28 novembro 2010

F R A S E S / P E N S A M E N T O S

"Não nos esqueçamos que nada limita mais fortemente a liberdade do cidadão do que a total
ausência de dinheiro." - John Kenneth Galbraith (Economista - 15.10.1908/26.04.2006)


"A vida é curta demais para ser pequena." - Benjamin Disraeli (Político britânico - 21.12.1804/
  19.04.1881)


"As ideias: há que vivê-las." - André Malraux (Escritor francês - 03.11.1901/23.11.1976)

A represália do crime organizado

Nesta coluna e em várias matérias especiais de CartaCapital critiquei a política inicial do governador fluminense, Sérgio Cabral, de war on drugs, com tanques e fuzis a apontar para as favelas, onde moradores ficavam no centro do fogo cruzado e corriam mais risco de ser alvejados do que os integrantes de organizações criminosas.
Como se sabe, 70% dos quase 30 mil mortos na “guerra às drogas” em curso no México eram civis sem ligação com o tráfico de drogas, armas e pessoas. A guerra mexicana, com emprego de 50 mil homens das Forças Armadas, começou em dezembro de 2006, logo no primeiro dia do mandato do presidente Felipe Calderón.
Cabral, à época, parecia empolgado com o presidente Calderón que, com George W. Bush na retaguarda e dinheiro a rodo para o Plano Mérida (uma adaptação do Plano Colômbia para o México), lograva 90% de aprovação dos mexicanos em sua empreitada. A propósito, uma aprovação que legitimava seu mandato presidencial, obtido com odor de fraude nas eleições de 2 de julho de 2006 e em prejuízo de López Obrador. Hoje, Calderón perde a guerra e é humilhado pelos cartéis. Seu porcentual de preferência popular não ultrapassa o obtido no Brasil por Levy Fidelix.
Ao contrário de Calderón, o governador Cabral mudou de postura e evitou o derramamento de sangue inocente. Ele percebeu que existia uma fórmula mais eficiente de retomada do controle social e de territórios. Assim, implantou as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que estão a causar, como era esperado, a migração de facções criminosas para localidades mais remotas, com prejuízos financeiros e poder de mando reduzido pela perda dos controles social e territorial.
A migração maior teria ocorrido para o Complexo do Alemão. Segundo Cabral, “os marginais não conseguem mais abrigo na Tabajaras, Babilônia, Cabritos e Pavão-Pavãozinho”, isto é, nos territórios já reconquistados pelo Estado.
Mas o calcanhar de aquiles das UPPs está na falta de uma política penitenciária nacional adequada. Do interior dos presídios saíram as ordens para a promoção de ataques voltados a difundir o medo na população e a desmoralizar as autoridades estaduais.
No Rio, há dois meses e com cada vez mais violência, são executados arrastões e roubos. Mais ainda, soldados do Comando Vermelho detonam bombas e incendeiam automóveis particulares. Trata-se de uma represália das organizações criminosas especiais, inconformadas com o sucesso das UPPs e o desfalque nos seus lucros. A meta, bem conhecida e nada original, é abrir caminho para negociações, de modo a aliviar a situação prisional de líderes de facções e a recuperar lucros nos pontos de oferta de drogas perdidos.
Em São Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC), uma organização pré-mafiosa que o então governador Geraldo Alckmin imaginava vencida, reagiu quando os seus chefões começaram a girar por presídios e sentir a perda de regalias. Alckmin tinha acabado de deixar o cargo quando dos ataques do PCC e, pela televisão e a cores, pôde assistir ao fracasso retumbante da sua política de segurança pública. Pior, desconfiada das autoridades de segurança, o paulistano preferiu deixar o trabalho e se esconder nas suas casas. A ordem para esses ataques espetaculares partiu dos presídios.
No Rio, como em São Paulo, existem organizações delinquentes especiais que exigem um tratamento disciplinar diferenciado do que está previsto nas atuais legislações. Essas organizações, como o PCC, o Comando Vermelho e as milícias de paramilitares, possuem matriz mafiosa. Isso porque buscam, ao contrário de associações comuns, o controle social e de territórios. E elas estão capacitadas a apavorar e a fazer valer, nos locais dominados, a lei do silêncio.
Muitos presídios estaduais são controlados por organizações criminosas. Em São Paulo, não se consegue implantar um sistema capaz de bloquear celulares. No Rio e em São Paulo, presos, por meio de ligações telefônicas e simulações de sequestros, esvaziam as contas de cidadãos enganados.
Nos presídios de segurança máxima, as visitas são incumbidas de distribuir bilhetes com ordens dos chefes encarcerados. Para contrastar com eficiência a Cosa Nostra siciliana, aprovou-se um aditamento ao artigo 41 do Código Penitenciário. A meta, que teve sucesso, foi isolar os capi presos das suas organizações. Neste mês de novembro, a Polícia Federal logrou apreender dois bilhetes saídos da penitenciária federal de Catanduvas (Paraná) e destinados a membros do Comando Vermelho. Para os agentes da Polícia Federal, existe um plano em elaboração para ataques às UPPs.
Com efeito, espera-se que Cabral não tenha uma recaída pela militarização. As ações voltadas a atacar a economia movimentada pela criminalidade, a secar as fontes de receita e a recuperar a confiança em comunidades continuam sendo mais eficazes. E elas respeitam a população de baixa renda, vítima das pré-máfias.

COMO EM CANUDOS

O temor espalhado pelos traficantes entre a população carioca deu carta-branca à reação do poder público
A sociedade só formula problemas que pode resolver. Às vezes, demora por falta de apoio social e político. Mas, quando é hora, ela resolve de qualquer maneira. Ocorreu em Canudos (1896) e assim pode ocorrer com cerca de duas centenas de traficantes cariocas que, na tarde da quinta-feira 25, transitaram em fuga da favela da Vila Cruzeiro para se refugiar no complexo de favelas do Alemão. Eram integrantes da facção Comando Vermelho reforçada por aliados.
Essa é uma área favelada, na zona norte da cidade, em grande parte da qual o poder público nunca apareceu. Vivia sob um cruel poder paralelo. O poder público só deu as caras, naquele mesmo dia, com a sua face mais temida pela população pobre: a polícia. Mais de 300 homens, apoiados por blindados e um grupo de fuzileiros navais da Marinha Brasileira, cercaram os traficantes, que, fortemente armados, esboçavam reação. Só a rendição evitaria um massacre.
Caso prevaleça essa insensatez, será sequência de um conflito antigo e, também, da resposta rápida do governo do estado às ousadas e violentas ações dos traficantes na capital e em outras áreas do estado. Um grande medo, alimentado no tempo e, no momento, pela transmissão ao vivo dos episódios da quinta-feira, atravessou de alto a baixo a população.
A atuação dos fuzileiros navais deixou o estado, indiscutivelmente, sob intervenção fede-ral pelos parâmetros constitucionais.
Não há explicação razoável para que não seja assinado o decreto interventivo que legalize a ação. A situação exige, a população quer, o governador do estado quer, o presidente da República quer. O que falta? Da forma como está sendo feita a intervenção, quem fica fragilizado é o presidente, sob o risco de crime de responsabilidade. Aí talvez conte com o beneplácito da oposição.
O argumento usado para justificar a presença dos fuzileiros navais é risível. Apenas transporta os policiais militares. Ora, quem está dirigindo os carros de combate e quem dá segurança são os fuzileiros. As Forças Armadas. No caso, a Marinha.
Será que alguém ainda se importa com a legalidade?
Transcrevo informação restrita que circulou, entre os dias 24 e 25, por e-mail, no meio empresarial do Rio de Janeiro:
“… o traficante FB (Fabiano Atanásio da Silva) do Complexo do Alemão (…) fechou acordo para que os traficantes daquela comunidade e do Vidigal se tornassem membros do Comando Vermelho (CV), fortalecendo assim o Comando Vermelho…”.
Segue: “…e, conforme as interceptações e informes de que o CV estaria orquestrando várias ações criminosas e terroristas no próximo fim de semana, solicito a todos que utilizem apenas veículos blindados e, se possível, evitarem sair na noite de sexta-feira e sábado”.
Esse grande medo, que dá frio na espinha dos cariocas, legitima qualquer ação do poder público. Uma perigosa carta-branca para agir. Como ocorreu em Canudos.

Maurício Dias




Mauricio Dias

Maurício Dias é jornalista, editor especial e colunista da edição impressa de CartaCapital. A versão completa de sua coluna é publicada semanalmente na revista. mauriciodias@cartacapital.com.br

Sexto Painel da Conferência do Desenvolvimento

 "O Brasil precisa se proteger e cuidar das contas externas."

