31 março 2011

EDIÇÃO n. 35

O quê há para ler


Reconheço que foram postadas muitas matérias. Para facilitar, aqui vão algumas dicas:

Na seção POLÍTICA, indico o artigo de Maurício Dias, O fim da reeleição, sobre a reforma
política em andamento no congresso nacional.

seção NOSSO MUNDO apresenta a primeira parte da entrevista com o historiador
Moniz Bandeira, sobre os conflitos no norte da África, principalmente na Líbia, e em alguns
países árabes.

Em HISTÓRIA temos os artigos 1964: data Incômoda para a direita, de Emir Sader, sobre
o golpe de 64; "Los Hermanos", 20 anos depois, de Antonio Lassance, sobre o aniversário
do Mercosul e os avanços obtidos. Por fim, A falta que ele nos faz, de Zuenir Ventura,
fala de Darcy Ribeiro, uma grande figura.

Introduzi duas charges do cartunista Nani, para quebrar um pouco a sisudez do blog.

Boa leitura!   

H U M O R

Por NANI


Enquanto isso, nas construtoras








Atlas 2011

 

a guerra da libia e o Atlas 2011
 



P O L Í T I C A

O fim da reeleição

 
Os oposicionistas Aécio Neves e Itamar Franco foram os principais inspiradores da proposta aprovada na comissão de reforma política do Senado, que propõe o fim da regra da reeleição, criada a peso de ouro, em 1997, em benefício do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Nada contra a reeleição. A restrição fica por conta do uso do poder para aprová-la em benefício próprio.

Com o fim da reeleição, que vai ter difícil tramitação no Congresso, a presidenta Dilma Rousseff seria a última pessoa, na Presidência da República, a ter o direito de tentar a reeleição, em 2014, com o novo mandato dilatado para cinco anos. Tempo que passaria a vigorar sem a reeleição.
Essa vitória daria a ela o direito a ocupar a Presidência por nove anos. Seria, assim, o mais longo período da história republicana, obtido dentro das regras constitucionais.

Ao destacarem a questão do corpo de uma reforma que se pretende mais ampla, os senadores mineiros conduziram um movimento ousado no tabuleiro do processo sucessório presidencial de 2014.

A proposta parece vantajosa. Guarda semelhança, porém, com o histórico Cavalo de Troia. Ao esticar um eventual segundo mandato de Dilma, ela conduz, internamente, as condições para tentar encurtar o ciclo do PT no poder que, pelas regras em vigor, pode alcançar 24 anos: oito anos iniciais de Lula, mais oito de Dilma e, idealmente para os petistas, outros oito anos de Lula. Uma ambição maior do que a ambição tucana que buscava uma sequência de 20 anos a partir da eleição de FHC em 1994.

O prolongamento do mandato dos quatro anos atuais com reeleição para cinco anos que beneficiaria Dilma, se reeleita a presidenta encontraria Lula um ano mais velho, de 74 para 75 anos, e, caso disposto a concorrer mais uma vez, e eleito, com mandato de apenas cinco anos.

A experiência da reeleição, dois mandatos de FHC e dois de Lula, é bem-sucedida do ponto de vista eleitoral. Antes dela, o eleitor premiava as administrações que considerava ótimas, boas ou até mesmo “as mais ou menos”, como lembra o sociólogo Francisco Meira, do instituto Vox Populi.

“Na impossibilidade de reeleger esses administradores, o eleitor votava no candidato que eles indicavam. Há centenas de exemplos pelo País afora. Dois casos emblemáticos e mais conhecidos foram os de Maluf, em São Paulo, que elegeu Celso Pitta, e o de Cesar Maia, no Rio, que elegeu Luiz Paulo Conde.

Pesquisa feita pelo Vox Populi, em 2008 (tabela), mostra o apoio que o sistema recebe do eleitorado. Incontestável.

O que efetivamente está em jogo é a reeleição. O resto é perfumaria: lista fechada, distrital, distritão etc. É bem verdade que, nesse jogo, também estão aqueles que buscam construir um sistema político-eleitoral perfeito. Expressam o esforço inútil de tentar moldar a realidade à legislação.

De qualquer forma, mesmo os que miram somente a reeleição manifestam um progresso democrático no comportamento recente da oposição. O modo udenista de agir contra Lula por meio de um “golpe branco”, o impeachment, por exemplo, fermentado no episódio do chamado mensalão, foi substituído pela articulação política sensata, mas equivocada. É a diferença do golpismo udenista pela artimanha mineira.


NOSSO MUNDO

Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa

Salvo por uma matéria traduzida da The Economist, publicada na Carta Capital nº 639, a grande mídia brasileira optou por não noticiar a briga de gigantes deflagrada no México, nos últimos dias.

E por que interessaria ao público brasileiro o que ocorre no México? Quando nada, um dos gigantes envolvidos é sócio (alguns dizem, majoritário) da maior operadora de televisão paga do Brasil: a NET, ligada às Organizações Globo. Ademais, o que está acontecendo ao norte do Equador pode perfeitamente vir a acontecer também ao sul, vale dizer, aqui mesmo entre nós.

Monopólio vs. monopólio
As operações de telefonia e televisão no México são praticamente monopolizadas por dois grandes grupos.

Cerca de 80% das linhas de telefonia fixa estão conectadas à Telmex – a mesma empresa que é sócia da NET – e 70% do mercado de telefonia móvel (celular) são controlados pela Telcel, outra empresa do mesmo grupo – ambas de Carlos Slim, o homem mais rico do planeta.

Por outro lado, o grupo Televisa, do empresário Emilio Azcárraga, controla cerca de 70% da audiência da televisão aberta. O que sobra, em boa parte, está sob controle da TV Azteca, comandada por Ricardo Salinas, outro magnata mexicano.

Os grupos conviviam em relativa harmonia, cada um com seu respectivo "mercado". Agora, diante da convergência tecnológica, resolveram se enfrentar abertamente.

Um grupo de 25 empresas de telecomunicações, incluídas a Cablevisión (propriedade do Grupo Televisa) e Iusacell (do Grupo Salinas, da TV Azteca), entrou com uma ação na Comissão Federal de Competição (Cofeco, equivalente ao nosso Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade, do Ministério da Justiça) contra o alto custo das tarifas de interconexão cobradas pela Telcel. Ao mesmo tempo, a Telmex apresentou quatro denúncias contra a Televisa, a Televisión Azteca, a Cablesivion, a Megacable, a Cablemas, a Television Internacional e a Yoo por "práticas de monopólio e correlatos".

As ações legais vieram acompanhadas de anúncios de página inteira nos jornais parceiros da Televisa denunciando o "monopólio caro e ruim" da indústria de telecomunicações, enquanto Carlos Slim retirava os anúncios de suas empresas – cerca de 70 milhões de dólares anuais – dos canais da Televisa. Em represália e solidariedade à Televisa, a TV Azteca passou a recusar os anúncios do Grupo Telmex.

Disputa de mercado
O que está em jogo, por óbvio, é o controle do mercado convergente de telefonia e televisão. Como explica didaticamente a matéria da The Economist:

"A tecnologia transformou os negócios de telefonia e televisão em um único mercado: a televisão hoje inclui telefone e internet em seu serviço de TV a cabo, e quer adicionar telefones celulares. Salinas, que também controla uma empresa de celulares, a Iusacell, lançou um pacote semelhante em 2010. Slim deseja usar seus cabos de telefonia para distribuir TV paga (setor em que se tornou o maior ator no resto da América Latina), mas o governo não quer permitir.

"Agora os bilionários pedem o tipo de reforma da concorrência de que suas respectivas indústrias precisavam há muito tempo. Os magnatas da TV querem que Slim reduza o valor cobrado quando, um telefone rival liga para um celular Telcel (a agência reguladora das teles do México lhe disse para reduzir algumas taxas). A atual tarifa de interconexão é 43,5% acima da média da maioria dos países ricos da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Isso torna impossível que outras operadoras ofereçam tarifas competitivas. A Comissão Federal de Concorrência (CFC) do México diz que os consumidores se beneficiariam de 6 bilhões de dólares por ano se as taxas de conexão se equiparassem à média da OCDE. A CFC recomenda deixar Slim concorrer na televisão quando tiver relaxado seu poder no setor de telefonia. Se a Telmex entrasse no mercado de tevê paga, o aumento da concorrência colocaria os preços ao alcance de mais 3,8 milhões de residências, admite a CFC."


E no Brasil?
A situação brasileira é diferente da mexicana, mas a briga entre teles e radiodifusores tradicionais ocorre também aqui. O locus dessa disputa, desde 2007, tem sido o projeto de lei que tramita no Congresso Nacional e "abre o setor de TV por assinatura para as teles, cria a separação de mercado entre produtores de conteúdo e empresas de distribuição e ainda cria cotas de programação nacional nos pacotes de canais pagos", além de revogar a Lei do Cabo de 1995.

Na sua versão atual o projeto – PLC 116 do Senado Federal – é o resultado da articulação inicial de três propostas representando grupos e interesses distintos: o PL 29/2007 representa as empresas de telefonia; o PL 70/2007 representa os radiodifusores; e o PL 323/2007 situa-se em posição intermediária entre os interesses dos dois setores. Aprovado em junho de 2010 na Câmara dos Deputados, até hoje tramita no Senado Federal.

Será que teremos aqui uma versão explícita da briga entre teles e radiodifusores como ocorre no México?

A ver.

(*)Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.


(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)



                  <><><><><><><><><>


A vida secreta dos economistas do sistema




Se os norteamericanos soubessem que alguns dos economistas que defendem publicamente as desregulações financeiras, que contribuíram para desencadear a Grande Recessão, aproveitaram-se de sua implantação, sentiriam-se mais interessados por elas?

É difícil saber, porque nos editoriais e aparições públicas, os economistas acadêmicos não costumam revelar seus investimentos em – ou contratos com – instituições financeiras privadas, que poderiam influir em suas recomendações políticas. Mas desde que dois investigadores expuseram uma série de potenciais conflitos de interesse entre membros de sua profissão, os economistas estão agora, pela primeira vez, levando em consideração regras éticas que os obrigariam a divulgar qualquer conexão entre suas finanças pessoais e as políticas públicas que eles defendem.

