em seu blogue

Permita-me recordar alguns parágrafos:
“Derrotados em agosto de 2011, quando o Banco Central jogou os juros para baixo, nossos rentistas não se conformam. Possuem um exército de analistas e consultores em militância permanente para a reabertura do cassino financeiro. 

Nos últimos meses, o grande empresariado obteve mais do que imaginava. O governo desonerou a folha de pagamentos. Baixou a conta de luz para consumidores e empresas. Abriu concessões generosas à iniciativa privada na área de infraestrutura. O saldo é um crescimento econômico, sob novas bases, em torno de 3% e 4%. Não é muito, mas pode ser um bom começo.  

A questão central do processo é e sempre foi o juro baixo. O consumidor precisa dele para ir às compras. O empresário também conta com isso para novos investimentos. A certeza do dinheiro barato estimula o crescimento. A incerteza inspira a retirada, o medo. 

Não é preciso um aumento grande. Basta um movimento  na direção aguardada. O impacto negativo será imenso e prolongado. 

Não se manipula com expectativas bilionárias impunemente, como num jogo de videogame.    

O problema é que o imenso capital improdutivo brasileiro, aquele que é tão poderoso e que tem tantas faces invisíveis -- muitas só são reconhecidas quando autoridades aceitam bons empregos ao deixar o governo --, não sabe viver de outra forma. Desfalcado de uma imensa receita assegurada no mercado financeiro, prepara a revanche. 

Está conseguindo colocar a inflação como ponto essencial da agenda. Quando isso acontece, o cidadão já sabe. A ‘defesa da moeda’ é a senha cívica para menos empregos, menos crescimento, menos crédito e menos consumo. 

Do ponto de vista político, é uma armadilha para Dilma, que dentro de um ano e meio enfrentará as urnas onde vai buscar a reeleição. 

Do ponto de vista da sociedade brasileira, é um retrocesso a um modelo concentrador de renda. 

Do ponto de vista econômico, é  um erro trágico e bisonho, que tem um antecedente mortífero. 

Em novembro de 2011, o BC brasileiro cedeu às pressões do rentismo e deu um salto para cima nos juros – jogando a economia, já em declínio em relação ao ano anterior, num mar de incertezas e desconfiança. Erro semelhante, no final de 2008, criou amarras desnecessárias no esforço para livrar o país da catástrofe que se iniciou em 2008. O país recuperou-se em 2010, mas pagou um sofrimento que poderia ter sido evitado.

Ao explicar o colapso europeu dos últimos anos, o Premio Nobel Paul Krugmann vai direto ao ponto. Lembra que o Velho Mundo paga a conta de um Banco Central que fechava os olhos para o crescimento e tinha uma visão obsessiva pela redução da inflação. O resultado foi transformar a Europa num grande cemitério de empregos e esperanças. 
 
Não vamos nos enganar”.
 
Quando o Banco Central, enfim, decidiu elevar os juros, ainda escrevi que gostaria de estar errado em minhas previsões.
 
O crescimento magérrimo do primeiro trimestre de 2013 mostra que aquela primeira elevação não contribuiu – como era previsível – para uma queda significativa da inflação e pode ter atrapalhado um esforço para retomar o crescimento. 
 
Se os próximos meses repetirem aquilo que ocorreu neste início do ano, teremos um crescimento anual de 2,4%.
 
Mas é possível que ocorra uma retração ainda maior, pois o BC acaba de elevar os juros em 0,5%. Ou seja: o dinheiro ficou mais caro, situação clássica para o setor privado mostrar-se ainda mais cauteloso para aplicações em investimentos produtivos – e ainda mais tentado para voltar à ciranda financeira.
 
Há outros complicadores em frente, também. O juro eleva o gasto do governo com seu financiamento. Tudo se torna mais caro e difícil de pagar.
 
O problema é menor quando o crescimento se mantém num patamar razoável. As receitas sobem e as contas fecham. 
 
A coisa se complica quando o crescimento diminui. Podemos apostar que, em breve, as pressões contra o “déficit”, a “gastança” e todos esses lugares-comuns irão subir de tom. 
 
Nos próximos dias as pesquisas de confiança do empresário e do consumidor devem apontar uma previsível queda no otimismo.  
 
Aos poucos, os adversários do governo irão chegar aonde sempre quiseram. Poderão questionar a política econômica em sua maior prioridade, que é a distribuição de renda e o estímulo ao consumo das camadas mais pobres. Mas os adversários não descansam. Preparam o momento de dizer que não existe almoço grátis. 
 
Você acha que estou errado?  