   - Maria da Conceição Tavares , professora de Economia





O sexto painel da Conferência do Desenvolvimento, promovida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em Brasília, apresentou um tema abrangente e desafiador: Macroeconomia e Desenvolvimento. Um tema à altura da homenagem feita pelo IPEA aos 80 anos da professora Maria da Conceição Tavares, formadora de mais de uma geração de economistas brasileiros. Bem humorada, ela brincou com a relação entre a homenagem e o tema escolhido para a conferência:

“Esta homenagem está gloriosa, porque o clima é Woodstock, não é. Vamos ver se sou capaz de tocar guitarra elétrica. O tema proposto para mim, só tocando guitarra elétrica. Macroeconomia e desenvolvimento não são temas pensados conjuntamente, geralmente”.

O propósito da política macroeconômica, lembrou, é evitar os desequilíbrios. E agora mais do que nunca em função da crise econômica mundial. Maria da Conceição Tavares fez um rápido resumo do quadro atual.

“Neste ano que passou foram os países ditos emergentes que cresceram. O primeiro mundo não cresceu nada. A crise de 2008, agora em 2010, veio repicada com a crise na Europa. A política macroeconômica na Europa deve estar fazendo Keynes se remover na tumba. Um desemprego cavalar e eles vêm com ajuste fiscal. Além de tudo há uma pletora de dólares. O Banco Central europeu está sustentando os países mais pobres da UE, mas o problema não é de liquidez, mas de insolvência”.

Frente a essa situação, alertou, o Brasil precisa ficar atento:

“Nossa taxa de juros é historicamente cavalar. Não é uma maluquice do presidente do Banco Central. Desde a década de 70 que a taxa de juros primária é muito alta. E as taxas ativas dos bancos também são muito altas. Então estamos numa situação braba: que tipo de investimentos essa taxa de juros elevada atrai? O investimento direto não tem nenhum problema, desde que sejam estertores importantes do desenvolvimento. Mas nossas taxas de juros fazem com que sejamos atrativos para o capital especulativo. Resultado: estamos com uma grande sobrevalorização do real”.

Diante deste quadro, acrescentou, a economia brasileira precisa se proteger, não apenas dos Estados Unidos, mas também da China. Neste ponto, ela fez algumas advertências importantes ao governo Lula e, principalmente, ao futuro governo Dilma:

“Temos aumentado desvairadamente as importações. Está um festival de importação. Nós estamos diminuindo o conteúdo de valor agregado de nossa indústria, até com coeficiente em importação em aço, no qual temos competitividade internacional, temos 15% da importação em aço. Há sobra de aço na Europa, que está fazendo dumping para cima da gente e nós deixamos. Eu diria que a primeira preocupação agora é, sem dúvida nenhuma, com o setor externo. Se ele continuar assim vai haver degradação da indústria, déficit crescente da balança de pagamentos e uma fragilidade externa que na crise de 2008 nós não tivemos. Foi a primeira vez que o Brasil passou por uma crise sem se arrebentar. Ao contrário, somos credores líquidos internacionais. Passar dessa situação, outra vez, para devedor líquido é péssimo. Só não passamos a tanto porque o governo é credor líquido. Mas as grandes empresas, o capital privado já está devendo. O que significa que qualquer repique da crise internacional pode nos trazer problemas”.

O governo tem de estar atento, enfatizou a economista, para não agravar o déficit fiscal. “A inflação é de custos, não de demanda. Então, não é o caso elevar taxa de juros, para não agravar o déficit fiscal, aumentando o serviço da dívida. Isso tira a possibilidade de desenvolvimento. Como se faz desenvolvimento com uma taxa de juros dessas?” - indagou.

A economista garantiu que não discutiu pessoalmente esses temas com ninguém do governo. E reafirmou a defesa da adoção do controle de capitais para proteger o país de um ataque especulativo.

“Já disse publicamente e repito, penso que numa situação como essa tem de ter controle de capitais. Todos os controles quantitativos. Aumenta o compulsório. Controla a taxa de crédito. Mas não com essa taxa de juros. Mesmo que o FMI tenha dito que controle de capitais pode ser recomendado, na atual conjuntura, o “mercado” e “os do mercado” aqui no Brasil não suportam ouvir isso. Mas temos no Banco Central gente discreta, não vedetes. Eu acho que a mudança do presidente do BC se prende a isso”.

O Brasil, recomendou ainda a economista, precisa fazer uma política fina e ir diminuindo lentamente a taxa de juros e a taxa de câmbio. “Devagar com o andor que o santo é de barro. Tem de andar devagar”, enfatizou.

E criticou aqueles que defendem o corte de gastos para promover um duro ajuste fiscal.

“O eixo deste governo é a política econômica com eixo social. Esse é o nosso custeio. Cortar para investir, para agradar a imprensa? Eu acho que não há sentido nenhum. No desenvolvimento econômico, o eixo social está correto. Mas se não cuidarmos da parte cambial, não conseguiremos fazer política industrial e tecnológica e, no longo prazo, não há desenvolvimento econômico regredindo nessas coisas”.

Maria da Conceição Tavares manifestou confiança na capacidade da presidente eleita Dilma Rousseff enfrentar esses problemas:

“Graças a deus a nossa presidente é uma mulher de coragem, de discernimento e economista competente. Este primeiro ano dela é complicado, em todos os sentidos. Enfim, que deus a proteja. Não adianta pedir que deus proteja individualmente nestas questões. Nestas questões é melhor proteger o coletivo”.

“Tenho muita fé na presidente, mas uma coisa é saber, outra é operar – não sei se a proporção de forças dos industriais pesam tanto quanto a dos banqueiros. Para sair dessa encrenca, agora mais do que nunca, não dá para deixar para o mercado ou a divina providência. A solução é humana e de todo o governo. Até o fim dessa década vamos erradicar a miséria, para que isso ocorra não podemos fazer coisas que abortem essas intenções.”


O Brasil tem um caminho duro pela frente, concluiu, e “deve agir com a autonomia de um país independente e soberano”. “Precisamos fazer uma defesa soberana da política industrial, cambial e de balanço de pagamentos. Não quero que me impinjam política macroeconômica que me atrapalhe o desenvolvimento. E que não se espere que o G7, G20, o G 400 resolvam alguma coisa, porque a ordem mundial está uma bagunça e o mundo hoje é multipolar. Acho melhor cumprir o nosso papel”.


Katarina Peixoto


(Transcrito do site www.cartamaior.com )

Cooperação e apoio da ONU podem melhorar jornalismo investigativo

Uma cobertura que muitas vezes depende da iniciativa individual do repórter, que encontra pouco apoio e investimento da maior parte dos veículos de comunicação, mas que provoca mudanças significativas quando joga luz sobre temas como corrupção, falhas na gestão pública, violência e criminalidade. Esta é a realidade do jornalismo investigativo em países do hemisfério sul, onde repórteres enfrentam uma série de ameaças e riscos no dia-a-dia de seu trabalho de investigação, além de barreiras econômicas, políticas e de independência jornalística para o exercício da profissão.

Para debater as medidas práticas e intervenções políticas necessárias para reforçar a contribuição do jornalismo investigativo para o desenvolvimento dos povos, o Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Embaixada da Suíça no Brasil, a Procuradoria-Geral da República e a Fundação Konrad Adenauer realizaram um seminário internacional esta semana em São Paulo.

Uma das principais conclusões do debate foi a necessidade de o jornalismo investigativo ultrapassar as fronteiras dos países e ser, de fato, desenvolvido de forma globalizada. Questões como lavagem de dinheiro, pedofilia internacional, tráfico de drogas e de pessoas foram apontadas como algumas das que requerem uma cooperação internacional entre jornalistas.

“Hoje a circulação de notícias está concentrada nas mãos de três agências. Numa época em que se fala de direitos universais, organizações como a Unesco, o PNUD, a ONU deveriam repensar a questão do fluxo de informações que circula pelo planeta a partir de uma perspectiva de cidadania”, afirmou o professor Luiz Martins da Silva, da Universidade de Brasília. “Por que as agências internacionais tem que ser apenas comerciais? Esses organismos têm condições de fazer um agendamento de questões centrais de forma supranacional, sob uma perspectiva do diálogo Sul-Sul” acredita.