No ano passado, os economistas Gerald Epstein e Jessica Carrick-Hagenbarth, da Universidade de Massachusetts Amherst, publicaram um trabalho intitulado “Economistas financeiros, interesses financeiros e recantos obscuros dessa combinação”. Sugeriam uma causa da crise até então não explorada: os economistas não previram o colapso porque muitos deles estavam se beneficiando das políticas que levaram ao desastre. “Os economistas, como muitos outros, tinham incentivos perversos para não reconhecer a crise”, escrevem Epstein e Carrick-Hagenbarth no trabalho que foi publicado pelo Instituto de Investigação de Economia Política, de tendência de esquerda, de sua universidade.

O estudo examinou 19 economistas financeiros, acadêmicos e anônimos, cujas opiniões foram proeminentes nos meios de comunicação durante a promoção de reformas financeiras e depois do colapso do mercado. Treze dos acadêmicos tinham interesses ou contratos com instituições financeiras, cujos investimentos poderiam aumentar de valor se e quando as sugestões dos economistas se convertessem em política. Oito destes treze não revelaram tais conflitos de interesse.

Epstein disse que o silêncio dos economistas acerca dos perigos da desregulação pode ser atribuído em parte aos interesses econômicos destes acadêmicos: “Se você é um economista financeiro e ganha milhares de dólares trabalhando para uma empresa financeira, que pode estar menos inclinada a empregar-te caso se pronuncie publicamente a favor de uma reforma financeira, vai pensar duas vezes antes de defender tal reforma”.

Em 2006, a Câmara de Comércio da Islândia pagou a Frederic Mishkin, professor da Columbia Business School e ex-governador do Conselho de Administração do Federal Reserve (o banco central dos EUA), 124 mil por participar de um estudo sobre a situação financeira da Islândia, no qual explicou muitos dos fatores que logo iam provocar a implosão da economia do país. O documento Inside Job (“Trabalho interno”), vencedor de um Oscar, explica que, em seu currículo, Mishkin mudou o título do estudo “Estabilidade financeira na Islândia” por “Instabilidade financeira na Islândia”.

A American Economics Association (AEA), organização profissional de economistas acadêmicos, não tem regras éticas que proíbam ou exijam a manifestação deste tipo de conflito de interesse, além de alguns requerimentos a respeito de trabalhos apresentados à publicação da organização. De fato, normalmente o organismo não tem nenhum tipo de código ético oficial.

Epstein e Carrick-Hagenbarth distribuíram uma carta em janeiro, assinada por quase 300 economistas, defendendo a criação desse código. “Acreditamos que seria um passo importante e necessário para reforçar a credibilidade e a integridade da profissão”, dizia a carta.

Parece que teve algum efeito. Em sua conferência de janeiro em Denver, a AEA anunciou a criação de um comitê para desenvolver regras éticas. (Ironicamente a identidade dos membros do comitê manteve-se secreta, ainda que, segundo Epstein, o organismo vá revelar seus nomes em futuro próximo). Representantes da AEA não quiseram fazer comentários sobre o progresso do comitê.

Outras ciências sociais, como a sociologia, têm cláusulas éticas que requerem uma clareza total acerca de conflitos de interesse potenciais em discursos públicos, artigos e publicações acadêmicas. Epstein sabe que um código ético para economistas não consertará a economia do país. Mas sua reclamação é um passo na direção de políticas financeiras mais morais. “Um código de ética não é uma panaceia”, diz. “Mas pode ajudar a criar um ambiente no qual a economia e os economistas possam se considerar mais responsáveis”.

(*) Micah Uetricht, antigo editorialista de In These Times, é membro da redação da revista eletrônica de Chicago Gaspers Block e Campus Progress. Já escreveu também para Alternet, YES!, Labor Notes, Truthout.org e The Indypendent. Atualmente vive em Chicago e pode ser contatado em micah.uetricht@gamil.com.

Tradução: Katarina Peixoto


(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)


                     <><><><><><><>


Consequências

Delfim Netto








A substituição do petróleo, que parecia caminhar tranquilamente, vai demandar investimentos de muito maior intensidade e pesquisas caras. E a sociedade japonesa vai sofrer as consequências desse choque dramático de atravessar o processo de retomada de crescimento. Por Delfim Netto. Foto: Kyodo/AP


O Japão apenas começava a se restabelecer após praticamente dez anos de estagnação econômica quando foi atingido pelo terrível desastre produzido pelo tsunami que se seguiu ao violento terremoto de quase 9 pontos na escala Richter, o segundo de maior intensidade com registro no planeta. Além da perda irreparável de vidas, a sociedade japonesa vai sofrer as consequências desse choque dramático que vem atrasar o processo de retomada de seu crescimento.

Algumas pessoas, inclusive gurus conhecidos e prestigiados nos mercados financeiros, dizem acreditar que os efeitos sobre a sociedade nipônica não reduzirão necessariamente o crescimento da economia mundial. São afirmações temerosas, pois escondem o fato de que ela continua sendo a terceira maior economia do planeta e o duro golpe que sofreu vai reduzir a sua demanda e a demanda mundial.

Esses efeitos começam no sensível setor da energia, onde se restabeleceu a dúvida sobre o sistema de eletricidade dependente da energia nuclear. Há 55 reatores nucleares instalados em 17 localidades no território japonês, onde os riscos tinham sido reduzidos na medida da evolução dos equipamentos, permitindo imaginar que a energia atômica poderia tornar-se o principal instrumento de substituição do petróleo na geração da energia elétrica. Essa dúvida voltou a assustar o mundo e destrói a confiança exagerada que o setor nuclear tinha transmitido a uma parte da população e dos governos, pois não acontecia um acidente de vulto desde há 25 anos – como lembrou o professor José Goldemberg em recente entrevista.

Houve realmente uma redução importante dos riscos, como se viu agora no Japão, mas os equipamentos estavam preparados para certos níveis previsíveis e não para a catástrofe que a chanceler Angela Merkel, da Alemanha, classificou como “apocalíptica”. Ela repercutiu imediatamente a preocupação dos alemães defendendo a ordem de fechamento das sete mais antigas usinas nucleares do país e o abandono dos projetos de novos reatores em favor dos investimentos em fontes de energia renovável.

Essas coisas vão ser revistas em todo o mundo, onde até recentemente havia em estudo projetos para a construção de 300 novos reatores nucleares. A China, sozinha, tem 27 ou 28 projetos que com certeza terão de ser revisados, bem como retirados de pauta os 75 projetos bem adiantados para ser realizados em mais de 20 países nos próximos 20 anos. A União Europeia vai debater esses problemas de segurança na próxima reunião de cúpula em Bruxelas e já anunciou a intenção de realizar testes em todas as usinas nucleares dos países da organização. Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama pediu aos responsáveis pelos investimentos nas pesquisas do setor energético que intensifiquem os esforços na busca de soluções alternativas que não exijam a ampliação das instalações nucleares.

Não devemos ter ilusões sobre as consequências dessas mudanças no comportamento da economia mundial. Os custos da energia vão subir na proporção das necessidades de se construírem mecanismos de defesa mais poderosos e eficientes, que permitam ampliar a utilização da energia do átomo. E aí o preço do petróleo vai ser empurrado ainda mais para cima. A Agência Internacional de Energia reúne informações em todos os continentes, o que lhe permite discutir probabilidades que, embora sem muita garantia, ofereçam  alguma visão do futuro em relação às fontes alternativas de energia. Pelos cálculos da AIE, em 2050, o petróleo continuará sendo o principal fornecedor de energia do mundo. Toda a sua substituição por fontes alternativas, pela bioenergia e outras, não chegará a representar 17% do total.

Uma coisa é certa: a substituição do petróleo na área dos transportes e da geração de energia, que parecia estar caminhando tranquilamente para as alternativas do biocombustível e nuclear, vai demandar investimentos de muito maior intensidade e pesquisas profundas e caras. No caso da energia atômica, no desenvolvimento de novos processos que aumentem as condições de segurança, notadamente.

A destruição de vidas e instalações no Japão foi produzida pelo tsunami, mais do que pelo terremoto. Isso mostra que há riscos que são passíveis de estimar e outros, não. Como, por exemplo, estabelecer as distâncias de áreas críticas (previsíveis) para a construção de reatores? Pode-se colocar a 500 quilômetros do litoral, mas isso vai reduzir somente um nível de risco e, com toda certeza, vai ocasionar um enorme aumento de custos em todos os projetos.










H I S T Ó R I A

Em boa hora Darcy Ribeiro volta à cena por meio de uma antologia de artigos organizada por seu amigo Eric Nepomuceno.

Em 1997, escrevi: “Todo mundo quando morre faz falta para alguém, mas Darcy Ribeiro vai fazer falta para todo mundo, afetos e desafetos.” Cada vez mais. Os que o conheceram costumam repetir: “Ah, se o Darcy estivesse aí!” Não sei se o país seria diferente, mas a política certamente estaria menos mofina, porque ele soube conciliála com a ética, a erótica e a poética. Embora tenha deixado realizações como a Universidade de Brasília, 400 Cieps e o Sambódromo, prefiro lembrá-lo pelos seus gestos e atitudes. Ele era um iracundo, para usar uma categoria de que gostava tanto, ou seja, um ser em permanente estado de indignação e insurgência. Como disse a Eric, “nesta América Latina você só tem duas opções: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”. Nem o câncer conseguiu transformá-lo em paciente. Foi um doente tão impaciente que chegou a fugir da UTI. Viveu em eterno gozo, mesmo em meio a longos anos de dor e sofrimento.

Nunca se submeteu ao mal. Depressão, jamais.

Darcysista, se achava não só o homem mais inteligente do país, como o mais bonito. Pelo número de “viúvas” que deixou, devia ter razão. Uma delas, no enterro, um funeral festivo e divertido, debruçouse sobre o caixão e lamentou: “Ah, Darcy, como me arrependo de não ter dado pra você nas duas vezes que você me cantou!” Como antropólogo que viveu entre os índios kadivéu, achava que o Brasil era uma “usina de moer gente”; mas apostava no seu futuro: “Seremos uma Nova Roma. Melhor, porque lavada em sangue negro e em sangue índio”  Mas, para isso, seria necessário realizar uma “reforma agrária verdadeira”; e incorporar todo o nosso povo à “civilização letrada”, o que, na sua opinião, seria impossível com a nossa “desastrosa invenção da escola de turnos” . A esse sistema ele atribuía grande parte de nossas chagas, como o abandono das crianças na rua.