JORNALISMO ECONÔMICO

O copo sobre a mesa


Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa



Os três principais jornais genéricos de circulação nacional saíram na quinta-feira (30/5) com a mesma manchete, todos eles induzindo o leitor a acreditar que o Brasil se encontra à beira do abismo.
>> “PIB decepciona, mas BC eleva juros para conter a inflação”, diz o Estado de S.Paulo.
>> “PIB decepciona, mas BC aumenta juros ainda mais”, ecoa a Folha de S.Paulo.
>> Numa linguagem mais popular, o Globo anuncia: “Nem Pibinho segura juros, que vão a 8%”.
Em todos eles, o viés é o do desastre iminente.
O ponto de partida para a interpretação catastrofista é mais um resultado frustrante do Produto Interno Bruto, que cresceu 0,6% no primeiro trimestre deste ano, na comparação com o mesmo período de 2012. O contraponto é a decisão do Banco Central de elevar a taxa de juros em 0,5 ponto porcentual, surpreendendo previsões da maioria dos analistas credenciados pela imprensa, que esperavam uma taxa de 0,25 ponto porcentual.
Mas há algumas interpretações conflitantes e nem todas sustentam o viés catastrofista indicado pelas manchetes. Por exemplo, a melhoria da produtividade da agropecuária fez o setor crescer 9,7% no período, o melhor resultado em cinco anos. O resultado aponta para menos pressão sobre os preços de alimentos nos próximos meses, segundo algumas análises.
As safras dos principais produtos superaram expectativas: a soja, que tem grande peso na cesta da produção rural, tem uma safra 23,3% maior que a do mesmo trimestre de 2012, sem que tenha sido necessário expandir na mesma proporção a área cultivada, o mesmo acontecendo com o arroz e o milho, gerando uma produção recorde de 185 milhões de toneladas de grãos em 2013. A produção de cana deve crescer mais de 100% no período até junho.
Há um claro descompasso entre a interpretação induzida pelas manchetes e algumas reportagens e análises apresentadas internamente pelos jornais. Interessante observar que o viés negativo é mais acentuado nos comentários de jornalistas não especializados, principalmente colunistas que normalmente se dedicam a temas políticos. Em alguns casos, como no da Folha de S.Paulo, o tom chega a ser triunfalista em seu negativismo, como se fosse o caso, em qualquer circunstância, de comemorar as dificuldades da economia nacional.
Festejando o desastre
Esse descompasso fica mais claro quando se lê com atenção as reportagens internas, entre as quais se registra, por exemplo, um aumento de 4,6% nos investimentos totais na economia, no primeiro trimestre deste ano, em relação ao último trimestre de 2012, o que pode apontar a possibilidade de interrupção da série negativa de desempenho da indústria.
Quanto ao PIB, os gráficos que têm como ponto comparativo inicial o ano de 2011, quando houve uma queda acentuada na produção de riqueza, mostram que o ponto mais baixo do “vale” ficou no terceiro trimestre daquele ano, quando o PIB ficou negativo em 0,1%.
Nos gráficos que abrangem um período maior de tempo, o olhar sobre esse indicador mostra o desenho de uma curva segundo a qual a economia brasileira vem se recuperando gradualmente desde meados de 2012, após um período de estagnação no começo daquele ano.
Embora lenta, há uma retomada neste começo de 2013, e as comparações lineares entre o final do ano anterior e os três meses iniciais deste ano não podem ser consideradas a sério se não levarem em conta as variações sazonais do consumo e o costumeiro desaquecimento do primeiro trimestre.
Finalmente, o gráfico comparativo entre as economias de outros países mostra o Brasil no grupo daqueles com melhor resultado, com um desempenho semelhante ao dos Estados Unidos, inferior à evolução da Coreia do Sul e Japão e superior ao crescimento do México, Inglaterra, Alemanha, França e resto da Europa.
Portanto, há muitas maneiras de interpretar os dados disponíveis.
A oscilação do nível de geração de riqueza se deve, em grande parte, ao esfriamento do consumo, que pode ser atribuído a muitas causas, entre as quais se deve incluir o estado ânimo dos consumidores, algumas altas de preços pontuais, os juros e a sazonalidade de alguns produtos que vinham puxando a economia.
Toda interpretação de dados econômicos e sociais é feita a partir de um recorte específico, e os jornalistas sabem, de antemão, que cada analista vai estar olhando apenas uma fatia do bolo. A escolha de manchetes equilibradas ou catastrofistas é uma decisão editorial, que não contempla necessariamente a realidade objetiva.
Não há como fugir à evidência de que, diante de um copo sobre a mesa, a imprensa tem a tendência de enxergá-lo mais vazio do que cheio.