O apoio de organismos multilaterais na promoção do jornalismo investigativo parece central para superar barreiras internas políticas e econômicas. O caso da jornalista Sanjuana Martinez, do jornal mexicano “La Jornada”, é emblemático neste sentido. Autora de três livros sobre pedofilia na igreja católica mexicana, ela sofreu toda sorte de ameaças, perdeu o emprego e ficou anos sem conseguir publicar a sua história por conta das pressões locais da igreja.

“Quando fiz a primeira série de entrevistas, não tive problemas, mas depois, quando tentei dar continuidade à história, não consegui mais nada. Este é o risco de cobrir a pedofilia clerical num país praticamente todo católico. Somente agora, com vários casos no Vaticano, disseram que eu tinha razão”, conta.

Em um dos livros, que quase foi censurado, Sanjuana conta a história de um cardeal que estuprou mais de 100 crianças no México e nos Estados Unidos. E quando foi acusado no México, mudou de país. Para ela, a investigação jornalística seria fundamental de ter continuidade no país vizinho. “A pedofilia é um crime contra a humanidade, porque acontece em todo o mundo. Mas a impunidade é freqüente. Depois de séculos de abusos de crianças, os padres nunca foram levados à Justiça e mudam de países para fugir da responsabilização”, relata.

As limitações econômicas também impõem conseqüências importantes para a eficácia do jornalismo investigativo. João Paulo Charleaux, editor assistente do caderno de internacional do jornal O Estado de S. Paulo lembra, por exemplo, que por questões financeiras e logísticas a cobertura da mídia brasileira sobre o Haiti é baseada numa visão militar. “Temos um olhar distorcido de como as coisas acontecem lá. Os jornais são incapazes de cobrir o Haiti com as próprias pernas. A maioria que foi ao Haiti foi de carona com o Exército", explica.

A repórter indiana Ritu Sarin, do “The Indian Express”, conta que tem recursos para viajar dentro do país e ir até a região da Kashemira, por exemplo, onde milhares de pessoas já morreram no conflito separatista. Mas não passa de lá. Muitos veículos chegaram além, mas comprometeram a independência de suas investigações. “Jornalistas estabeleceram conexões com os grupos militares e pró-independência, ultrapassando a fronteira. É preciso debater até onde os jornalistas devem ir”, analisa, numa avaliação sobre a geografia e, sobretudo, sobre a ética.

“Mostramos sempre a corrupção pelo poder público, mas quem é o corruptor? Essa pergunta fica sempre sem resposta, porque mexe com setores econômicos poderosos, muitas vezes anunciantes do jornal. A independência financeira é algo para se pensar porque o jornalismo investigativo é caro, demorado e muitas vezes não gera algo para ser publicado”, lembra Maurício Hashizume, da organização Repórter Brasil, que cobre a temática do trabalho escravo no país.

Tais obstáculos, acreditam os jornalistas, poderiam ser mais facilmente superados com parcerias internacionais estratégicas entre os veículos e também com o apoio financeiro e logístico dos organismos multilaterais. “O intercâmbio Sul-Sul tem que ir além dos mercados. Temos um fluxo intenso dos negócios e pouco fluxo das experiências da sociedade civil e da imprensa. É preciso acompanhar o ritmo dessas relações”, acrescenta Hashizume.

Capital x informação
O sistema midiático, no entanto, ainda teria outros problemas de fundo a solucionar, como a busca “insaciável” pelo lucro e a geração de capital.
“Estamos sob tanta pressão para “alimentar as feras” 24 horas por dia que perdemos as ferramentas necessárias para refletir sobre o que reportamos e as conseqüências disso. A pressão é tanta que às vezes não pensamos na democracia. Quando Bush decidiu invadir o Iraque, dizendo que havia armas de destruição em massa no país, a mídia comprou essa idéia e legitimou a invasão”, lembrou o marroquino Abderrahim Foukara, chefe do canal árabe Al Jazeera nos Estados Unidos. “Vemos mais geração de dinheiro do que produção de informação para o cidadão. No hemisfério sul não estamos melhorando com esse tipo de imprensa”, critica.

Seguindo essa tendência, no Brasil o jornalismo investigativo teria virado um jornalismo de dossiês pagas para atender a interesses políticos e comerciais. A avaliação é de Luis Nassif, da Agência Dinheiro Vivo, para quem a denúncia foi banalizada a ponto de se tornar freqüente o que ele chama de “escandalização do nada”.

“O jornalismo de Brasília se alimenta exclusivamente de lobistas, é um jornalismo de chantagem, enviesado, mentiroso e utilitarista. A velha mídia pega um escândalo qualquer, consistente ou fabricado, e demoniza as pessoas para se legitimar. Os personagens são apresentados como vampiros que tem que ser mortos pela mídia. Mas de repente a mídia virou o vampiro”, acredita Nassif.


Bia Barbosa



(Transcrito do site http://www.cartamaior.com/ )

PUBLICIDADE OFICIAL: ONDE O CALO DÓI (*)

No auge da disputa eleitoral de 2010, quando o governo e a grande mídia faziam acusações mútuas, o presidente Lula, em entrevista concedida ao portal Terra, travou o seguinte diálogo com seus entrevistadores:

Terra – (...) O senhor tem feito críticas duras, dizendo que a imprensa, a mídia tem um candidato e não tem coragem de assumir e, ao mesmo tempo, o contraditório diz que existiria um Projeto Político (...) para "enquadrar meios de comunicação". (...) O que mais incomoda o senhor: é a cobertura (ser) crítica de um lado e não existir a investigação sobre os demais candidatos? Seria isso? (...) O senhor está dizendo que ela [a imprensa] é desequilibrada? Só está cobrindo um lado e não está cobrindo...

Presidente Lula – (...) Eu acho que a imprensa está cumprindo um papel importante quando ela denuncia. Por quê? Ou você sabe por que alguém denunciou, ou você sabe por que alguém cobriu ou você sabe por que saiu na imprensa. Quando sai alguma coisa na imprensa você vai atrás. (...) Vou te dar um exemplo, sem citar jornal. Na campanha passada, os caras diziam, "porque o avião do Lula...", porque o Aerolula... Passando para a sociedade, disseminando umas bobagens, vai despolitizando a sociedade. Agora, estão dizendo que a TV pública é a TV do Lula. Nunca disseram que a TV pública de São Paulo é do governador de São Paulo e as outras são dos outros governadores. Agora, uma TV para um presidente que está terminando o mandato daqui a três meses, é a TV Lula. Ou seja, esse carregamento de... composto de... de muita... de muita, eu diria, de muito preconceito ou de muita até, eu diria até, às vezes, ódio, demonstra o que? (...) [a imprensa] se comporta como se o pessoal da Senzala tivesse chegando à Casa Grande. (...) Agora, a verdade é que nós temos nove ou dez famílias que dominam toda a comunicação desse País. A verdade é essa. A verdade é que você viaja pelo Brasil e você tem duas ou três famílias que são donas dos canais de televisão. E os mesmos são donos das rádios e os mesmos são donos dos jornais...

Terra – Nos municípios, isto tem uma capilaridade: o chefe político tal...

Presidente Lula – Então, muita gente não gostou quando, no governo, nós pegamos o dinheiro da publicidade e dividimos para o Brasil inteiro. Hoje, o jornalzinho do interior recebe uma parcela da publicidade do governo. Nós fazemos propaganda regional e a televisão regional recebe um pouco de dinheiro do governo. Quando nós distribuímos o dinheiro da cultura, por que só o eixo Rio – São Paulo e não Roraima, e não o Amazonas, e não o Pernambuco, e não o Ceará receber um pouquinho? Então, os homens da Casa Grande não gostam que isso aconteça. 

No trecho da entrevista acima reproduzido, o presidente Lula atribui o comportamento desequilibrado da mídia brasileira (1) ao fato de que "nove ou dez famílias" controlam a comunicação no país; (2) ao preconceito em relação a um operário ter chegado à presidência da República; e (3) à política de regionalização das verbas oficiais de publicidade iniciada em seu governo.

Que a grande mídia brasileira é olipolizada, fundada na propriedade cruzada dos meios e controlada por algumas poucas famílias, em grande parte vinculadas às velhas oligarquias políticas regionais e locais, é fato comprovado e sabido.

Que existe preconceito das "elites" brasileiras em relação à ascensão política de um operário e migrante nordestino que conquistou, em processo democrático e pelo voto, por duas vezes, a presidência da Republica, é tema que tem merecido a atenção de analistas e cientistas políticos pátrios faz tempo.

Estou, todavia, interessado na regionalização das verbas oficias de publicidade.