Empunhava sem pudor valores hoje anacrônicos como honestidade, entrega cívica e patriotismo: “Sou patriota à moda antiga, verde-amarelo, vibrante.”Desprezava os que desprezavam o Brasil, e citava os povos que deram certo por serem nacionalistas: “Os japoneses chegam a ser fanáticos, os alemães também e os norte-americanos, por igual, morrem de amor e de orgulho por sua pátria e por seu jeito de viver.” Lembrava Vinicius no apego às mulheres e à pátria, que o poeta chamava de “patriazinha” e ele, de “patrinha”.

Ex-senador, não se conformaria em ver a Casa que dizia ser “melhor do que o céu” desmoralizar-se tanto.
Nadando contra a corrente, Darcy Ribeiro foi o nosso mais encantador contraponto, o nosso mais charmoso contrapeso. Que falta ele faz!


(Transcrito do blog http://www.tijolaco.com/ )



                                         <><><><><><><><><>




A saudade do servo na velha diplomacia brasileira


Leonardo Boff


O filósofo F. Hegel em sua Fenomenologia do Espírito analisou detalhadamente a dialética do senhor e do servo. O senhor se torna tanto mais senhor quanto mais o servo internaliza em si o senhor, o que aprofunda ainda mais seu estado de servo. A mesma dialética identificou Paulo Freire na relação oprimido-opressor em sua clássica obra Pedagogia do oprimido. Com humor comentou Frei Betto: “em cada cabeça de oprimido há uma placa virtual que diz: hospedaria de opressor”. Quer dizer, o opressor hospeda em si oprimido e é exatamente isso que o faz oprimido. A libertação se realiza quando o oprimido extrojeta o opressor e ai começa então uma nova história na qual não haverá mais oprimido e opressor mas o cidadão livre.
Escrevo isso a propósito de nossa imprensa comercial, os grandes jornais do Rio, de São Paulo e de Porto Alegre, com referência à política externa do governo Lula no seu afã de mediar junto com o governo turco um acordo pacífico com o Irã a respeito do enriquecimento de urânio para fins não militares. Ler as opiniões emitidas por estes jornais, seja em editoriais seja por seus articulistas, alguns deles, embaixadores da velha guarda, reféns do tempo da guerra-fria, na lógica de amigo-inimigo é simplesmente estarrecedor. O Globo fala em “suicídio diplomático”(24/05) para referir apenas um título até suave. Bem que poderiam colocar como sub-cabeçalho de seus jornais:”Sucursal do Império” pois sua voz é mais eco da voz do senhor imperial do que a voz do jornalismo que objetivamente informa e honestamente opina. Outros, como o Jornal do Brasil, tem seguido uma linha de objetividade, fornecendo os dados principais para os leitores fazerem sua apreciação.
As opiniões revelam pessoas que têm saudades deste senhor imperial internalizado, de quem se comportam como súcubos. Não admitem que o Brasil de Lula ganhe relevância mundial e se transforme num ator político importante como o repetiu, há pouco, no Brasil, o Secretário Geral da ONU, Ban-Ki-moon. Querem vê-lo no lugar que lhe cabe: na periferia colonial, alinhado ao patrão imperial, qual cão amestrado e vira-lata. Posso imaginar o quanto os donos desses jornais sofrem ao ter que aceitar que o Brasil nunca poderá ser o que gostariam que fosse: um Estado-agregado como é Hawai e Porto-Rico. Como não há jeito, a maneira então de atender à voz do senhor internalizado, é difamar, ridicularizar e desqualificar, de forma até antipatriótica, a iniciativa e a pessoa do Presidente. Este notoriamente é reconhecido, mundo afora, como excepcional interlocutor, com grande habilidade nas negociações e dotado de singular força de convencimento.
O povo brasileiro abomina a subserviência aos poderosos e aprecia, às vezes ingenuamente, os estrangeiros e os outros povos. Sente-se orgulhoso de seu Presidente. Ele é um deles, um sobrevivente da grande tribulação, que as elites, tidas por Darcy Ribeiro como das mais reacionárias do mundo, nunca o aceitaram porque pensam que seu lugar não é na Presidência mas na fábrica produzindo para elas. Mas a história quis que fosse Presidente e que comparecesse como um personagem de grande carisma, unindo em sua pessoa ternura para com os humildes e vigor com o qual sustenta suas posições .
O que estamos assistindo é a contraposição de dois paradigmas de fazer diplomacia: uma velha, imperial, intimidatória, do uso da truculência ideológica, econômica e eventualmente militar, diplomacia inimiga da paz e da vida, que nunca trouxe resultados duradouros. E outra, do século XXI, que se dá conta de que vivemos numa fase nova da história, a história coletiva dos povos que se obrigam a conviver harmoniosamente num pequeno planeta, escasso de recursos e semi-devastado. Para esta nova situação impõe-se a diplomacia do diálogo incansável, da negociação do ganha-ganha, dos acertos para além das diferenças. Lula entendeu esta fase planetária. Fez-se protagonista do novo, daquela estratégia que pode efetivamente evitar a maior praga que jamais existiu: a guerra que só destrói e mata. Agora, ou seguiremos esta nova diplomacia, ou nos entredevoraremos. Ou Hillary ou Lula.
A nossa imprensa comercial é obtusa face a essa nova emergência da história. Por isso abomina a diplomacia de Lula


Leonardo Boff é Teólogo e autor de Nossa ressurreição na morte, Vozes 2007


(Transcrito do blog http://www.tijolaco.com/)



                                         <><><><><><><>





"Los hermanos". 20 anos depois


Antonio Lassance (*)





Vinte anos depois daquilo que se considera a certidão de nascimento do Mercosul (o Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991), a integração regional promovida pelo bloco mostrou-se benéfica. O principal saldo não é apenas econômico, mas político, social e cultural.

Mesmo sujeito a idas e vindas, o Mercosul atravessou turbulências e manteve-se como um caso de sucesso. Resistiu a crises internacionais graves, como as de 1999 a 2002 (quando o comércio entre os países do bloco reduziu-se à metade, em relação a seus valores de 1997) e a mais recente e maior delas, de 2008. Foi abalado por situações de profunda instabilidade. A principal atingiu o governo de Fernando de la Rúa, na Argentina, como efeito retardado do desmonte do Estado, privatização e desindustrialização provocados pelo governo de Carlos Ménem, combinados à atrapalhada saída brasileira do regime de paridade do dólar e câmbio fixo, no governo FHC.

Surgido na esteira de um processo de aproximação entre Brasil e Argentina, seus dois maiores países, o Mercosul era também uma resposta à União Europeia, ao Nafta (bloco que reúne Estados Unidos, Canadá e México) e à APEC (“Asia-Pacific Economic Cooperation” ou Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico).

A arquitetura da amizade impulsionada com o Mercosul é tratada como um caso exemplar pelo especialista em relações internacionais, Charles Kupchan (da Universidade de Georgetown), em seu recente livro “Como inimigos se tornam amigos” (1). Ele dedica parte do quarto capítulo de seu livro (págs. 122 a 130) a mostrar como se deu a reaproximação entre Brasil e Argentina, nos anos 1980, e que atraiu, nos anos 1990, Paraguai e Uruguai .

Kupchan enquadra o exemplo sulamericano em algumas lições essenciais. Por exemplo, a de que o mundo hobbesiano da competição interestatal, onde impera o dedo no olho e os golpes abaixo da linha de cintura, pode até ser um ponto de partida para a análise das relações internacionais, mas não precisa ser necessariamente seu ponto de chegada. A competição pode ser superada por arranjos sustentáveis cooperativos, em que antigos inimigos passam a se tratar como atores confiáveis.

A segunda lição é a de que a mão invisível do liberalismo é incapaz de produzir tal arquitetura por geração espontânea. Ela deve ser induzida por projetos nacionais e tudo deve começar com um dos atores, em geral o de maior peso, dispondo-se a fazer concessões. É a diplomacia que impulsiona a economia, e não o contrário. Ela constrói o ambiente que produz saldos comerciais e financeiros positivos no longo prazo, facilita a inserção de empresas e enraíza a interdependência econômica.

Uma terceira lição é a de que as ordens sociais entre os países devem se tornar cada vez mais compatíveis, harmônicas. Ordens instáveis e incompatíveis entre si são um fator inibidor do entendimento.

Kupchan destaca ainda, no caso sulamericano e em outros, que o fundamental nos processos de integração é o surgimento de uma identidade entre os países que supere as rivalidades reinantes. O trânsito de pessoas, o entrosamento cultural, a familiaridade com a paisagem dos vizinhos são um ingrediente dos avanços.

Neste sentido, os sinais do Mercosul são muito promissores. O volume do comércio entre os países do bloco (hoje em torno de US$ 30 bilhões por ano) tem crescido , embora percentualmente ao PIB tenha ocorrido uma estagnação momentânea. A situação se explica, estruturalmente, pela assimetria entre os países e, conjunturalmente, pela estratégia de seus países no sentido de diversificarem seus parceiros e não se atrelarem exclusivamente a alguns poucos (2).

Certos números são surpreendentes. Em quatro anos (2006 a 2009), o número de brasileiros que estudam a língua espanhola saltou de um para mais de cinco milhões (dados do Instituto Cervantes). A razão foi a lei sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005, que obrigou a oferta do Espanhol no ensino médio.

Praticamente um em cada cinco turistas que visitam o Brasil é argentino. Em contrapartida, em 2010 quase dobrou a quantidade de brasileiros que visitaram a capital portenha.

Os turistas vindos do Mercosul representam 70% do fluxo receptivo do Uruguai, 30% do fluxo receptivo da Argentina, mesmo patamar do Brasil, sendo baixo apenas no Paraguai (pouco mais de 10%) (3).