ÉTICA JORNALÍSTICA

Dentistas queimados


Mauro Malin, no Observatório da Imprensa



O repórter Bruno Paes Manso mostrou em sucinta análise, no jornal O Estado de S. Paulo (29/5), que a decisão de um assaltante de queimar um dentista em São José dos Campos, no Vale do Paraíba paulista, não pode ser atribuída a outro fator senão à exploração midiática sensacionalista de crime semelhante ocorrido um mês antes em São Bernardo do Campo, Grande São Paulo, no qual foi morta a dentista Cinthya Magali Moutinho de Souza.
Sob o título “Superexposição de fatos cruéis pode causar contágio”, Paes Manso afirma que, se o primeiro crime pode ser atribuído a algum distúrbio sádico de seu autor, “o segundo já parece ser resultado de uma espécie de contágio”. Esse raciocínio se sustentará mesmo se e quando, descoberto o criminoso, vier a ser constatado que ele tem problemas mentais.
Sociopatas existem desde que o mundo é mundo, e já se queimavam pessoas antes do homem controlar o fogo, mas seria difícil acreditar que houve apenas coincidência. Basta levar em conta que o criminoso atacou o dentista em seu consultório. Ou será um indivíduo tão primário que não sabe o que é um consultório dentário?
Paes Manso, em sua tese de doutorado na USP, procurou entender a lógica das escolhas feitas por matadores. Retomava indagações motivadoras de seu livro O Homem X – Uma reportagem sobre a alma do assassino em São Paulo (2005), subproduto de dissertação de mestrado para a qual entrevistara duas dezenas de assassinos. É, portanto, alguém acostumado a buscar sob a superfície dos fatos nexos ignorados pelo chamado senso comum.
Um mínimo de bom-senso
Nem tudo é sensacionalismo no noticiário brasileiro de faits divers. Existe por exemplo um compromisso tácito de não noticiar suicídios. Sobretudo os praticados por quem possa pretender ampla exposição. “Se déssemos notícias de gente que se suicidou se jogando da Ponte Rio-Niterói ou do alto do Corcovado, já pensou quanta gente iria querer imitar?”, indaga o veterano repórter de polícia Luarlindo Ernesto, do jornal carioca O Dia.
Mas o noticiário propriamente policial jamais é “neutro”. Pode ser aparentemente voltado contra o criminoso, pedindo justiça, mas nenhum brasileiro ignora que o castigo prescrito para os pobres, a prisão, vale como uma condenação à vida em condições subumanas de superlotação, má-alimentação, carência de atendimento médico e judiciário, humilhação, espancamento, tortura e execução. É o que está por trás, no Brasil, do conceito de justiça. Para os pobres.
Nesse contexto prisional surgiram há vinte anos organizações criminosas que hoje dominam a grande maioria dos presídios do país, além de favelas e bairros pobres onde conquistam ou impõem a solidariedade dos moradores. Foi pelo exercício da violência que se impuseram os esquadrões da morte e, mais recentemente, as “milícias”.
Qualquer jornalista, ou “jornalista”, que nas últimas décadas explorou a hediondez de algum crime para fazer sensacionalismo sabe qual é o resultado de sua pretensa indignação: a truculência e o linchamento, ingredientes de um caldo de cultura propício ao uso da violência policial para roubar e matar, eventualmente abrigada sob pretensa capa de “fazer justiça”.
Repórteres não são mais bandidos
Até quarenta e poucos anos atrás, no Rio de Janeiro, repórteres policiais participavam de batidas, assistiam como convidados a violências ilegais – quando não participavam de sessões de espancamento e tortura. E segundo Luarlindo Ernesto, que entrou pela primeira vez numa redação carioca há 55 anos e passou por muitas delas, repórteres de polícia “eram os principais receptores de suborno, que passavam aos chefes”.
Isso mudou de forma radical. Na maior parte dos casos, os repórteres de polícia são não apenas profissionais honestos e competentes como cidadãos conscientes de seu papel na sociedade. Basta verificar quantos, em grandes centros, foram obrigados a passar temporadas exilados ou escondidos, após ameaças de bandidos e de policiais-bandidos. E, pior: quantos foram assassinados em cidades menores. 
Questionar a espetacularização
Mas mesmo os bons repórteres dificilmente podem fugir do sensacionalismo apelativo que contaminou editores de jornais ditos de qualidade depois que a TV Globo, após o advento no SBT do Aqui Agora, se deixou infectar. A emissora hoje trilha geralmente um caminho mais sóbrio, mas não abre mão de rechear seus jornais de crimes e desgraças.
Foi o mais importante meio de comunicação brasileiro a dar com grande destaque, em tom de alarme e indignada consternação, o assassinato da dentista Cinthya. Imagine-se o tom com que o Brasil Urgente, da Band, e similares abordaram o caso.
Talvez esteja na hora de, mais uma vez, fazer nas redações sérias uma rodada de reflexão sobre a difícil demarcação de limites entre noticiar e assustar, entre noticiar e espetacularizar, entre noticiar um crime horrível e martelar um crime horrível. Será que o assassino da escola de Realengo, no Rio, chegou por geração espontânea à modalidade que escolheu?  