Mudança radical

De fato, uma importante reorientação na alocação dos recursos publicitários oficiais teve início em 2003: sem variação significativa no total da verba aplicada, o número de municípios cobertos pulou de 182 em 2003 para 2.184, em 2009, e o número de meios de comunicação programados subiu de 499 para 7.047, no mesmo período (ver quadros abaixo).

REGIONALIZACAO DE VERBAS PUBLICITARIAS OFICIAIS POR DIFERENTES VEICULOS

REGIONALIZACAO DE VERBAS PUBLICITARIAS OFICIAIS POR MUNICIPIOS E POR TOTAL DE VEICULOS

Essa política de regionalização atende aos melhores princípios da "máxima dispersão da propriedade" [ver, neste Observatório, "Concessões de Rádio & TV: Pela máxima dispersão da propriedade"], promove a competição no mercado de comunicações, estimula o mercado de trabalho do setor e, acima de tudo, colabora para o aumento da pluralidade e da diversidade de vozes na democracia brasileira.

Há ainda um longo caminho a ser percorrido para que o Estado cumpra o seu papel e contribuía efetivamente para o cumprimento do "princípio da complementaridade", isto é, do equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal de comunicações, como reza o artigo 223 da Constituição de 1988.

Para isso, a reorientação da distribuição dos recursos da publicidade oficial precisa contribuir, de fato, para o surgimento e a consolidação dos sistemas público e comunitário de mídia no país.

De qualquer maneira, ao final de dois mandatos, a mudança de orientação na distribuição das verbas oficiais de publicidade ficará na história como talvez a principal contribuição do governo Lula no sentido da democratização das comunicações.

Dedo na ferida

Nunca é demais lembrar que o Estado tem sido – direta ou indiretamente – uma das principais e, em muitos casos, a principal fonte de financiamento da mídia privada comercial, seja ela impressa ou eletrônica. Basta verificar quais são os maiores anunciantes dos jornais, das revistas semanais e dos telejornais das redes de televisão privadas do país.

Não é sem razão que colunista – e não os proprietários – da Folha de S.Paulo já acusou o governo Lula de estar promovendo "Bolsa-Mídia" para uma "mídia de cabresto" e de "alimentar uma rede chapa-branca na base de verbas publicitárias" [cf. Fernando de Barros e Silva, "O Bolsa-Mídia de Lula" in Folha de S.Paulo, 01/06/2009].

Talvez a reorientação da distribuição dos recursos da publicidade oficial explique muito do comportamento da grande mídia nos últimos anos. Afinal, o governo Lula colocou o dedo na ferida, ou melhor, a grande mídia sabe exatamente onde o calo dói.


Venicio Lima


*****************
Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.



(*) Originalmente publicado no Observatório da Imprensa

27 novembro 2010

A OPINIÃO DE MINO CARTA

Confronto inevitável





E quando Meirelles disse “ou ele ou eu” teria selado definitivamente o seu destino
Um velho amigo comentou dias atrás: “Ele se meteu em uma enrascada sem saída quando disse: ou ele, ou eu, como Golbery”. Bom assunto para um almoço pacato. Comparava o chefe da Casa Civil de três ditadores, Castello Branco, Geisel e Figueiredo, com o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que se prepara a deixar seu posto para Alexandre Tombini, diligente funcionário do próprio banco do qual é o atual diretor de Normas.
O impasse para Golbery deu-se logo após a desastrada operação que resultou na tragicomédia do Riocentro, a 1º de maio de 1981. A bomba explodiu no colo do terrorista de Estado que a carregava de carro, destinava-se a provocar uma hecatombe em meio a um espetáculo musical que reunia 20 mil pessoas. Felizmente, uma apenas foi para o Além, quem sabe o Inferno, enquanto o que dirigia o veículo ficou gravemente ferido. O inspetor Clouseau não se sairia melhor.
O humor negro do episódio não haveria de abrandar a profunda irritação que tomou conta do chefe da Casa Civil de João Baptista Figueiredo. Logo depois de ser informado a respeito do evento, caminhou até o gabinete presidencial e exigiu a demissão imediata do comandante do I Exército, sediado na Vila Militar do Rio, o general Gentil Marcondes, primeiro responsável por uma missão de inauditas dimensões criminosas, da qual ele teria de estar necessariamente a par.
Na visão de Golbery, era nítido o propósito da operação fracassada, inserida em um programa de atentados em escalada, que já haviam visado bancas de jornais no Rio e em São Paulo, a sede da OAB nacional e as oficinas da Tribuna da Imprensa. Pretendia-se precipitar um clima de tensão extrema, de sorte a implodir o plano da chamada abertura e a justificar a permanência dos militares no poder. Quer dizer, depois de Figueiredo, previsto como o derradeiro ditador, viria outro da casta fardada, e ele já tinha nome, o general Octávio Medeiros, chefe do SNI e protetor do general Gentil.
Uma guerra surda eclodiu dentro do Palácio do Planalto, a cheirar cada vez mais a quartel, o comandante do I Exército ficou onde se encontrava, o inquérito sobre a tragicomédia debandou para a farsa, e foi então que Golbery impôs: ou Medeiros, ou eu. Figueiredo optou por aquele. Assim como Dilma Rousseff escolheu Mantega e, portanto, Tombini.
É o pensamento do velho amigo, também sábio. Está claro que enredo e protagonistas são bem diversos daqueles, mas a chave da compreensão da saída de Meirelles aí estaria. De todo modo, o confronto era inevitável, em um caso e noutro. Há na imprensa quem se esforce para provar que Mantega foi escolha de Lula, bem como a dos demais da equipe econômica. É do conhecimento até do mundo mineral, contudo, que, desde a composição do primeiro gabinete de Lula presidente, Meirelles foi indicado por ele, e depois, anos a fio, por ele mantido a despeito das críticas crescentes, partidas de conselheiros importantes e de largos setores do empresariado, às políticas rígidas do BC.
A autonomia do presidente do banco é reivindicação teoricamente aceitável. Assim se dá em outros países reconhecidamente democráticos, onde se enxerga o presidente do Banco Central como alto funcionário a serviço do Estado e não deste ou daquele governo, estável na função independentemente dos resultados eleitorais, personagem imanente, digamos assim, em lugar de contingente. No Brasil atual, a ideia de Meirelles é impraticável.
De fato, ou Mantega ou Meirelles. CartaCapital não se surpreendeu com a escolha final da presidente eleita, e aqui manifesta seu apreço pela decisão. E sabe que Tombini chega com o aval da presidente e do seu futuro ministro da Fazenda. No mais, é perfeitamente possível que meu velho e sábio amigo esteja certo: na hora azada, o aut-aut de Meirelles foi a gota decisiva. O mesmo amigo murmura: “É um bancário que deu certo”.

20 novembro 2010

A cada um sua democracia: Folha de S. Paulo e o arquivo de Dilma

Não é curioso, amigo leitor, que ao terminar a primeira década do século XXI, a velha imprensa brasileira (aqui no sentido de antiga mesmo e carcomida) insista em não querer aceitar a vitória da presidente Dilma Roussef? Ou melhor: insista em “investigar” o passado da candidata eleita, substituindo a polícia da ditadura civil/militar que infelicitou o país nos anos 60?

Porque não é outra a atitude do jornal Folha de São Paulo ao se regozijar com a abertura dos arquivos de posse do Superior Tribunal Militar, pomposamente recebida como uma “vitória da sociedade brasileira”, para bisbilhotar sobre o passado de uma ex-presa política.

Vitória da sociedade brasileira? A quem quer enganar mais uma vez a FSP? O que quer o jornal do Sr. Otávio Frias Filho? Dependurar a presidente Dilma Roussef no pau de arara novamente em nome da sua democracia? Já não basta o sofrimento do passado? Quer o jornal, na sua arrogância e ignomínia, mostrar aos milhões de brasileiros que votaram no futuro e repudiaram o passado, que a candidata que escolheram não era a melhor opção para o Brasil pós-Lula?

Querem limpar a barra com a ficha falsa que publicaram e nunca desmentiram? Bobagem, não deveriam perder tempo com isso. À exceção daqueles que ainda não perceberam que tipo de democracia a Folha defende, o jornal perde a cada dia que passa a credibilidade daqueles que ainda a lêem. Seria bom que os seus anunciantes começassem a pensar seriamente nisto.