O projeto de integração é um desafio de grande envergadura e tem obstáculos consideráveis. Grande parte deles é resultante de seus pecados originais. A vertente comercial tornou-se hipertrofiada ao longo de 20 anos, enquanto persiste um déficit de participação democrática e representação política, com um Parlasul que ainda está por se estruturar plenamente. O Brasil, infelizmente, tem negligenciado e protelado esse passo.

Por outro lado, a entrada da Venezuela, que significaria a expansão do mercado comum, tem sido sistematicamente adiada pelo Paraguai, com argumentos que não convencem sequer os opositores venezuelanos do presidente Hugo Chávez, que defendem a entrada de seu país no bloco.

Nos últimos anos, uma agenda intensa de políticas públicas tem se construído setorialmente, nas áreas da agricultura familiar, desenvolvimento social, educação, saúde, infraestrutura, turismo, segurança e defesa, dentre outras. Isso permite vislumbrar ações que contribuam para eliminar a pobreza, reduzir as assimetrias existentes, construir uma infraestrutura que permita ampliar o comércio na região e aprofundar a democracia, desafios destacados recentemente pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, Alto Representante-Geral do Mercosul (Agência Senado, 24/3/2011).

No momento atual, o Mercosul reúne mais razões de otimismo que os demais blocos. A União Europeia, sob crise aguda, vive um de seus piores momentos. O Nafta acentuou os problemas da economia mexicana (o comércio que mais cresce com seu vizinho, do outro lado do Rio Grande, é o de drogas), e os Estados Unidos patinam para superar a recessão. A APEC, além de muito heterogênea e pouco institucionalizada, pouco avançou diante da competição entre seus países, que disputam muitas vezes o mesmo espaço. A China, por exemplo, tem crescido, além de seus méritos próprios, sobre um declínio relativo do Japão.

Há 20 anos, quem seria capaz de dizer que se chegaria tão longe?

Referências:
(1) ”KUPCHAN, Charles A. How Enemies Become Friends. Princeton: Princeton University, march 2010)

(2) SOUZA, André de Mello e Souza, OLIVEIRA, Ivan Tiago Machado e GONÇALVES, Samo Sérgio. Integrando desiguais: assimetrias estruturais e políticas de integração no Mercosul. Rio de Janeiro: IPEA, março de 2010. Texto de Discussão no. 1477.

(3) TOMAZONI, Edegar Luis. Turismo como Desafio do Desenvolvimento Econômico do Mercosul na Era da Globalização. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 2008.


(*)Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.


(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)



                                          <><><><><><><><><><><><><><><><><>




1964: data incômoda para a direita

Emir Sader



A cada ano, quando nos aproximamos da data do golpe de 1964, uma sensação incômoda se apossa da direita – dos partidos, políticos e dos seus meios de comunicação. O que fazer? Que atitude tomar? Fingir que não acontece nada, abordar de maneira “objetiva”, como se eles não tivessem estado comprometidos com a brutal ruptura da democracia no momento mais negativo da história brasileira ou abordar como se tivessem sido vítimas do regime que ajudaram a criar?

Difícil e incômoda a situação, porque a imprensa participou ativamente, como militância politica, da preparação do golpe, ajudando a criar um falso clima tanto de que o Brasil estivesse sob risco iminente de uma ruptura da democracia por parte da esquerda, como do falso isolamento do governo Jango. Pregaram o golpe, mobilizaram para as Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade, convocadas pela Igreja, tentaram passar a ideia de que se tratava de um movimento democrático contra riscos de ditadura e promoveram a maior ruptura da democracia que o Brasil conheceu e a chegada ao poder da pior ditadura que conhecemos.

Na guerra fria, a imprensa brasileira esteve plenamente alinhada com a politica norteamericana da luta contra a “subversão” contra o “comunismo”, isto é, com o radicalismo de direita, com as posições obscurantistas e contrárias à democracia, estabelecida com grande esforço no Brasil. Estiveram em todas as tentativas de golpe contra Getúlio e contra JK. Em suma, a posição golpista da imprensa brasileira em 1964 não foi um erro ocasional, um acidente de percurso, mas a decorrência natural do alinhamento na guerra fria com as forças pró-EUA e que se opuseram com todo empenho ao processo de democratização que o Brasil viveu na década de 1950.

Deve prevalecer um misto de atitude envergonhada de não dar muito destaque ao tema, com matérias que pretendam renovar a ideia equivocada de que a imprensa foi vitima da ditadura – quando foi algoz, aliado, fator no desencadeamento do golpe e da ditadura. (O livro de Beatriz Kushnir, Cães de guarda, da Boitempo, continua a ser leitura indispensável para uma visão real do papel da mídia no golpe e na ditadura.) Promoveu o golpe, saudou a instalação da ditadura e a ruptura da democracia, tratou de acobertar isso como se tivesse sido um movimento democrático, encobriu a repressão fazendo circular as versões falsas da ditadura, elogiou os ditadores, escondeu a resistência democrática, classificou as ações desta resistência como terroristas – em suma, foi instrumento do regime de terror contra a democracia.

Por isso a data é incômoda para a direita, mas especialmente para a imprensa, que quer passar por arauto da democracia, por ombudsman das liberdades politicas. Quem são os Mesquitas, os Frias, os Marinhos, os Civitas, para falar em nome da democracia?

Por isso escondem, envergonhados, seu passado, buscam a falta de memória do povo, para que não saibam seu papel a favor da ditadura e contra a democracia, no momento mais importante da história brasileira. Por isso tem que ressoar sempre nos ouvidos de todos a pergunta: Onde você estava no golpe de 1964?


(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)



POLÍTICA INTERNACIONAL

ENTREVISTA - Parte I

 

EUA e aliados querem legitimar doutrina da intervenção humanitária

 

As razões pelas quais Estados Unidos, França e Inglaterra dediciram liderar uma ação militar na Líbia contra o regime de Muammar Kadafi ainda não estão muito claras. Os limites desta ação determinados pela resolução aprovada no Conselho de Segurança das Nações Unidas falavam da instalação de uma "zona de exclusão aérea" com o objetivo de proteger a população civil dos ataques dos aviões de Kadafi. Mas esses limites já foram extrapolados, com ataques no solo a tanques e tropas leais ao governo líbio. O que, afinal, está por trás desta ação?

Em entrevista à Carta Maior, concedida por correio eletrônico, o historiador e cientista político Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira analisa as revoltas populares que estão acontecendo no Oriente Médio e no norte da África. Sobre o conflito líbio, Moniz Bandeira reconhece que as razões da posição de EUA, França e Inglaterra não estão muito claras e podem estar relacionadas a questões internas destes países e também à vontade de legitimar a doutrina da intervenção humanitária.

"Os objetivos não estão claros. A guerra foi praticamente iniciada pelo presidente da França, Nicolas Sarkozy. Supõe-se que ele deseja evitar que uma guerra civil na Líbia provoque um grande fluxo de refugiados para o sul da França. Mas há outras hipóteses. Tanto na França como nos Estados Unidos, cujos presidentes estão muito desgastados, bem como na Inglaterra, motivos eleitorais provavelmente influíram na decisão de deflagrar a guerra. O petróleo, aparentemente, não foi um fator decisivo", avalia.

Cientista político e professor titular de história da política exterior do Brasil na UnB (aposentado), Moniz Bandeira é autor de mais de 20 obras, entre as quais "Formação do Império Americano", que lhe valeu a escolha de Intelectual do Ano 2005, pela União Brasileira de Escritores, e o Troféu Juca Pato. Em abril deve estar nas livrarias a 3ª edição de seu livro "Brasil-Estados Unidos: a rivalidade emergente", prefaciado pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.

Carta Maior: Na sua avaliação, quais são as principais causas das revoltas que estamos assistindo hoje no Oriente Médio e norte da África?

Moniz Bandeira: É difícil apontar os principais fatores que determinaram e determinam a eclosão das revoltas nos países árabes. São diversos e complexos. E tudo indica que são autóctones, não obstante o fenômeno do contágio. O sucesso do levante na Tunisia estimulou o alçamento no Egito e daí se alastrou, conforme as condições domésticas de cada um dos países da região. Há, decerto, diferenças históricas, sociais e políticas entre os dois países. Suas estruturas de Estados e instituições são diferentes. Ao contrário da Tunísia, o Egito é o mais populoso país árabe e o mais importante, do ângulo geopolítico e geoestratégico, no Oriente Médio. Entretanto, nos dois países, há uma juventude, com certo nível de educação e saúde que não encontra emprego ou ocupação adequada à sua capacitação.

A Tunísia tem uma população de cerca de 10,4 milhões de habitantes, altamente alfabetizada e urbanizada e apenas 3,8% vivem abaixo do nível de pobreza. Porém, com uma força de trabalho de quase 4 milhões de pessoas, o nível de desemprego, da ordem de 14%, é muito elevado. O Egito, por sua vez, tem uma população de 76,5 milhões de habitantes, dos quais cerca de 20% a 25% vivem abaixo do nível de pobreza. Sua força de trabalho soma 26,1 milhões, mas o índice de desemprego, da ordem de 9.7%, é bastante elevado. Apesar de haver crescido 5% nos últimos anos, sua economia não conseguiu criar empregos conforme as necessidades da população. A juventude está seriamente afetada pelo desemprego. Cerca de 90% dos desempregados são jovens com menos de 30 anos. Os graduados têm de esperar pelo menos cinco anos por uma oportunidade de trabalho na administração. E as políticas neoliberais executadas pelo ditador Hosni Mubarak agravaram as desigualdades e provocaram o empobrecimento de milhões de famílias.

As oportunidades de trabalho, há muitas décadas, crescem muito menos do que a taxa de crescimento da população. Entrementes, no campo, há algumas regiões com excesso de força de trabalho, e outras com carência. E os regimes tanto na Tunísia e quanto no Egito estavam politicamente estagnados, sob ditaduras corruptas e brutais de Zine el-Abidine Ben Ali e de Hosni Mubarak. Esse fato, em meio à ao desemprego, extrema pobreza, inflação, alta dos preços dos alimentos e o ressentimento político provocado pela sistemática repressão, foi aparentemente fundamental na deflagração das revoltas, que, sem dúvidas, seitas islâmicas fundamentalistas, como a Irmandade Muçulmana no Egito, e interesses estrangeiros trataram e tratam de aproveitar.