CONFIANÇA

CONSPIRAÇÃO CONTRA A PÁTRIA


Editorial do Jornal do Brasil (30/05/2013)



O mundo inteiro passa por uma crise econômica e social, decorrente da ganância dos banqueiros, que controlam o valor das moedas, o fluxo de crédito, o preço internacional das commodities. Diante deles, os governos se sentem amedrontados, ou cúmplices, conforme o caso e poucos resistem.
A União Europeia desmantela-se: o fim do estado de bem-estar, o corte nos orçamentos sociais, a desconfiança entre os países associados, a indignação dos cidadãos e a incapacidade dos governantes em controlar politicamente a crise, que tem a sua expressão maior no desemprego e na pauperização de povos. Se não forem adotadas medidas corajosas contra os grandes bancos, podemos esperar o caos planetário, que a irresponsabilidade arquiteta.
A China, exposta como modelo de crescimento, é o caso mais desolador de crescente desigualdade social no mundo, com a ostentação de seus bilionários em uma região industrializada e centenas de milhões de pessoas na miséria no resto do país. Isso sem falar nas condições semiescravas de seus trabalhadores – já denunciadas como sendo inerentes ao “Sistema Asiático de Produção”. Os Estados Unidos, pátria do capitalismo liberal e neoliberal, foram obrigados a intervir pesadamente no mercado financeiro a fim de salvar e reestruturar bancos e agências de seguro, além de evitar a falência da General Motors.
Neste mundo sombrio, o Brasil se destaca com sua política social. Está eliminando, passo a passo , a pobreza absoluta, ampliando a formação universitária de jovens de origem modesta, abrindo novas fronteiras agrícolas e obtendo os menores níveis de desemprego de sua história.
Não obstante esses êxitos nacionais, o governo está sob ataque histérico dos grandes meios político-financeiros. Na falta de motivo, o pretexto agora é a inflação. Ora, todas as fontes demonstram que a inflação do governo anterior a Lula foi muito maior que nos últimos 10 anos. 
Jornal do Brasil, fiel a sua tradição secular, mantém a confiança na chefia do Estado Democrático e denúncia, como de lesa-pátria, porque sabota a economia, a campanha orquestrada contra o Governo – que lembra outros momentos de nossa história, alguns deles com desfecho trágico e o sofrimento de toda a nação.


TRANSFORMAÇÕES



Desenho de Juliano Guilherme, n. 7. David e Golias. Coleção Cadernos


O tempo das revoluções simultâneas

Por Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político.




A Lei de Responsabilidade Fiscal de Fernando Henrique Cardoso foi um dos últimos atos da república oligárquica brasileira, atenta à estabilidade da moeda e fiadora de contratos. Necessária, sem dúvida, mas Campos Sales, se vivo, aplaudiria de pé em nome dos oligarcas. Mas já não ficaria tão satisfeito com que o veio a seguir. Depois de promover drástica rearrumação nas prioridades de governo, o presidente Lula instaurou no país uma trajetória de crescimento via promoção social deixando para trás, definitivamente, a memória de Campos Sales e de seus rebentos tardios. Milhões de famílias secularmente atreladas às sobras do universo econômico foram a ele integradas como ativos atores e consumidores. Desde agora, para desgosto de alguns e expectativa de todos os demais, a história do Brasil não se fará sem o concurso participante do trabalho e das preferências desse novo agregado a que chamamos de povo.
Com Dilma Rousseff instalou-se a desordem criadora, aquela que não deixa sossegada nenhuma rotina nem contradição escondida. Não há talvez sequer um segmento da economia, dos desvãos sociais e das filigranas institucionais que não esteja sendo desafiado e submetido a transformação. Da assistência universal à população, reiterando e expandindo a trilha inaugurada por Lula, à reformulação dos marcos legais do crescimento econômico, à organização da concorrência, à multiplicação dos canais de troca com o exterior, ao financiamento maiúsculo da produção, aos inéditos programas de investimento submetidos à iniciativa privada, a sacudidela na identidade nacional alcança de norte a sul. A cada mês de governo parece que sucessivas bandeiras da oposição tradicional tornam-se obsoletas. Já eram.
O tempo é de revoluções simultâneas, cada qual com seu ritmo e exigências específicas, o que provoca inevitáveis desencontros de trajetos. Uma usina geradora de energia repercute na demanda por vários serviços, insumos, mão de obra, criando pressões, tensões, balbúrdias. Li em Carta Maior (9/4/13) que a Associação Brasileira de Tecnologia para Equipamentos e Manutenção informa que, no Brasil, convivem hoje 12.600 obras em andamento e agendadas até 2016. Ainda segundo a mesma fonte, das 50 maiores obras em execução no planeta, 14 estão sendo realizadas no país. Claro que os leitores não serão informados pela mídia tradicional. A monumental transformação do país, que não precisa apenas crescer, mas descontar enorme atraso histórico, produz entrechoques das dinâmicas mais díspares, o que surge, na superfície, como desordem conjuntural. É, contudo, indicador mais do que benigno. Mas disso os leitores só são informados em reportagens e manchetes denunciando o que estaria sendo o atual desgoverno do país. Qual…
Os melhores informativos do estado geral da nação encontram-se nos portais do IBGE, do IPEA e afins. Os antigos jornalões apequenaram-se. São, hoje, nanicos.