O Brasil da Folha de São Paulo (e de outros órgãos de imprensa muito bem identificados) insiste na tática da desinformação, da meia verdade ou da meia mentira, o que vem dar no mesmo, usando aquilo a que chamam de liberdade de imprensa, da sua liberdade de imprensa, bem entendido, como uma espécie de chantagem moral (aqui sim) sobre toda a sociedade brasileira. Uma chantagem que ainda conta com o beneplácito de muitos de seus incautos leitores ou do apoio daqueles que insistem em querer dividir o país através do preconceito, do ódio, da intolerância.

Não foi por acaso que o jornal defendeu até onde pôde a candidatura de José Serra, político supostamente de passado esquerdista e a quem coube destampar o caldeirão do fascismo adormecido em mentes e corações que não suportam ainda a possibilidade de milhões de brasileiros ascenderem socialmente, ainda que essa ascensão seja modesta, não só àquilo que merece qualquer ser humano, mas em relação ao padrão de vida que levam tais intolerantes e antidemocratas.

A Folha insiste em caminhar na contramão da História. Na mesma semana em que as Forças Armadas bolivianas se declaram socialistas, nacionalistas e antiimperialistas, num país que carregou durante anos e anos o anátema de ter o maior índice de golpes de estado na América Latina, o jornal paulista alegra-se em conseguir abrir parcialmente alguns arquivos da ditadura e com isso, julga, poder mostrar o “passado negro” da nova presidente da República.

Triste jornalismo esse, feito de frustração, raiva, incompetência, tentativa de manipulação, desrespeito aos próprios leitores e – sobretudo – desprezo aos valores democráticos que, cinicamente, transfere aos seus adversários.

Não sei, e penso que poucos saberão, o que fará o jornal com aquilo que encontrar nos tais arquivos. Se ainda restar um pouco de dignidade ao seu conselho editorial, honrando a memória de alguns grandes e sérios jornalistas que por lá passaram, como Cláudio Abramo, por exemplo, deixarão de lado prováveis ressentimentos pessoais com o presidente Lula e com a presidente eleita e talvez reconheçam que um processo montado com “verdades’ e confissões sob tortura não é necessariamente uma peça íntegra e confiável de testemunho histórico. Afirmo-o com a convicção de quem passou pela mesma situação e, após dois anos de prisão, foi absolvido pela Justiça Militar.

Caso contrário, o jornal mostrará em definitivo qual é a democracia que defende e de qual liberdade de imprensa se utiliza, humilhando mais uma vez toda uma geração que lutou por liberdade, respeito e igualdade entre seus semelhantes.

Com isso, mostrará também às novas gerações que o uso de seus veículos para conduzir presos naqueles anos de chumbo foi mais do que uma ajuda interesseira e circunstancial, concedendo-lhes nós o benefício da dúvida.

Será essa “a grande vitória da sociedade brasileira”? Ou será aquela configurada nas urnas no último 31 de outubro?


Izaías Almada (*)


(*) Izaías Almada é escritor, dramaturgo, autor – entre outros – do livro “Teatro de Arena: uma estética de resistência” (Boitempo) e “Venezuela povo e Forças Armadas” (Caros Amigos).


(Extraído do site www.cartamaior.com)

O SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO É REGRESSIVO

Uma das funções fundamentais do Estado é a tributação e a redistribuição desses recursos. Ao longo de muitas décadas, considerando que o mercado concentra renda, o Estado teve a função de compensar esses efeitos do mercado, sobretudo através de suas políticas sociais.

Nos tempos neoliberais, a criminalização do Estado regulador e social fez com que as funções de apoio ao processo de acumulação de capital fossem preponderante, enquanto o Estado mínimo se retraía das suas responsabilidades sociais. A estrutura tributária passou a refletir isso muito claramente, com o Estado redistribuindo regressivamente os ingressos, acentuando a concentração de renda, ao arrecadar dos setores produtivos – entre eles, os assalariados – e redistribuindo para o capital financeiro, pelo pagamento das dívidas públicas.

O sistema tributário brasileiro é injusto – conforme se vê da exposição do professor da Universidade Federal da Bahia, Naomar de Almeida Filho, em reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do governo. Ele alinha vários argumentos, com dados, que comprovam sua tese.

Em primeiro lugar, se trata de um sistema tributário regressivo e com carga mal distribuída. As pessoas que ganham até 2 salários mínimos pagam 48,8% da sua renda em impostos, enquanto os que ganham acima de 30 salários mínimos pagam 26,3%. Os 10% mais pobres pagam 32,8% da sua renda em impostos, enquanto os 10% mais ricos pagam apenas 22,7%.

Ao contrário do que se costuma propalar na imprensa, o carga tributária geral não é alta, em comparação com os países da OCDE, por exemplo. Aqui, 34,7% do PIB, na OCDE, 35,8%. A arrecadação sobre bens e serviços (impostos indiretos, como o IPI, o ICMS) contribui com 15,5% do PIB ou 44,6% da carga tributária total. Na média da OCDE, ela corresponde a 10,9% do PIB ou 30,4% da carga tributaria geral.

Enquanto que os impostos diretos (como o IR – mais justos, em que quem ganha mais paga mais) -, no Brasil somam 8,5% do PIB ou 24,4% da carga tributária total (pouco mais da metade dos impostos indiretos). Na correspondem a quase o dobro: 15,1% do PIB ou 42,3% da carga total.

Só a arrecadação do IR, no Brasil, que taxa diretamente a renda de cada um, corresponde 8,9% do PIB ou 25% da carga tributária total. A alíquota máxima do IR no Brasil é de 27,%%, enquanto na OCDE é de 42,5%.

Os rendimentos do capital são menos taxados (0,8% do PIB ou 13% da arrecadação total) do que os do trabalho (1,7% do PIB ou 26,9% do total arrecadado).

O imposto sobre herança, que existe apenas em alguns poucos estados, cobra 4% em São Paulo, enquanto na OCDE se cobra, na média dos países, mais de 10 vezes mais: 41%.

Nos próximos artigos, igualmente baseados na exposição do professor Naomar, veremos outros aspectos do mesmo tema: um retorno social baixo em relação à carta tributária, o desincentivo ao investimento, a inadequação do pacto federativo e a ausência do que ele chama de cidadania tributária. 


Emir Sader


(Transcrito do Blog do Emir) 

MÍDIA, GOLPES E TORTURA

Talvez pudéssemos inverter um pouco a ordem das coisas: que tal, ao invés de divulgar o relato de processos do STM sobre pessoas covardemente torturadas, como o faz agora o secretariado da mídia golpista brasileira, perguntássemos sobre qual o papel dessa mesma mídia na implantação da ditadura militar?

Não seria algo elucidativo, educativo para as novas gerações? Que tal compreender a verdadeira natureza de nossa mídia hegemônica para, então, entender por que, nesse momento, usando processos inteiramente submetidos à ordem castrense, ao terror ditatorial, tenta atingir a presidente da República, recentemente eleita, numa espécie de vingança pela derrota que sofreu? Perguntar por que ela não se conforma com essa nova derrota, a terceira derrota da mídia nas últimas eleições, derrotada pela opinião pública brasileira. Com que direito quer um terceiro turno, ilegítimo, revelador apenas de seus ressentimentos?

Eu insisto: no Brasil a Casa Grande não descansa. E a principal voz da Casa Grande no Brasil é a mídia hegemônica, aquele grupo de poucas famílias que se pretende o intérprete da realidade brasileira, apesar de há muito ter deixado de sê-lo. Não vou retroceder muito no tempo. Não vou esmiuçar o papel destacado de nossa mídia na tentativa de golpe contra o presidente Getúlio Vargas. O quartel-general do golpe era permanentemente orientado pela mídia. A mídia hegemônica de então e o golpe já quase consumado foram derrotados pelo suicídio do presidente.
O que pretendo mesmo é refrescar a memória ou informar um pouco que seja sobre o papel de nossa mídia no golpe de 1964. Não se trata apenas de ela ter elaborado todo o discurso que deu sustentação ao golpe contra o presidente Jango Goulart. Não se trata disso somente.

Trata-se do fato, por demais evidente, e há vasto repertório bibliográfico a respeito, de que a mídia participou diretamente das articulações golpistas. Ela derrubou Goulart lado a lado com os militares golpistas. Reuniu-se com eles para preparar o golpe. Não tem como se defender disso. É algo que hoje já pertence à história.

Com isso se quer dizer, e creio que é preciso insistir nisso, que a mídia hegemônica brasileira foi um ator fundamental na construção de uma ditadura sanguinária, terrorista no Brasil, a mesma que vai torturar covardemente homens, mulheres, crianças, que vai desaparecer com pessoas depois de desfigurá-las, provocar suicídios, que será capaz de todas as crueldades, perversidades para garantir a sua continuidade no poder por 21 anos.