Carta Maior: Essas revoltas pegaram os Estados Unidos e seus aliados de surpresa, desestabilizando suas políticas na região, ou a turbulência atual não representa risco maior para eles?

Moniz Bandeira: Muito provavelmente as revoltas na Tunísia e também no Egito surpreenderam os Estados Unidos e a todos os países do Ocidente. Durante algumas semanas o governo de Washington nada disse sobre a sublevação na Tunísia. E, quando Hilary Clinton, viajou para Tunis, dois meses após a derrubada do ditador, ocorreram demonstrações contra a sua visita. Se houvesse consciência do que estava a acontecer, a secretária de Estado não haveria declarado, quando o levante começou no Cairo, "Our assessment is that the Egyptian government is stable and is looking for ways to respond to the legitimate needs and interests of the Egyptian people." Esta avaliação de que o regime de Mubarack era estável demonstra o grau de desconhecimento que o governo dos Estados Unidos tinha da real situação no Egito. Que havia descontentamento, sabia-se, mas não a sua extensão nem o que poderia provocar.

É claro que tal turbulência representa um risco para os Estados Unidos e para a União Européia, pois não se pode descartar a possibilidade de que a Irmandade Muçulmana, a única força organizada no Egito, vença as eleições e assuma o governo e que os fundamentalistas islâmicos venham a predominar, de alguma forma, nos outros países árabes.
                                                - CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA


(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)


                     <><><><><><><><><>


Entre tapas e beijos
 




 
O filósofo Tomás de Aquino escreveu ser legítimo, a qualquer um do povo, cometer um tiranicídio. Matar um tirano no poder seria, à luz da doutrina tomista, como agir sob o manto da legítima defesa social. Sobre isso, os rebeldes líbios avisaram às forças da coalizão da ONU competir apenas a eles a tarefa de matar Muammar Kaddafi.
A propósito, a pena de morte está prevista na legislação da Líbia desde 1969, quando o então capitão Kaddafi promoveu o golpe que derrubou o soberano Idris, responsável pela proclamação da independência em 1951.
O premier britânico, David Cameron, pensa diferente dos rebeldes e deu canhestra interpretação à Resolução 1.973 das Nações Unidas, aquela que autorizou a intervenção humanitária e que contou, no início, com o aval da Liga Árabe, com exceção de dois Estados dela membros, Argélia e Síria. Assim, um ataque britânico destruiu, em Trípoli, toda parte residencial do complexo de Bab el-Aziziya. A meta era, efetivamente, matar Kaddafi. Nos primeiros três dias de intervenção, atuaram três comandos (EUA, França e Reino Unido), cada um a agir por si e a livremente interpretar a resolução das Nações Unidas.
Como sabem todos os grãos de areia do deserto líbio, o conflito a produzir um mar de sangue estava localizado na antiga região da Cirenaica, onde fica Bengazi, o berço da revolta e das reservas de petróleo e gás. Na velha região da Tripolitânia, sob domínio de Kaddafi, não existe conflito. Portanto, o ataque britânico a Bab el-Aziziya nada teve de humanitário. Só que Kaddafi, escaldado, lá não estava.
Em 5 de abril de 1986, um ataque terrorista financiado e ordenado por Kaddafi matou 229 frequentadores da discoteca La Belle, em Berlim Ocidental. Dentre os mortos estavam 50 militares norte-americanos que lá se divertiam. Como represália, o presidente norte-americano Ronald Reagan determinou o bombardeamento da residência de Bab-elAziziya. Avisado pelo ex-premier italiano Bettino Craxi, Kaddafi conseguiu deixar a residência, mas sem tempo de tirar sua filha adotiva de 16 anos. Sem Kaddafi, não haveria garantia de abastecimento de gás e petróleo para a Itália.
A Resolução 1.973 foi concebida num momento em que havia uma guerra civil e as forças militares de Kaddafi, próximas a Bengazi, tinham matado mais de 180 civis num único dia. A resolução “autoriza o emprego de todas as medidas necessárias a proteger as populações civis e as zonas habitadas por civis.”
No campo do direito internacional, pode-se discutir a sua pertinência em face de uma revolta interna, da violação ao princípio do Estado soberano e da autoderminação dos povos. No entanto, o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos permite a intervenção para a defesa da pessoa. Como frisou Massimo D’Alema, ex-premier e ex-ministro de Relações Exteriores da Itália, “a intervenção era justa. Vidas humanas foram poupadas e a ofensiva de Kaddafi levaria a um massacre de civis inocentes”. O problema, ressalta D’Alema, está na falta de definição de objetivos e no protagonismo e precipitação de Sarkozy, que se gaba de ter evitado o massacre em Bengazi.
Nesta quadra, convém registrar que França, Itália e Reino Unido sempre tiveram interesse na região. Em 1911, ela foi tomada pelos italianos do Império Otomano por 30 anos. De 1943 a 1951, ficou sob desfrute de um consórcio formado por França e Inglaterra. Por outro lado, impor uma no-fly zone para cumprir a resolução da ONU não implicava partir de pronto para um bombardeamento, voltado à destruição dos meios e das forças militares de Kaddafi. Medidas de persuasão deveriam anteceder os ataques. Mas nem o controle de fronteira com o Chade, onde são arregimentados os mercenários por Kaddafi, foi realizado. E nem se cogitou em abater apenas os caças que decolavam.
Com o fim da Guerra Fria, Kaddafi mudou de lado. Logrou levantar embargos e despejar pelo planeta dinheiro de cinco fundos soberanos da Líbia. Apenas na Europa, o país mandou investir 340 bilhões de dólares e chegou a evitar a falência da Fiat. Hoje, o Reino Unido é o maior dependente financeiro dos fundos líbios.
Uma pequena amostra dos receptores de dinheiro líbio: nos EUA, Xerox, Pfizer, Halliburton, Mobil e Chevron; na França, Electricité de France (EDF) e Alcatel-Lucent; na Alemanha, Siemens; no Reino Unido, Shell-Royal Dutch, Vodafone, Glaxo SmithKline, Person, Standard Chartered e BP; na Itália, ENI (energia), Unicred (segundo maior banco) e Finmeccanica.
De repente, fala-se em derrubar Kaddafi para implantar democracia e permitir liberdades individuais e públicas. Antes, Kad-dafi era incensado e plantava barracas em Paris e Roma. E o amigo dos ditadores, Sarkozy, agora assume o papel de protagonista de uma farsa para encobrir interesses econômicos e eleitorais. No Bahrein, na Jordânia e na Arábia Saudita, os ditadores convêm e o povo não adianta esperar por uma Resolução 1.973. A secretária Clinton queria o diálogo e não a queda de Mubarak.

28 março 2011

HOMENAGEANDO AS MULHERES





                 " Não é verdade que não se pode viver sem uma mulher. Apenas não se pode ter vivido sem uma."
(Karl Kraus)

27 março 2011

O QUÊ HÁ PARA LER

Estamos vivenciando um momento deveras conturbado. Parando um momento para refletir
sobre os acontecimentos, veremos que tudo, ou quase, tem a mão humana fazendo das suas.
Com exceção dos fenômenos sismícos, tudo o mais ocorre com nossa interferência:
alterações climáticas, guerras, especulação financeira, consumismo desenfreado... a lista é
longa. Para ajudar na reflexão sobre o que ocorre ao nosso redor,  entender e despertar
para uma nova atitude diante dos fatos, leiam:
Uso racional da água pode ser vantagem para o Brasil
Na década da biodiversidade, a ano internacional das florestas
Fukushima nunca mais!
Para impedir uma nova crise alimentar
Desigualdade ainda atinge mulheres na agricultura

Quem acompanha este blog, eu e mais outro, nota nossa sistemática cruzada contra a chamada
"grande imprensa nativa", no dizer de Mino Carta. Manipulação, distorção, mentira, hipocrisia
e má qualidade, são suas marcas. Para comprovar, leiam:

A entrevista que a revista Veja escondeu, de Washinton Araújo e

Liberdade de expressão: o silêncio como forma de censura,  de Venício Lima

Sobre a reforma política, em andamento no congresso nacional, temos o artigo de Marcos
Coimbra, Facultativo, dando sua opinião, que nos ajuda a formar a nossa, sobre o voto:
obrigatório ou facultativo.

Temos, também, a presença quase constante da opinião de Mino Carta, desta vez comentando
um assunto recorrente na dita mídia nativa: o ex-presidente Lula. Há uma campanha não
camuflada de tentar criar atrito entre o ex e a atual chefe de governo. Esperamos que a
presidenta não caia na armadilha.

Boa leitura!    

  

A OPINIÃO DE MINO CARTA

A ausência de Lula
(Modesta dissertação sobre a enésima confirmação dos delírios da mídia)



O ausente foi mais presente do que os presentes. A frase não é minha, é do professor Delfim Netto, e diz respeito às reações da mídia nativa à ausência de Lula no almoço oferecido pela presidenta Dilma a Barack Obama. Os jornalões mergulharam no assunto em colunas e reportagens por três dias a fio, entregues com sofreguidão à tarefa de aduzir o porquê daquela cadeira vazia sem receio de provar pela enésima vez sua vocação onírica.

Neste espaço, o sonho midiático foi meu tema da semana passada, mas os especialistas em miragens insistem em mostrar a que vêm, sem contar o complexo de inferioridade tão explicitamente exposto com a visita do presidente americano apresentada como um celebrity show. As emissoras globais ficaram no ar 24 horas para contar todos os passos de Obama ou mesmo para esperar que ele os desse. A certa altura vimos um perdigueiro da informação aguardar no Galeão, por mais de uma hora, a chegada do avião que levava o visitante de Brasília ao Rio, em proveito exclusivo de uma visita instrutiva dos telespectadores a um aeroporto às moscas.