Fonte: www.ocafezinho.com.br







REGULAMENTAÇÃO DA MÍDIA

Meios de comunicação e economia

Paulo Kliass, na Agência Carta Maior



A discussão a respeito da necessidade de uma efetiva regulamentação dos meios de comunicação parece não estar encontrando o eco que merece em nossas terras. Infelizmente, a importância da matéria não tem sido correspondida por uma posição mais efetiva da Presidenta Dilma, que se recusou a colocar sua equipe para atuar no Congresso Nacional em defesa do projeto de lei preparado pelo ex-Ministro Franklin Martins, ainda no governo Lula.

Ao invés de se apoiar nas experiências recentes de outros países, como a Argentina e a Inglaterra, o governo se acomoda, mais uma vez, na postura defensiva no debate e se rende aos interesses das grandes corporações proprietárias dos meios de comunicação. Tanto no caso dos vizinhos “hermanos”, quanto no espaço supostamente liberal britânico, foram aprovados textos legais impondo algum grau de regulamentação e controle públicos sobre as atividades da imprensa, em toda a sua diversidade de difusão nos tempos de hoje.

Por outro lado, além da postura passiva no quesito do marco regulatório, a posição governamental tem sido a de apoiar explicitamente os grandes conglomerados oligopolistas do setor, sem promover nenhuma medida de descentralização dos veículos no que ser refere ao suporte das verbas de propaganda e publicidade. O mesmo ocorre quanto à estratégia de consolidação e fortalecimento de uma rede de veículos públicos de comunicação, capaz de oferecer uma visão distinta daquelas oferecidas pelas poucas e mastodônticas empresas privadas do ramo.

Terminologia envenenada: “mídia” e “economics”

No caso específico da economia, a situação é ainda mais grave, uma vez que o recorte deveria envolver também formas bastante distintas de encarar o fenômeno econômico e as diferentes alternativas para implementação das medidas de política públicas na área. Aliás, a encrenca já começa na própria denominação que o setor se oferece: “mídia”. Prefiro o caminho adotado pelos países de língua espanhola, que adotaram o termo “medios de comunicación”

Afinal, se falamos tanto em autonomia econômica, social, política e cultural, qual o sentido de usar “mídia” em português? A origem de tudo é o latim“medium”, que se transforma em “media” quando vai para o plural – é assim que se expressa “meios” em latim. Vai daí que os norte-americanos gostaram da expressão encontrada e passaram a usá-la. Porém, com o sotaque de lá, pronunciam aquilo que nós adotamos como sendo o termo em nossa língua: ‘mídia”! Como a hegemonia cultural é enraizada, todo mundo passou a imitá-los, inclusive na nossa gentil maneira de grafar a forma ianque de pronunciar o plural de um termo em latim! Haja criatividade para tamanha submissão!

Por outro lado, observa-se claramente uma opção consciente realizada pelos grandes órgãos de imprensa, ao adotar um único lado no debate econômico. A economia é apresentada como uma ciência quase exata e carregada de um suposto véu de neutralidade técnica. Com isso, oculta-se do leitor ou do espectador o fato de que os pensadores clássicos sempre trataram o fenômeno de forma mais ampla. Para Smith, Ricardo ou Marx, por exemplo, tratava-se de uma área do conhecimento chamada de “economia política”, onde o fenômeno econômico não poderia ser compreendido isolado do conjunto mais complexo das relações na esfera do social e do político. Ocorre que a tradição liberal, capitaneada pelos ingleses e norte-americanos, promoveu uma operação reducionista bastante significativa. “Political economy” tornou-se simplesmente “economics” - em português tudo passou a ser qualificado como economia. Com isso, é claro, perdeu-se muito mais do que o mero adjetivo “política”.