A Rede Globo, criada lá pelos finais de 1969, não foi uma simples iniciativa empresarial. Foi um empreendimento político. Com a Rede Globo pretendeu-se unificar o discurso da ditadura, justificar tudo ela pretendesse, inclusive os assassinatos, o terrorismo que ela praticava cotidianamente. Inúmeras vezes assistíamos, no Jornal Nacional, notícias dando conta do atropelamento de companheiros, da morte de um militante por outro, versões montadas pela repressão para justificar a morte nas masmorras da ditadura. A Rede Globo encarnava e ecoava a voz do terror, foi criada para tanto.

E o grupo Globo é apenas parte de toda uma estrutura midiática que deu sustentação à ditadura, embora talvez, então, a parte mais importante. Não é difícil lembrar do terrível, do terrorista general Garrastazu Médici, ditador, que dizia que bastava assistir ao Jornal Nacional para perceber como tudo caminhava às mil maravilhas no Brasil. O Jornal Nacional era o diário oficial da ditadura.

Por isso, não há como nos surpreendermos com a tentativa, canhestra, de tentar desqualificar a presidente Dilma, pinçando aspectos do vasto processo buscado nos arquivos do STM, como a matéria de 19 de novembro, de O Globo. Não nos surpreendemos, mas não há como não nos indignarmos. É a voz da ditadura que volta, são os mesmos métodos que voltam, embora, agora, por impossibilidade, a tortura física não possa voltar.

A um jornalismo sério, que tivesse compromisso com a história, a um jornalismo que tivesse alguma ligação, tênue que fosse, com a idéia de democracia, que se preocupasse com a educação das novas gerações, caberia discutir a monstruosidade da tortura, mostrar o que ela tem de lesa-humanidade, mostrar a necessidade de evitar que ela exista, inclusive nas cadeias brasileiras de hoje. Mostrar que qualquer processo que envolva tortura não merece qualquer crédito. Mas, não.

O jornalismo realmente existente vai pinçar aspectos no processo que eventualmente desgastem a presidente da República. Nos próximos dias, a mídia golpista vai se debruçar sobre isso, podem anotar. É a tentativa do terceiro turno, evidência do ressentimento pela terceira derrota – a mídia perdeu em 2002 e 2006, quando Lula venceu, e perdeu agora, com a vitória de Dilma. Não se conforma, A Casa Grande não descansa.

Nem sei, nem vou procurar saber sobre todo o processo que envolveu a presidente. Escrevi vários livros sobre a ditadura, inclusive sobre Carlos Lamarca e Carlos Marighella, que tangenciam organizações revolucionárias pelas quais a presidente Dilma passou – e que orgulho ter militado em organizações revolucionárias. Não me detive, no entanto, na trajetória específica da presidente Dilma Roussef, nem caberia.

Mas será que os jornalistas que têm feito o papel de pescadores de leads e subleads negativos, de títulos desqualificadores da presidente têm alguma noção do que seja a tortura? Imagino que não, até porque só obedecem ordens, a pauta é previamente pensada, ordenada, e depois se faz a matéria.

Repito aqui o que escrevi em um dos meus livros, valendo-me das contribuições do psicanalista Hélio Pellegrino. A tortura nunca é mero procedimento técnico destinado à coleta rápida de informações. É também isso, mas nunca apenas isso. Ela é a expressão tenebrosa da patologia de todo um sistema social e político, expressão da ditadura militar de então. Ela visa à destruição do ser humano.

À custa de um sofrimento corporal inimaginável, teoricamente insuportável, a tortura pretende separar corpo e mente, instalar a guerra entre um e outro, semear a discórdia entre ambos. O corpo torna-se um inimigo – com sua dor, atormenta o torturado, persegue o torturado. A mente vai para um lado, o corpo sofrido para outro. O torturado fica exposto ao sol e à chuva, ao desabrigo absoluto, sem chão, entregue às ansiedades inconscientes mais primitivas. E apesar disso, tantas vezes, tantos de nós, quando não fomos trucidados e mortos na tortura, resistimos a esse terror, e saímos inteiros, ou quase inteiros, dessa situação-limite.

O que vale um processo feito sob a ditadura? O que valem declarações tiradas sob tortura? Responderia que valem apenas para revelar o que foi o terror, para revelar o que fizeram com as vítimas desse terror. Por que nos impressionamos e nos indignamos tanto com as vítimas do nazi-fascismo, inclusive nossa mídia, impressão e indignação justas, e somos, lá eles como costumam dizer os baianos, tão condescendentes com o terror da ditadura, com as torturas dos assassinos do período 1964-1985?

Eu compreendendo por que a mídia age assim com a nossa memória histórica, e já o disse antes: age assim pela simples razão de que ela tem tudo a ver com a gênese da ditadura, porque dela não pode se apartar, lamentavelmente. Por isso, nos preparemos para a luta dos próximos dias: ela vai buscar nos porões da ditadura o que possa servir aos seus propósitos de lutar contra o governo democrático, republicano e popular da presidente Dilma. E nos encontrará onde sempre estivemos: na luta intransigente, isso mesmo, intransigente, a favor da democracia, dos direitos humanos, e contra toda sorte de crimes contra a humanidade.


 
Emiliano José (*)

(Extraído do site www.cartamaior.com ) 
(*) Jornalista, escritor.

CONFUSÕES DA HORA

Mino Carta
Pequena história pessoal para explicar o que significa garantir a verdadeira liberdade de imprensa. Por Mino Carta. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil


Pequena história pessoal para explicar o que significa garantir a verdadeira liberdade de imprensa
No final de 1956 saí do Brasil para ir trabalhar na Itália. No jornal turinês La Gazzetta Del Popolo, e 2 de janeiro de 1957 foi o primeiro dia de serviço. Lá fiquei por um ano e três meses. Foi bom aprendizado, de vários pontos de vista. Por exemplo, entendi como seria possível produzir um jornal de qualidade, bem escrito e bem acabado, com uma redação menor do que a dos brasileiros e resultados melhores. A começar pela escrita, fluente, rica, elegante. Era o tempo de um processo judicial ruidoso, a envolver socialites e políticos influentes, de mais a mais realizado em Veneza, cenário deslumbrante, sem falar da presença no tribunal de juristas de fama mundial, entre eles um certo Carnelutti de quem muito ouvira e estudara na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
A Gazzetta enviou a Veneza quatro jornalistas, dois deles tinham cerca de 30 anos, para cobrir o evento de ângulos diversos. Todos escreviam a bico de pena sem descurar da precisão das informações. Nada de preocupações com leads e pirâmides invertidas, muito menos em empregar algo em torno de cem palavras, se possível curtas. Descobri mais tarde que o chamado new journalism é invenção americana, na Europa foi praticado desde sempre.
Aprendi muito com alguns amigos em um país esperançoso às vésperas daquele que seria chamado o milagre italiano, onde era possível aprovar no Parlamento leis de alto conteúdo democrático. Algumas afirmavam o respeito devido à profissão jornalística. Deitaram raízes e até hoje mantêm a validade. Uma determinava que o patrão não poderia ser diretor de redação e sequer jornalista de carteirinha, como se dá no Brasil.
O dono da Gazzetta era um produtor de biscoitos e guloseimas variadas em Saluzzo, a poucas dezenas de quilômetros de Turim. Lá pelas tantas, seduzido pela política, fora eleito senador pelo Partido Democrata-Cristão, majoritário no Congresso e à testa do governo. Jamais o conheci. Mais, nunca o vi na redação e em qualquer dependência do jornal. Os negócios, contudo, não iam como ele teria desejado, de sorte que, em troca de ajuda financeira aos seus biscoitos, permitiu que a Gazzetta se tornasse órgão para-democrata-cristão.
Interferiu a meu favor, e da minha vontade de passar umas férias no Brasil, outra lei preciosa. Contratado por um jornal que alegava defender certa linha política (a Gazzetta se intitulava como “matutino independente”) em caso de mudança de orientação o profissional estava habilitado a pedir demissão com pleno direito à indenização prevista no seu contrato. Ganhei um dinheirinho não de todo desprezível e passei dois meses aqui na terra.
Conto esse meu passado para explicar por que, na minha opinião, é impossível mudar a história da mídia nativa, francamente medieval, sem leis que, apresentadas e aprovadas no Congresso, protejam o profissional e fixem limites à propriedade concomitante de jornais, revistas, rádios, tevês, portais, sites e o que mais se oferecer à volúpia do poder, total e avassalador. Ou, se preferirem, ao monopólio. Illo tempore, na Itália rádio e tevê eram estatais e, está claro, foi preciso ampliar com o tempo o alcance das leis.
Quanto a nós, precisaríamos contar com um Parlamento diferente daquele que tivemos e, ao que tudo indica, teremos, repleto de deputados e senadores donos de meios de comunicação. Trata-se de uma aberração em um país que pretende ser democrático. Nos últimos dias, fiquei impressionado com cartas e e-mails de leitores que confundem a regulação proposta pelo ministro das Comunicações, Franklin Martins, com supostas limitações impostas à mídia nativa pelo Executivo.
Trata-se, insisto, de questões diversas. A regulação dos meios eletrônicos é aquela solicitada pelo ministro, e é indispensável para adaptar as leis em vigor, anacrônicas, à nova situação. É preciso entender, porém, que o remédio destinado a coibir a prepotência da imprensa golpista tem de ser aviado pelo Legislativo, por meio de leis similares àquelas aprovadas pelo Parlamento italiano nos meus anos verdolengos.