É o recalque do vira-lata, e esta definição também não é minha, já caiu da boca de Lula. Quanto à sua ausência no almoço de Brasília, li entre as versões que ele não apareceu para “não ofuscar” a anfitriã, a mostrar toda a sua pretensão, acompanhada pela dúvida de um colunista: “ao recusar o convite”, foi malandro ou zé mané? Textos de calibres diversos clamam contra “a descortesia”. Uma colunista do Estadão aventa a seguinte hipótese: o ex-presidente quis evitar o constrangimento “de ouvir sem compreender a conversa na mesa, da qual fazia parte Fernando Henrique Cardoso”. Ah, o príncipe dos sociólogos, este é um poliglota. E não falta quem convoque a inveja de Lula por Dilma, que recebe Obama em lugar dele, embora o tivesse convidado em 2008.

Segundo um colunista do Valor Econômico, o ex também foi descortês com Obama, que já o tratou tão bem. A Folha localizou “um amigo de Lula” disposto à revelação: ele está irritado “com os elogios excessivos da mídia a Dilma”. Uma colunista da Folha vislumbra na ausência de Lula a demonstração “do contraste de estilos” e até a torna mais evidente. Neste esforço concentrado no sentido de provocar algum desentendimento entre o ex e a atual, imbatível o editorial do Estadão de domingo 20, provavelmente escrito por um aluno de Maquiavel incapaz de entender a ironia do mestre.

Fala-se em “mudança de mentalidade que emana do Planalto”, “sobriedade em lugar de espalhafato”, “distanciamento das inevitáveis servidões” do ofício presidencial. Transparente demais a manobra. Não escapa, porém, ao ato falho, ao discordar da presidenta no que se refere à posição de Dilma quanto “ao atual surto inflacionário”, embora formulada a objeção com suave cautela, para aplaudir logo o propósito do governo de abrir os aeroportos à iniciativa privada em regime de concessão.

São teclas antigas de quem professa a religião do Deus Mercado e enxerga nas privatizações os caminhos da Graça. Os praticantes brasileiros dos jogos financeiros não estão sozinhos: de fato, para variar, trata-se de pontuais discípulos, ou imitadores. Os Estados Unidos ensinam, por lá os vilões do neoliberalismo, responsáveis pela crise mundial, continuam a postos para atiçar a doença. O exemplo seduz. Aí se origina a tentativa, levada adiante obviamente pela mídia, de derrubar o ministro Guido Mantega, representante da continuidade que a tigrada gostaria de ver interrompida de vez.

As consequências da aventura neoliberal, que deixaria o próprio Adam Smith em pânico, atingem inclusive o Brasil. No ano passado crescemos 7,5%, este ano a previsão fica bastante abaixo, entre 4% e 4,5%. Será um bom resultado no confronto com outros, mas dirá que ninguém está a salvo. CartaCapital confia na permanência de Mantega e na continuidade, ainda que, desde a posse, reconheça na presidenta a capacidade de imprimir à linha do governo características da sua personalidade.

É simplesmente tolo imaginar a ruptura almejada pela mídia, perfeita intérprete de um sentimento que sobe das entranhas de burgueses e burguesotes contra o metalúrgico nordestino eleito à Presidência duas vezes por larga maioria e destinado a passar à história como o melhor e mais amado desde a fundação da República. Pelo menos até hoje. Os senhores do Brazil zil zil ainda cultivam o ódio de classe. O mesmo Lula, que frequentemente mantém contatos com a sucessora, a qual, do seu lado, sabia previamente da ausência do antecessor ao almoço, observa: “Quando me elegi, me apresentaram como a continuidade de FHC, agora dizem que Dilma não dá continuidade ao meu governo”.

O ex-presidente tucano formula, aliás,- a sua hipótese sobre a ausência de Lula: inveja dele mesmo, FHC. Quem sabe o contrário se dê de fato quando, dentro de poucos dias, Lula receber o canudo honoris causa da Universidade de Coimbra.

Teste final: se Lula fosse ao almoço, que diria a mídia? Foi para: A. Não ficar atrás de FHC; B. Pronunciar um discurso de improviso em louvor a Chávez, Fidel e Ahmadinejad. C. Ofuscar Dilma.


F A C U L T A T I V O

Marcos Coimbra (*)


Na pauta da comissão Especial do Sena­do que trata da reforma política, uma das propostas é adotar o voto facultativo. Depois de quase 80 anos de voto compulsório, estabelecido pelo Código Eleitoral de 1932, a mudança ganha adeptos.

Apesar disso, ao que parece, o tema ainda divide os senadores, assim como faz com a sociedade.
Dos vários que estão sendo discutidos, nenhum é tão polêmico.

As pesquisas feitas nos últimos anos mostram que há maiorias claras em favor de algumas ideias (como a fidelidade partidária e a reeleição) e contrárias a outras (como o financiamento público de campanhas e o voto em lista fechada). No tocante à obrigatoriedade do voto, contudo, a proporção dos que querem mantê-la é igual à dos que preferem que acabe. Se dependesse da opinião dos cidadãos comuns, teríamos um impasse.

Existem razões para defender as duas opções, embora a quase totalidade das democracias avançadas atuais tenham o voto apenas como direito e não como dever. O debate entre críticos e defensores do modelo já dura anos, sem que qualquer lado possa se dizer vitorioso.

No cerne, a principal diferença está na avaliação de quando convém a um país como o nosso abrir mão da obrigatoriedade e avançar em direção ao voto facultativo. Quem concorda com nossa tradição entende que ainda é cedo. Quem quer alterá-la acha que já estamos preparados.

Quando perguntadas, nas pesquisas, sobre como se comportariam se o voto não fosse compulsório, uma boa proporção das pessoas afirma que continuariam a votar. Em uma feita pelo Vox Populi nas vésperas da eleição de 2010, por exemplo, 74% dos entrevistados disseram que votariam mesmo se o voto fosse facultativo.

Fora do ambiente eleitoral, as respostas costumam ser menos enfáticas. Em uma pesquisa anterior do Vox, a pergunta oferecia três opções ao entrevistado: se votaria sempre, se votaria dependendo da eleição ou se não votaria, caso não houvesse a obrigação
.
Os resultados indicam que, se o voto fosse opcional, existiriam, no Brasil, dois tipos de eleitor (cada um com perto de 35% a 37% do eleitorado) e um grupo de não eleitores (com os restantes 30% ou um pouco menos). Poderíamos chamar os primeiros de eleitores regulares, que votariam em qualquer situação. Os segundos, de eleitores ocasionais, que votariam apenas quando se sentissem motivados. Os terceiros seriam as pessoas que tenderiam a nunca votar.

Levando essas proporções ao pé da letra, a expectativa seria a de que, nas eleições reais, o número de votantes ficasse abaixo de dois terços do eleitorado (pois o terço final seria formado pelos não eleitores), mas não inferior a um terço (pois os eleitores regulares garantiriam esse mínimo). Entre os dois, as taxas de comparecimento poderiam variar, em alguns casos ficando aquém, mas, na maior parte das vezes, indo além dos 50%.

Ao olhar nossas eleições presidenciais modernas, vemos resultados coerentes com essa hipótese. Em 1989, pelo inusitado, tivemos a única em que os não eleitores foram bem menos que o esperado e o total de votantes chegou a 81%. Em 1994, os votantes caíram para 66% e, em 1998, para 63% do eleitorado, o que indica quão desmobilizadoras foram as eleições dominadas pelo Plano Real. Em 2002 e 2006, a proporção de votantes voltou a subir, para perto dos 75%. Agora em 2010, continuamos nesse patamar.
O que isso sugere é que, apesar da obrigatoriedade formal, o eleitorado brasileiro se comporta de maneira semelhante ao que declara que faria se o voto fosse facultativo. Ou seja, o fato de o voto ser obrigatório não implica nem que todos queiram votar nem que votem.

Note-se que, caso fossem considerados os números de outras eleições, como as municipais e legislativas, teríamos, em muitas situações, distâncias ainda maiores entre eleitores e votantes – entre os que estão obrigados a votar e os que votam. Em alguns estados do Nordeste, nas eleições para a Câmara dos Deputados, não são raros exemplos em que o total de votos nominais fica abaixo da metade da população apta a votar.

Ganha-se alguma coisa ao se oficializar o que existe? Tornando legal aquilo que a sociedade faz na prática? É provável que sim, assim como é provável que pouco perderíamos se abandonássemos o voto compulsório. O risco de os coronéis do interior obrigarem as pessoas a ir votar (ou a deixar de fazê-lo) é real, mas afeta um pedaço cada vez menor do País, em eleições cada vez menos importantes.

A adoção do voto facultativo (especialmente se vier acompanhada da desobrigação do registro, permitindo que o eleitor exerça seu direito de voto quando quiser e livre de burocracias) pode aprofundar a democracia brasileira.


I M P R E N S A

Publicado originalmente no Observatório da Imprensa



Existem notícias que nos fazem rever o conceito do valor-notícia. Estou com isto em mente após ler a entrevista que o ex-governador José Roberto Arruda (DF) concedeu em setembro de 2010 à revista Veja. Na entrevista, Arruda decidiu dar uma espécie de freio de arrumação em suas estripulias heterodoxas como governador do Distrito Federal: atuou como principal protagonista no festival de vídeos dirigido pelo ex-delegado de polícia Durval Barbosa e que tratavam de um único tema: a corrupção graúda correndo solta nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do Distrito Federal.

Na entrevista publicada na quarta-feira (17/3) no sítio de Veja encontramos o ex-governador desarrumando as biografias de seus antigos companheiros de partido, pessoas como os senadores Agripino Maia, Demóstenes Torres, Cristovam Buarque e até o sempre correto Marco Maciel. Não faltaram mísseis dirigidos aos deputados ACM Neto, Rodrigo Maia e Ronaldo Caiado. E também ao presidente do PSDB, o agora deputado Sérgio Guerra. Na fala de Arruda sobra ressentimento e, mesmo tendo passado alguns meses, ainda trai uma certa conotação de vingança.