Responsabilidade da sociedade, das universidades e dos meios de comunicação

Não se pode, no entanto, responsabilizar apenas os meios de comunicação como sendo os únicos agentes de tal mudança. Na verdade, o que eles fizeram foi incorporar para dentro das editorias de seus veículos aquilo que se generalizava para o conjunto da sociedade, em razão da hegemonia do pensamento neoliberal que se consolida a partir dos anos 1990. A maior parte das universidades e dos centros de pesquisa também se rendeu a essa forma ortodoxa e monolítica de encarar o fenômeno econômico. Isso implicava uma abordagem acrítica do modo de funcionamento do sistema capitalista de uma forma geral e a concordância ativa e passiva no que se refere aos modelos de ajuste estrutural e da macroeconomia, tal como sugeridos pelo chamado Consenso de Washington. Este último aspecto foi especialmente relevante para o caso de países em desenvolvimento, como o Brasil, que sofreram bastante com tal opção de política econômica durante quase trinta anos.

Com algumas exceções de resistência política e intelectual a essa estratégia de terra arrasada, mais de uma geração de economistas e de jornalistas cobrindo a área de economia foram formadas sob essa batuta. Porém, ao invés de adotar o critério da pluralidade na transmissão das informações e das análises, os meios de comunicação optaram por um alinhamento automático à versão dominante, impedindo que as vozes dissonantes tivessem espaço para divulgação de suas abordagens. A vinculação a uma forma específica de encarar o processo econômico pode ser sintetizada pela trajetória realizada por um grande jornal paulista. Não por acaso, ao longo dessas duas décadas, a empresa optou por mudanças editoriais que implicaram alterações carregadas de significado para aquilo que nos interessa aqui: o caderno “economia” foi transformado em “dinheiro” e mais recentemente em “mercado”. Ou seja, uma transição bastante reveladora da opção adotada pelo grupo e da linha editorial assumida: economia => dinheiro => mercado.

Espaço apenas para a voz monotônica do financismo

A reprodução quase que exclusiva dos interesses e das opiniões vinculadas ao financismo tornou-se prática corriqueira entre os meios de comunicação. A pauta passou a ser coberta com a busca de opiniões de “analistas”, “especialistas” e “consultores de finanças” que se revezavam em oferecer quase sempre a mesma abordagem do fenômeno econômico. 

Eram apresentados como verdadeiros interlocutores do oráculo, evidentemente inacessível para os mais comuns dos mortais. De quando em quando, abria-se uma pequena janela para alguma opinião divergente dessa análise hegemônica. Tal postura sofreu um freio de arrumação a partir da eclosão da crise financeira internacional de 2008, uma vez que o receituário oficial – passivamente aceito até aquele momento - não havia sido capaz de evitar, nem mesmo de atenuar, os efeitos devastadores da conturbação. Boa parte dos grandes figurões do “establishment” foram compelidos a realizar uma espécie de “mea culpa” – algumas meio implícitas, outras mais explícitas. 

Aqui no país deu-se processo semelhante. Acompanhando também a mudança sutil de discurso de instituições como o Banco Mundial (BM) e o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), economistas passaram a reconhecer a validade das análises ditas heterodoxas. Os elementos de teorias consideradas como heréticas até a antevéspera da crise, a exemplo do keynesianismo, passaram a freqüentar as matérias das editorias de economia.

No entanto, apesar desse recuo tático provocado pela própria realidade, a forma de encarar e refletir a respeito do fenômeno econômico não foi alterada em sua essência, para a absoluta maioria dos grandes meios de comunicação. 

Os textos, imagens e as matérias sempre insistem na ideia de que existe apenas uma alternativa adequada para manter a economia “nos trilhos”. E a voz que se expressa pelas editorias de economia é sempre a do financismo. 

Os veículos insistem, de forma monotônica, em apresentar uma imagem humanizada à dinâmica econômica, protagonizada pelo capital. Assim, a sensação que passa é de que o “mercado pensa”, o “mercado sugere”, o “mercado exige”, o “mercado se preocupa”. Ao conferir voz e personalidade a esse ente invisível, o que se busca é transformar a implementação de políticas de favorecimento de determinados setores em algo banal, rotineiro, natural e, principalmente, inevitável.

A situação vivida nos Estados Unidos, logo na ante-sala da crise, é bem característica de tal comportamento. A trajetória insustentável dos grandes bancos e demais instituições financeiros era evidente. Porém, a superexposição aos riscos não era mencionada pelos meios de comunicação, que se contentavam em reproduzir as avaliações, sempre otimistas, fornecidas pelas agências de “rating”. Ou seja, como estavam umbilicalmente vinculadas ao modelo de exacerbação dos movimentos especulativos e do chamado “subprime”, as notícias que vinham a público a partir dessas fontes nada isentas - as únicas consultadas, diga-se de passagem - fez com que o caldeirão perigoso e irresponsável do mundo financeiro não fosse conhecido da maior parte da sociedade, senão no dia mesmo da explosão. Como não houve espaço para nenhum alerta prévio, a informação para o grande público só chegou no “day after” do desastre.