TRANSIÇÃO: DILMA É DILMA

Dilma é Dilma

Os movimentos iniciais da presidente eleita Dilma Rousseff reafirmam a temida visão dos inseguros, homens e mulheres, de que ela é pessoa de personalidade forte. É sim e tem, também, mostrado identidade própria. Por Mauricio Dias. Foto: Roberto Stuckert/ Divulgação


Os movimentos iniciais da presidente eleita Dilma Rousseff reafirmam a temida visão dos inseguros, homens
e mulheres, de que ela é pessoa de personalidade forte. É sim e tem, também, mostrado identidade própria.
Dilma não é Lula. A criatura é diferente do criador. Assim, ela sabe que Lula é um político de carisma e popularidade insuperáveis e, por isso, não buscará esse caminho.
Parte da imprensa não percebeu que ela foi ministra de Lula, foi escolhida candidata por Lula, foi eleita pela popularidade do governo e com apoio do presidente Lula, mas, embora mantenha estreita relação política com Lula,
é, agora, a futura presidente. Dilma tem quebrado padrões de referência na corte brasiliense. Fez isso ao se transferir, discretamente, para a Granja do Torto. E faz isso, ostensivamente, ao evitar a imprensa que, nesta fase, pratica o jogo natural da especulação em torno da composição do ministério. Um campo propício para as intrigas.
É o início da metamorfose necessária e essencial entre o que ela foi e o que ela será: uma mulher na Presidência.

O PROCESSO DA DITADURA CONTRA DILMA ROUSSEFF

Celso Marcondes (*)


“STM libera processo da ditadura contra Dilma”: essa é manchete de capa da edição desta quarta-feira 17 do jornal Folha de S.Paulo. A matéria principal ocupa quase toda a página 4 e na abertura já comemora: “advogada da Folha diz que resultado é vitória ‘de toda a sociedade’ ”.

Essa “vitória” que o jornal encampa em nosso nome começou a ser organizada em setembro deste ano, quando a Folha protocolou mandado de segurança no Superior Tribunal Militar. Na ocasião, ela argumentou que era direito de todos os brasileiros saber o histórico da candidata antes que as urnas presidenciais fossem abertas.

No STM, o julgamento foi suspenso duas vezes, mas a Folha não se fez de
rogada, em 19 de outubro apelou para o Supremo Tribunal Federal, na
esperança de que ele determinasse a abertura dos arquivos antes da
realização do segundo turno. Relatora do caso, a ministra Cármem Lúcia,
devolveu o caso ao STM, que só agora, por 10 votos contra 1, liberou o
acesso do ávido jornal paulistano ao processo.

Na próxima semana será publicada a ata da sessão e a partir daí os
repórteres da Folha poderão se deliciar com a leitura de tudo o que os
ditadores e seus funcionários escreveram sobre nossa presidenta eleita
quando ela tinha cerca de 20 anos.

Até aqui, o que, em síntese, todos sabem, é que Dilma Rousseff combateu a
ditadura militar desde muito jovem. Militou numa organização guerrilheira
chamada Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares, ficou presa por mais de dois anos, foi torturada barbaramente e depois de libertada retomou sua vida no Rio Grande do Sul.

Do meu ponto de vista, é o suficiente, não preciso saber mais. Fico
satisfeito em ter conhecimento que, mesmo usando de métodos que nunca
aprovei, ela teve a coragem de combater os terroristas que tomaram de
assalto o governo e o Estado brasileiro em 1964. Eram eles, como se sabe,
militares, apoiados e sustentados por civis, entre os quais muitos
empresários, inclusive da área de comunicação.

No entanto, para muita gente conhecer este resumo daquela fase da vida de Dilma não bastou. Desde o momento em que ela foi cogitada como candidata do presidente Lula, a internet foi dominada por uma onda de mensagens que questionavam o currículo militante da candidata. Taxada de cara como “terrorista” até uma ficha falsa foi montada, a descrever os atentados, sequestros e assaltos a banco nos quais ela teria se metido.

A mesma Folha, na época, foi o único jornal que embarcou na história da
suposta ficha e a publicou em primeira página, com os devidos comentários
desairosos. Sem ouvir antes a acusada. Revoltada, Dilma reagiu, pediu
direito de resposta, o jornal foi obrigado a lhe dar espaço e a recuar na
denúncia, reconhecendo que não tinha atestado a autenticidade da peça
montada não se sabe aonde, o que se constituiu num dos episódios mais
vergonhosos da história recente do jornal.

Porém, seus proprietários não pararam por aí e durante toda a campanha
eleitoral colocaram jornalistas para investigar este período de sua vida.
Não faltaram entrevistas com ex-companheiros de militância, nem com
ex-militares ou carcereiros que teriam tido contato com Dilma nos anos 70. O que se buscava então era, digamos, algo mais concreto no currículo da
militante: teria participado de algum sequestro ou assalto? Atirado ou
matado alguém? Delatado companheiros? Em nenhum momento, porém, qualquer jornalista, depois de muitas entrevistas e pesquisas em outros arquivos que existem pelo País, conseguiu qualquer prova de participações ou atos da jovem de 20 anos em eventos semelhantes.

O que imaginavam os que pretendiam “conhecer melhor a história” da candidata era que, se acusada concretamente de participação numa ação violenta, haveria material de combustão suficiente para abalar sua campanha eleitoral.

Numa sociedade pronta para ser comovida por campanhas conservadoras
incentivadas por parte da grande mídia, é fácil imaginar a repercussão que
teria uma manchete do tipo “Dilma participou de assalto que ocasionou morte de inocente”.

Esta manchete – ou similares – nunca chegou à televisão ou aos grandes
jornais, embora tenha frequentado à exaustão a internet. Durante a campanha de José Serra, porém, cansamos de assistir a insinuação: “no meu currículo não há manchas, nem zonas obscuras”, ele dizia sempre, a deixar claro que o candidato “do bem” não tinha nada a esconder, mas a “do mal” deveria ter.

Às vésperas da realização do segundo turno, a liminar da Folha de S.Paulo
endereçada ao STF gerou uma onda de rumores nas campanhas. Esperava-se que uma “grande novidade” vinda da abertura do processo causasse comoção suficiente para abalar a trajetória da candidata rumo à vitória nas urnas. A sabedoria da ministra Cármem Lúcia, porém, tirou do Supremo a responsabilidade pela decisão e inviabilizou o final da história antes do pleito.

Dentro de alguns dias o caso terá seu desfecho. Todo o Brasil saberá o que
está escrito na ficha real de Dilma Vana Rousseff guardada no cofre militar
até aqui.

Saberemos finalmente se a presidenta eleita – não diplomada ainda -, no auge dos seus 20 anos, participou ou não de assaltos, sequestros e atentados. Conheceremos também como foi seu comportamento nas masmorras.

Estará tudo lá, escrito, bonitinho, preto no branco, apenas marcado pela
ação do tempo. Com carimbos, assinaturas, rubricas e protocolos. Também
pareceres, fotos, recortes de jornais, talvez. Tudo com as devidas chancelas de Humberto de Alencar Castelo Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel.

Os jornalistas da Folha devorarão avidamente as informações do processo e nos brindarão com um resumo delas. Outros órgãos de imprensa, como já
fizeram no dia de hoje com a decisão do STM, repercutirão tudo.