Não. Não estou desmerecendo o valor de uma única palavra de Arruda nessa entrevista. Após ler os desmentidos de todos os novos citados no escândalo conhecido como o "panetone do DEM" (ver, neste Observatório, "Panetones na Redação" e "Mídia encara corrida de obstáculos"), confesso que nenhum me convenceu: a defesa esteve muito inferior ao ataque desferido e onde as palavras deveriam ser adjetivas conformaram-se como nada mais que substantivas. Naquele velho diapasão do "nada como tudo o mais além, ainda mais em se tratando deste assunto, muito pelo contrário". Ou seja, a bateria antimíssil deixou muito a desejar e, considerando a virulência verbal dos agora acusados de receberem apoio financeiro no mínimo com "origem suspeita", os desmentidos surgem como bolhas de sabão que tanto animam festas infantis. Desmancham-se no ar.

Miúdos e graúdos
O que me causou profunda estranheza nessa entrevista nem foi seu conteúdo, menos ainda seu personagem. O que me deixou perplexo, com todas as pulgas aninhadas em volta da orelha, foi o timing da publicação da entrevista. Por que Veja, tendo entrevistado o ex-governador em setembro de 2010, somente agora, quase 190 dias depois, resolveu levá-la ao conhecimento de seu público leitor? O ponto é que o mais robusto episódio de explícita corrupção, o único escândalo com tão formidável aparato midiático, com dezenas de vídeos reproduzidos nos principais telejornais do Brasil, merecia ter um tratamento realmente jornalístico: descobrindo-se novos fatos, novos meliantes, novas falcatruas, tudo teria que vir à luz, a tempo e a hora.

Convém refrescar a memória com essas autoexplicativas manchetes dos principais jornais brasileiros no dia 28/11/2009:

**
O Globo: "Governador do DEM é suspeito de pagar propina a deputados". E diz que "PF grava José Roberto Arruda negociando repasse de dinheiro com assessor";

**
Folha de S.Paulo: "Governo do DF é acusado de corrupção";
**

O Estado de S.Paulo: "Polícia flagra ‘mensalão do DEM’ no governo do DF". E diz que o esquema "teria até mesmo participação do governador Arruda".
No dia seguinte, 29/11/2009, as manchetes continuaram com tintas denunciatórias:

**

O Globo teve como manchete principal "PF: Arruda distribuía R$ 600 mil todo mês";

**

Folha de S.Paulo optou por "Documento liga vice-governador do DF a esquema de corrupção";

**

O Estado de S.Paulo não deixou por menos: "Em vídeo, Arruda recebe R$ 50 mil".


E, para concluir essa sessão "refresca memória", compartilho as manchetes dos jornalões no dia 30/11/2009:

**

O Globo abriu sua edição com a manchete "Arruda: TSE vê indício de caixa 2";

**

Folha de S.Paulo destacou na primeira página: "Vídeos mostram aliados de Arruda recebendo dinheiro";
**

O Estado de S. Paulo abriu manchete com "Vídeos ‘letais’ levam DEM a preparar expulsão de Arruda", destacando em subtítulo que "Provas contundentes da PF deixam governador em situação insustentável".


**

Até o fluminense Jornal do Brasil passou a tratar do assunto com a importância que o assunto requeria: "Aliados deixam Arruda isolado".
Tudo bem, este foi o início da divulgação do escândalo. E, como sempre acontece, o início de todo escândalo político tende a ser megapotencializado. É assim aqui no Brasil, na Itália, no Reino Unido, no mundo todo. No caso atual, pela primeira vez um governador no Brasil esteve trancafiado por tão longo tempo: 60 dias, de 11 de fevereiro a 12 de abril de 2010. A carceragem se deu na sede da Superintendência da Polícia Federal, em Brasília.

Antes de completar um ano de sua divulgação, o escândalo produziu a cassação de mandatos de diversos deputados distritais, a renúncia de um senador da República, a instauração de diversos inquéritos para apurar responsabilidades de políticos miúdos e graúdos e também de procuradores do Ministério Público do Distrito Federal.

E foi nesse meio tempo que, segundo os advogados de Arruda, em setembro de 2010, o ex-governador concedeu a entrevista ao carro-chefe da Editora Abril. O que as teclas de meu micro querem saber é por que Veja escondeu comprometedora entrevista de Arruda.

Insidiosa, rastejante
Tenho exposto aqui neste Observatório minhas teses sobre a forma e o modus operandi de como a imprensa, a grande imprensa, tem se comportado como agremiação político-partidária. E essa defasagem de mais de seis meses entre a data da entrevista e a data de sua divulgação é de chamar a atenção.

Quais as reais motivações para que fosse esquecida, largada na gaveta de um editor aparentemente displicente? Por onde andaria aquele polvo-caçador-de-corruptos-no-Planalto que não deu a mínima trela para essa entrevista? Ninguém na redação de Veja considerou um mísero grama de valor-notícia para buscar a versão dos "novos acusados"? Ou seria mais um desserviço à campanha presidencial de José Serra? Desserviço que, com certeza, cobriria tal campanha de portentosa agenda negativa, incluindo sob suspeição até mesmo o presidente de seu partido.

Todos sabemos que o papel da imprensa é informar a população. Aprendemos isso ainda nos primeiros dias de aula de qualquer curso de jornalismo, mesmo aqueles chamados "meia-boca". Por que à população brasileira foram suprimidas tais informações?

É, não é necessário muitos decênios de madura experiência como analista da política brasileira para entender que dentre as mil possíveis razões para que ocorresse tal ocultação uma delas sobressai, insidiosa, sibilina, rastejante: a entrevista de Arruda, que hoje causa apenas perplexidade, publicada em setembro de 2010 traria em seu cerne forte componente explosivo capaz de desarrumar por completo o pleito presidencial de 2010.

Mas, como dizem nossos oráculos da imprensa... o leitor vem sempre em primeiro lugar.



(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)




                                   <><><><><><><><><><><><><><><><><><>



Liberdade de expressão: o silêncio como forma de censura


Venício Lima(*)
Publicado originalmente no Observatório da Imprensa





Em debate recente cujo tema foi "Censura e liberdade de expressão: por uma outra mídia", promovido pela Secretaria de Audiovisual do Mininstério da Cultura e pelo programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, realizado no Rio de Janeiro, tentei argumentar que, contrariamente ao "eixo discursivo" dominante na grande mídia, o Estado não é o único censor e, muitas vezes, nem sequer o mais importante. Existem várias formas de censura e, por óbvio, diferentes censores (ver, neste Observatório, "A privatização da censura").

Estamos nos referindo à censura da palavra, da expressão que é um direito humano fundamental da pessoa, do indivíduo, do cidadão. Esta censura é anterior à existência não só de Gutenberg – vale dizer, da possibilidade de se imprimir – como é muito anterior à existência da instituição que passou a ser conhecida como "imprensa" e hoje chamamos de "mídia".

A "cultura do silêncio"
No Brasil, onde a "imprensa" tardia chegou somente no século 19, lembrei-me de trecho conhecido do Padre Antonio Vieira que, em sermão pronunciado na Bahia, ainda em 1640, afirmava:

"Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra – infans, infante – quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste permaneceu o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a medicina. (...) O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão".

Apoiado neste diagnóstico precoce de Vieira, o educador Paulo Freire, em vários de seus escritos, fala da nossa herança colonial de "mutismo" e mais tarde da "cultura do silêncio" dos oprimidos, impedidos de ter voz, mergulhados na submissão pelo silêncio (cf. Venício A. de Lima; Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire; Paz e Terra, 2ª. ed., 1984).

Não seria essa uma forma histórica de censura na medida em que a "cultura do silêncio" nega a boa parte da população sua liberdade fundamental de palavra, de se expressar? E quem seria, neste caso, o censor?

No Brasil colonial, certamente o Estado português e os muitos aliados que se beneficiavam da opressão aos povos nativos e aos escravos africanos. A própria sociedade era também "censora", na medida em que convivia culturalmente com a exclusão de vários segmentos de qualquer participação civil. Por exemplo, as mulheres.

Silêncio como censura
Nada disso é novidade, mas certamente ajudará, sobretudo aos jovens de uma sociedade onde nascem novas formas interativas de comunicação – as TICs – a compreender a verdadeira dimensão de conceitos como censura e liberdade de expressão.

Nessa nova sociedade-rede, uma forma disfarçada de censura é o silêncio da grande mídia em relação a determinados temas. Considerando que a grande mídia ainda é a principal mediadora e construtora dos espaços públicos, um tema deliberadamente omitido está sendo sonegado e excluído desse espaço, vale dizer, da possibilidade de fazer parte do conhecimento e do debate público.

Um exemplo recente dessa censura disfarçada foi o silêncio sobre as manifestações populares que mobilizaram centenas de milhares de pessoas por várias semanas em Madison, a capital do importante estado americano de Wisconsin (ver aqui matéria do New York Times).

Ao mesmo tempo em que sociedades autoritárias explodem no Oriente Médio, fruto de mobilizações populares – com ampla, mas seletiva, cobertura da grande mídia ocidental –, trava-se na mais poderosa democracia do mundo a primeira de uma série anunciada de batalhas entre sindicatos de trabalhadores do serviço público e governos estaduais. Os próximos estados serão Ohio, Michigan, Iowa e Indiana.

Está em jogo não só o poder de barganha desses sindicatos, como o valor das aposentadorias e seus planos de saúde. Na verdade, a corda está arrebentando do lado dos trabalhadores e eles estão reagindo. Não se sabe até onde a resistência sindical conseguirá envolver e mobilizar também outros setores da sociedade que sofrem as conseqüências da crise econômica de 2008. E, menos ainda, quais conseqüências essas mobilizações poderão produzir não só nos EUA como em outros países.

Você leitor(a), conhece a cobertura que essas manifestações mereceram na grande mídia brasileira?

Censura x liberdade de expressão x liberdade de imprensa
A discussão de temas como censura, liberdade de expressão e liberdade de imprensa é sempre oportuna entre nós. O historiador Aloysio Castelo de Carvalho no seu A Rede da Democracia (NitPress/Editora da UFF, 2010) – onde fica demonstrado o conluio dos jornais O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil, unidos para derrubar o governo democrático de João Goulart, em 1964 – adverte:

"A liberdade de imprensa é um eixo discursivo dos jornais quando eles querem se valorizar como único canal de expressão da opinião pública".