No caso brasileiro, por outro lado, a própria institucionalidade do aparelho de Estado contribui para tal unilateralidade na cobertura dos eventos. O comportamento do Comitê de Política Monetária (COPOM) é instruído por uma consulta periódica efetuada pelo Banco Central. A pesquisa Focus pretende aferir as chamadas “expectativas dos agentes econômicos” quanto aos rumos e às principais variáveis de nossa economia. Ocorre que são ouvidos exclusivamente indivíduos e instituições que têm atuação no mercado financeiro, o que torna o resultado bastante tendencioso e viesado. Os meios de comunicação ancoram-se nesse tipo de material para embasar as preocupações e as propostas do tal “mercado”, em sua busca permanente por aumentar a rentabilidade do financismo. Assim, tenta-se oferecer para o público a idéia de que o conjunto da sociedade está a corroborar tal opção, quando na verdade a situação é bem outra. Afinal, não foram ouvidos pesquisadores independentes, instituições de pesquisa vinculadas às universidades ou mesmo economistas que atuam como assessores de entidades do mundo sindical e de associações estranhas ao universo empresarial. Não! O BC ouve apenas “la crème de la creme” da banca e do universo financeiro. 

Necessidade de democratização e pluralidade

A democratização do setor de comunicações é condição “sine qua non” para que se obtenha um processo de produção e difusão de informações e análises de economia que seja marcado pela efetiva pluralidade. Assim torna-se fundamental a superação do atual modelo, marcado pela concentração de poder e pela olipogolização do setor. A descentralização do número de veículos e a diversificação das linhas de orientação permitirão, em tese, que os diferentes grupos da sociedade consigam se identificar nesse mosaico mais amplo de alternativas. Além disso, é urgente a consolidação de um núcleo de emissoras e veículos de natureza pública, para que a o Estado tenha condições de oferecer a sua forma particular de encarar e analisar o fenômeno econômico. 

Um marco regulatório que avance também pelo caminho da responsabilização e da transparência deverá criar as condições para que a cidadania rompa com os limites estreitos e privadamente orientados das vozes do “mercado”. A função pedagógica dos meios de comunicação também deve ser ressaltada: para além da simples informar, há que aprimorar também sua função de formação. Ao invés de simplesmente oferecer as inúteis cotações de fechamento do mercado fetichizado de bolsas de valores e de câmbio, os veículos deveriam contribuir para que a população consiga efetivamente compreender os movimentos da dinâmica da economia. A maioria de brasileiros e brasileiras têm, com certeza, outros interesses a fazer valer em termos de orientação e análise da nossa política econômica.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.




SEM ILUSÕES

O ciclo que se avizinha


Saul Leblon, no Blog das Frases



 Os dados contraditórios emitidos do front econômico não deixam margem a ilusões. 

Há sinais de retomada do investimento industrial no Brasil. Mas ainda insuficientes para definir um novo ciclo.

Dos EUA surgem evidencias de um ânimo maior dos consumidores. 

Mas os dados do desemprego –que pode estar na faixa dos 11% e não 7%, computadas as desistências— desautorizam o otimismo ingênuo. 

Pode levar uma década para o mercado de trabalho da maior economia da terra retomar o nível pré-crise. 

O jogo de gato e rato dos ajustes pontuais entre juros, câmbio e inflação continua a ocupar espaços generosos na agenda capturada pela narrativa conservadora.

Interessa ao conservadorismo afunilar o debate do crescimento nesse ralo das esperanças nacionais.

Nada mais conveniente do que cicatrizar o fracasso do ciclo tucano com a insistente previsão de outro, por ora amplamente desautorizado pelos resultados.

Dessa gororoba midiática não sai um centímetro de chão firme para sustentar o passo seguinte da economia e da sociedade. 

O economicismo ortodoxo não tem nada a oferecer ao país a não ser regressividade social e renúncia estratégica.

Os dados parecem endossa-lo.

O impulso externo das commodities perdeu fôlego. 

A demanda chinesa, que soprou a vela do comércio mundial nos últimos dez anos, navega em zona de calmaria.

A oficina do mundo pode muito pouco num cenário de contração global das importações.

O comércio mundial deve crescer menos este ano do que no anterior.

Um dos principais destinos dos embarques asiático e mundial, a Europa agoniza sob as turquesas da ortodoxia.

Já morto, o Estado do Bem Estar Social está sendo picado, salgado e pendurado nas praças públicas de Madrid, Lisboa, Paris etc.

O que se propõe em troca?

Uma taxa de desemprego que é o dobro do recorde histórico anterior à crise.

Até quando vai a tragédia europeia? 

Francisco Louçã, dirigente socialista português (leia a entrevista a Marco Aurélio Weissheimer; nesta pág) enxerga um segundo round da crise, a aprofundar o colapso das economias centrais, com efeitos globais desagregadores.

E adverte: ‘A esquerda precisa afrontar o capital financeiro’.

James Galbraith (leia a entrevista imperdível nesta pág) reclama um plano urgente de estabilidade social, que injete recursos públicos no orçamento das famílias pobres e dos desempregados. 

O Brasil até agora soube manejar a travessia da desordem neoliberal, deslocando o dínamo de sua economia para o mercado interno de massas criado na última década.

A emergência de um Brasil até então anônimo e represado pela miséria dificulta o ardil conservador.

Qual seja, importar a crise mundial –o nome fantasia dessa baldeação é ‘reformas de mercado’-- para usa-la como o aguilhão da agenda de arrocho e desregulação econômica, derrotada nas urnas em 2002, 2006 e 2010.

Desenvolvimento é instabilidade e não calmaria, como quer o interesse dominante de qualquer época, adepto da paz salazarista dos cemitérios.

O xis da questão é adicionar produtividade ao sistema econômico e direcioná-la às prioridades definidas pela correlação de forças da sociedade.

O Brasil enfrenta as adversidades intrínsecas aos avanços e recuos contabilizados nessa trajetória. 

O câmbio defasado por décadas de juros siderais (responsáveis pelo ingresso maciço de capitais especulativos) acionou uma mutação regressiva no seu sistema produtivo.

E justamente quando a demanda popular mudou de patamar para se tornar massiva e hegemônica.

A perda de até US$ 20 bi em exportações de bens primários, por conta da retração nos preços das commodities, aguçou a percepção de um desequilíbrio de natureza estruturante na balança comercial de produtos manufaturados.

O déficit nessa área deve somar cerca de US$ 60 bilhões este ano. Foi de US$ 9 bi, em 2007. E ficou em US$ 36 bi no ano passado.

A manufatura importada invadiu todas as instâncias da vida brasileira. 

Calcula-se em 25% o peso das importações no atendimento da demanda nacional.

O invisível é mais grave do que o evidente estampado nas etiquetas ‘made in China’. 

A corrosão do parque industrial está inscrita no miolo dos produtos. 

Peças, componentes, circuitos deixam de ser fabricados localmente. Leia-se: empregos de qualidade; investimentos; receitas fiscais; conhecimento técnico são transferidos para o exterior.

Engordam a economia dos países fornecedores. 

Galpões industriais metamorfosearam-se em oficinas de montagem, de onde o insumo importado sai com etiqueta nacional.

Ajustar o câmbio de modo a torna-lo competitivo, e assim reverter o desinvestimento em novo ciclo de expansão fabril, tem um custo.

Encarecer a fatia do consumo abastecida do exterior equivale a arrochar um pedaço do poder de compra popular.

Não se trata de contabilidade, mas de decisão política. O que se ganha em troca? Quais as garantias (estabilidade no emprego, por exemplo)?

O contágio dos demais preços pelo estirão cambial, numa quadra em que o mercado externo talvez não retribua com incrementos equivalentes nas exportações, recomenda cautela.

A margem de manobra da política econômica estreitou-se. 

Em dúvida, caminhe devagar, é a bússola do governo.

O país tem sua ‘terra à vista’. E precisa segurar o timão com firmeza para não se perder na travessia.

O pré-sal encerra peso objetivo para ser o impulso industrializante demarcador de um novo ciclo do desenvolvimento.

As reservas do pré-sal estão cercadas por um marco regulador cujas condicionalidades, independente da participação estrangeira, transferem o impulso tecnológico e as encomendas da exploração para dentro do país. 

Guardadas as devidas proporções, isso pode significar para o Brasil aquilo que o orçamento da Defesa e o da Nasa representam para economia norte-americana, em termos de inovação e fôlego expansivo. 

Há, porém, o oceano de crise mundial no meio do caminho.

E ele pode esticar o calendário da travessia até o final da década.

Mais que nunca, a macroeconomia será tutelada pela economia política.

As grandes escolhas do desenvolvimento recaem sobre os ombros da democracia brasileira.

Lideranças do PT, como o presidente do partido, Rui Falcão, a exemplo do governador Tarso Genro (leia suas manifestações na Carta Maior), advertem para a necessidade de se fortalecer o arsenal da sociedade, de modo a assegurar sua participação nesse escrutínio.

Duas reformas são inadiáveis: a reforma política e a regulação da mídia. 

Ambas convergem para um mesmo objetivo: ampliar o discernimento social das variáveis em jogo; e transferir o timão da travessia ao sujeito histórico que tem mais a perder se ela fracassar.

Os 30 milhões de brasileiros que saíram da miséria e os 40 milhões que ascenderam na pirâmide da renda desde 2003.

Esse é o ciclo que se avizinha.