As novas gerações precisam conhecer a história da censura no Brasil e incluir aí não só a censura exercida pelo Estado, mas outras formas de censura: aquela que vem de nossa herança colonial de "cultura do silêncio" e também a censura disfarçada exercida pelo silêncio deliberado em relação a certos temas, prática rotineira na grande mídia.

 
(*)Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.



(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)

 


E C O N O M I A

Quando os preços globais dos alimentos atingiram um pico, entre 2007 e 2008, 100 milhões de pessoas entraram no contingente dos famintos, que ultrapassou pela primeira vez na História a marca de 1 bilhão de seres humanos. Agora, apenas dois anos depois, vivemos outra alta, e é provável que mais fome esteja à espreita.

A FAO, agência da ONU para Alimentos e Agricultura, acaba de publicar seu índice de preços de alimentos, relativo a janeiro de 2011. No caso de alguns produtos, ele chegou ao patamar mais alto (tanto em termos nominais quanto deflacionados) desde que a agência passou a acompanhar a variação das cotações, em 1990. Levantes populares relacionados a alimentos já começaram a ocorrer na Argélia. Enquanto a História se repete, e desenha-se a segunda grande crise de fome em dois anos, é decisivo aprendermos a lição da primeira onda, e enfrentarmos suas causas principais.

A segurança alimentar depende de tempo e mercados estáveis e previsíveis e de acesso a recursos. Tudo isso foi abalado perigosamente nas duas últimas décadas. Desde 1970, o aquecimento global causado pelo ser humano provocou o aumento dos eventos climáticos extremos em todo o mundo. Agricultores que costumavam enfrentar duas perdas de colheitas a cada década agora sofrem inundações, secas ou grandes pragas a cada dois ou três anos. Em 2010 e no início deste ano, alguns dos grandes produtores mundiais de alimentos - Argentina, Austrália, China, Paquistão e Rússia - viveram, todos, eventos climáticos que afetaram fortemente as colheitas.

A segunda fonte de instabilidade é um mercado cada vez mais caótico. Em nome do “livre” comércio, o governo dos Estados Unidos e o Banco Mundial passaram as últimas três décadas forçando a abertura dos mercados dos países pobres a importações baratas, que desorganizaram a produção. Em cruel ironia, os países pobres também foram pressionados a cortar o apoio a seus próprios agricultores e até a vender seus estoques de emergência, sob a lógica de que seria mais eficaz simplesmente adquirir comida no mercado internacional.

Em 2006, mais de dois terços das nações mais pobres dependiam de importações de alimentos. Então, veio a onda de desregulação financeira da década passada, que atraiu os especuladores para os mercados de commodities e criou fundos de índices que atrelaram, como nunca antes, os mercados de alimentos aos de petróleo e metais. Mas a “agregação”, “alavancagem” e demais os “instrumentos inovadores” que deveriam reduzir os riscos nestes mercados provocaram o efeito oposto. A consequência foi um mercado global de alimentos altamente volátil, em que fatores não relacionados com a produção e consumo reais de alimentos frequentemente determinam os preços.

Este duplo golpe global, de instabilidade climática e financeira, não atingiu a todos. A volatilidade é útil aos que atuam com muita força nos mercados. Muitas empresas de agrobusiness estão registrando lucros recordes agora - depois de já terem alcançado idêntico resultado durante a última crise. Houve um pico de concentração de propriedade. Vastas extensões de terras aráveis, nos países do Sul, têm sido compradas por investidores estrangeiros e convertidas em plantações não-alimentares - inclusive matérias-primas industriais e biocombustíveis.

Vale notar, também, que alguns países africanos não serão tão atingidos desta vez. Eles optaram por estimular a produção local, ao invés de confiar nos mercados globais. A maior parte dos agricultores pobres, contudo, luta contra situações hostis. Não é de admirar que a fome tenha se convertido numa nova norma.

Se de fato consideramos a desnutrição global algo inaceitável - e não uma oportunidade de negócios - é preciso fazer grandes mudanças. Quase todos no Banco Mundial, na ONU ou no G-20 reconhecem a necessidade de apoiar os pequenos agricultores, especialmente mulheres, nos países que enfrentam fome. Em termos globais, 70% da comida é produzida em imóveis de menos de dois hectares, conduzidos em grande parte por mulheres.

A ajuda ao desenvolvimento, assim como as políticas governamentais dos países do Sul, deveriam estar focadas em apoiar as conquistas de produtividade destes agricultores, e sua capacidade de enfrentar as crises. Ao invés de deixá-los impotentes diante das forças globais, deveriam incorporar a sabedoria dos sistemas de produção tradicionais, que, ao combinarem o melhor da ciência ecológica com o conhecimento tradicional dos agricultores, encorajam práticas que reduzem o uso de insumos caros, ampliam a produção e a renda dos trabalhadores. E a produção para atender as necessidades locais deve ter prioridade em relação às culturas de produtos exportáveis.

Há muito mais a fazer. Os países e regiões que enfrentam fome precisam de maior margem de manobra para proteger a produção local de alimentos, prevenir o dumping e estabilizar o abstgacimento. Parte desta margem para definir políticas é hoje minada pelas regras da Organização Mundial de Comércio.

Os estoques de alimentos precisam ser vistos de novo como ferramentas essenciais, tanto para enfrentar emergências quanto para estabilizar os preços e o abastecimento, para os agricultores e os consumidores. A concentração fundiária precisa ser interrompida. Tornou-se ainda mais importante apoiar a reforma agrária, que redistribuiu terra arável para os pequenos produtores que desejam produzir alimentos.

Os governos precisam implementar regras rigorosas para reduzir as operações financeiras especulativas com alimentos. Nos Estados Unidos, a reforma financeira conhecida como Dodd-Frank foi um bom começo, mas os lobistas de Wall Street estão agindo agressivamente para enfraquecê-la, em sua tramitação pelo Congresso.

A desestabilização da oferta de alimentos ocorrida na última década pode ser revertida. Mas isso só ocorrerá se aprendermos com o passado e apoiarmos medidas inovadoras para ampliar a estabilidade e a segurança dos agricultores, mercados e sistemas alimentares.

(*) Jim Harkness, professor de Sociologia do Desenvolvimento, é presidente do Instituto para Política Agrícola e de Comércio (IATP, na sigla em inglês), um centro de estudos sediado nos EUA, e voltado para o estudo de alternativas às políticas neoliberais.

Tradução: Antonio Martins (Outras Palavras)


(transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)



                                   <><><><><><><><><><><><><><><>




Desigualdade ainda atinge mulheres na agricultura




Alan Bojanic e Gustavo Anríquez - Tierramérica


  
No centenário do Dia Internacional da Mulher, a FAO apresenta um diagnóstico surpreendente sobre a situação das mulheres no campo, através de um exame global dos agricultores e agricultoras do planeta. Os lares liderados por uma mulher não são sempre mais pobres do que aqueles dirigidos por um homem. Mas o informe anual “O estado mundial da agricultura e da alimentação 2010-2011” demonstra que as agricultoras estão em uma posição desfavorecida no uso e acesso a ativos como a terra, o gado, maquinaria, insumos como fertilizantes, pesticidas e sementes melhoradas, e a serviços como o crédito agrícola e a extensão de conhecimentos técnicos e capacitação.

O novo e surpreendente nesta avaliação é que, com distinta magnitude, esta assimetria se observa em todas as regiões do planeta e se repete em distintos universos nacionais, políticos e religiosos. Se a esta desigualdade agregamos que diversos estudos de campo demonstraram que as mulheres não são intrinsecamente menos produtivas que os produtores masculinos, podemos concluir que esta distribuição de bens e recursos tem um custo em termos de produção.

O informe da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) estima que, grosso modo, uma distribuição mais equitativa de ativos, insumos e serviços agrícolas poderia fazer crescer a produção mundial de alimentos entre 2,5% e 4%. Mais ainda, uma expansão da produção agrícola dessa magnitude poderia resgatar da desnutrição entre 100 e 150 milhões de pessoas, dos quase 1 bilhão de desnutridos que a FAO estima sobreviverem hoje no mundo.

Na América Latina e no Caribe, o tema da mulher no campo tem estado quase sempre ausente das discussões de política e de gênero. Apesar disso, nas últimas décadas ocorreram profundas mudanças econômicas e sociais de consequências duradouras. Como nas cidades, mais e mais mulheres deixaram trabalhos domésticos não remunerados, incluindo a agricultura familiar, para ingressar no mercado de trabalho nos campos e em indústrias direta ou indiretamente relacionadas com a agricultura.

Esta profunda reforma socioeconômica não só tem manifestações nos mercados de trabalho, como nos lares rurais, onde a mulher com renda tem uma posição de negociação reforçada para participar na tomada de decisões. Outros indicadores de bem estar familiar, como nutrição e educação também melhoraram. Isso não ocorre só recursos adicionais, mas sim porque, quando as mulheres controlam uma maior parte do orçamento do lar, a proporção do gasto familiar em alimentação, saúde e educação tende a aumentar significativamente.

Estas mudanças são bem vindas, pois melhoram o bem estar das mulheres, de seus filhos e de seus lares e as nações podem usufruir melhor de todos seus recursos humanos: homens e mulheres. No entanto, resta muito por fazer. A proporção das explorações agrícolas controladas por mulheres tem apresentado um notório aumento na região. Mas estas agricultoras, do mesmo modo como ocorre em outras regiões do planeta, têm menos terra e um reduzido acesso a outros ativos, serviços e insumos agrícolas. É interesse de todos eliminar esta desigualdade de oportunidades.

A receita é bastante universal. Em primeiro lugar é preciso eliminar toda forma de discriminação legal. Além das leis, os funcionários que as executam devem ser educados nas diferenças de gênero. Por último, não basta afirmar a não discriminação no papel. É preciso ter consciência das limitações específicas de gênero, por exemplo as limitações de tempo que enfrentam as mulheres por seu duplo papel de trabalhadoras/produtoras e donas de casa, oferecendo e facilitando às agricultoras os serviços públicos, como extensão, e privados, como o crédito.

(*) Alan Bojanic é o encarregado da Representação da FAO na América
Latina e Caribe. Gustavo Anríquez é economista da FAO.


Tradução: Katarina Peixoto


(Transcrito do site http://www.cartamaior.com.br/)