Aí então, uma parte dos brasileiros dirá: nada me toca, continuo a admirar a coragem que a presidenta tinha aos seus 20 anos. Se ela de fato participou de algum ato violento, seus algozes já a fizeram pagar por isso. Mesmo assim, não reconheço nenhuma credibilidade nos arquivos infectos e nos processos manchados de sangue dos generais que escreveram o pior momento da nossa história. E credibilidade é matéria prima da imprensa.

Porém, haverá quem vá dizer: não avisamos? Vocês elegeram uma terrorista.

O efeito que este debate irá causar ninguém sabe medir. È fato, porém, que a Folha comemora hoje a “vitória de toda a sociedade”. Enquanto ela comemora, muitos arquivos e processos continuam fechados. E torturadores e seus mandantes caminham impunes por nossas ruas. Ou morrem de velhice.

(*) Celso Marcondes é jornalista, editor do site de CartaCapital e diretor de
Planejamento da revista.



Extraído do site www.cartamaior.com.

A TORTURANTE CONSTRUÇÃO DE UMA VERDADE TORTURADA

No último setembro, às vésperas das eleições presidenciais, a Folha de S.Paulo engatinhou até as barras das fardas e togas do Superior Tribunal Militar, sob o intuito de revelar o mistério sangrento que ela julga existir no passado de Dilma Vana Rousseff. A partir da revelação midiática de verdades presentes nos processos militares, a Folha intentava, naquele momento, solapar a candidatura da petista, incrustando definitivamente em Dilma o estigma de terrorista. Nesta quarta-feira, dia 17 de novembro, o jornal em questão anunciou, em matéria de capa, sua aparente vitória: o STM decide pela abertura pública do processo sobre a presidente eleita. Em alguns dias, os meios de comunicação divulgarão seus recortes das informações constantes naqueles documentos empoeirados. O que revelarão? A torturante construção de uma verdade torturada.

Foucault definiu a tortura como um mecanismo de produção de verdades. Nela haveria algo de inquérito, na medida em que através da violência se investiga ou se cria um acontecimento, mas também persistiria algo de duelo, de modo que o torturado digladia com o torturador, resiste à dor, silencia ou rejeita acusações, desafiando a força absoluta que contra ele se impõe. A tortura constrói verdades ao tempo em que o torturado é levado à exaustão da confissão oficialesca ou à incapacidade profunda de afastar de si incriminações ou fatos, ainda que se negue a confessar. O torturador entra no jogo vencendo e sai dele auto-proclamadamente vencedor. O torturado, mesmo resistindo, resta destroçado, julgado e condenado do início ao fim do processo, perdedor.

Parte das verdades que os meios de comunicação pretensamente descortinarão nos próximos dias foram construídas segundo crudelíssimos estratagemas de tortura. Outra parte, se não obtida na atitude imediata da mão torturadora, constitui-se de argumentos criados para respaldar a tortura posterior. Emergirão, assim, das letras de oficiais torturadores e da edição dos meios de comunicação, fatos esculpidos a sangue pelo próprio aparelho repressor. Dilma Rousseff foi torturada durante anos sobre os cadafalsos internos e opacos da ditadura – a qual a Folha designou, noutro momento, como “ditabranda”. Duelou, contundente, com um Regime que a obrigou a mentir para proteger as vidas de novos possíveis torturáveis, como ela própria atestou no memorável discurso de resposta ao senador Agripino Maia (DEM - RN), quem, àquela ocasião, numa reunião de uma comissão parlamentar, levantava suspeitas acerca da honestidade da então ministra. Dilma, contudo, nada guarda de perdedora.

Aqui, acredito, encontram-se vestígios do que movimenta a Folha de S.Paulo e os interesses a ela associados. Porque apesar de matérias de capa e decisões judiciais, alguns setores sociais historicamente vencedores – ou “dominantes”, para utilizar a expressão da melhor tradição marxista – não andam vencendo o bastante neste país. Esses setores se valem da manipulação retórica das bandeiras políticas de movimentos democráticos, como a da abertura dos arquivos da ditadura, convertendo-as em alavancas para o ataque à opção popular. Basta relembrar a oposição desses mesmos setores às propostas do PNDH 3 a esse respeito e o mencionado oportunismo virá, constrangido, à tona. A abertura dos arquivos, afinal, trata-se originariamente de uma investida democrática contra os segredos de déspotas e não de um afã punitivo sobre pessoas que se levantaram contra o autoritarismo, as quais, a despeito de terminologias seletivas e conservadoras, nada têm de “terroristas”.

Militares e militantes, é verdade, estavam em lados opostos de um mesmo conflito. Entre eles, no entanto, faz-se impossível comparar responsabilizações. Não se encontravam numa “guerra justa” – se é que isso já existiu! – porém em meio a um processo categoricamente assimétrico, em que um Estado, aí sim, terrorista, mobilizava suas truculentas estruturas por cima de agrupamentos de homens e mulheres, todos em sua maioria jovens, como era o caso de Dilma Rousseff, contestadores daquela ordem arbitrária. Se alguns desses grupos e pessoas praticaram, como alguns alarmam, assaltos a bancos ou seqüestros – e não se tem, até hoje, comprovação de que Dilma é uma dessas pessoas – e se desses atos resultaram, por exemplo, mortes acidentais, a quem caberia, enfim, a culpabilização? A realidade daqueles anos, torturada tal qual a verdade extorquida e recriada nos porões, muitas vezes exigiu mais daqueles militantes do que é humanamente exigível de qualquer um dos filhos da minha geração estudantil. Seria deles então a culpa? Poderia ser Dilma Rousseff chamada de assassina? Não. Do contrário, estaríamos nós convergindo para mais uma confissão oficialesca, uma verdade dolorosamente produzida, uma ficção estruturada sobre um passado que querem brando e solenemente esquecido.



Roberto Efrem Filho (*)


  (*)Mestre em direito pela UFPE e docente do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB.



(Extraído do site www.cartamaior.com )

16 novembro 2010

Aécio presidente do Senado? Por quê? Tiririca presidente da Câmara?

A escolha dos presidentes da Câmara dos Deputados e Senado Federal, historicamente, tem obedecido ao critério de proporcionalidade das bancadas. Não é um modelo, digamos assim, que se restrinja ao Brasil, mas a vários países do mundo onde não exista o bi-partidarismo. Simples. Com dois partidos o majoritário indica os presidentes das duas casas.

Num modelo partidário como o que temos o que se faz é colocar as bancadas na balança e compor as mesas diretoras de acordo com peso de cada uma, mas sempre através de acordos, nunca de imposições.

Severino Cavalcanti, recentemente, atropelou esse processo e se elegeu presidente da Câmara derrotando o petista Virgílio Guimarães. O próprio Aécio Neves rompeu esse critério contra Inocêncio Oliveira, acordo entre as bancadas e candidato oficial de FHC. Venceu. Mas mesmo assim, diferente de Severino, buscou equilibrar a sua chapa observando o critério da proporcionalidade.

Não há sentido em falar na candidatura do senador eleito Aécio Neves para a presidência do Senado por conta da votação que obteve em seu estado, ou como compensação para o PSDB derrotado nas urnas nas eleições de 2010.

Se for para ser levado em conta o percentual de votação do mais votado para o Senado, ou para a Câmara, Tiririca terá que ser o presidente da Câmara. Aécio no Senado, Tiririca na Câmara.

Tem dois lados essa manobra, ou esse balão de ensaio. O primeiro deles é colocar o senador eleito por Minas na condição de uma das vestais do poder Legislativo, um cargo chave e facilitar a construção efetiva de sua candidatura presidencial em 2014. É não pensar no Brasil e apenas num projeto político pessoal, no máximo de uma ou duas regionais do seu partido.

Outro lado é a tentativa de colocar na presidência do Senado um líder da oposição ao futuro governo Dilma Rousseff e para isso Aécio joga com um fator importante. Dilma vai ter que se desdobrar para montar o Ministério dentro do leque partidário que a elegeu (O PMDB tem um apetite pantagruélico) e segurar os que eventualmente não tenham sido contemplados.

Na prática é a exibição pública da falência do modelo político brasileiro.

Terminada uma eleição já se começa a trabalhar para outra, buscando criar dificuldades para o vencedor.

São os tais patriotas.

PT e PMDB devem decidir junto com os demais partidos da coligação que elegeu Dilma Rousseff os nomes que vão presidir a Câmara e o Senado. O PSDB é oposição, minoria e não creio que neste momento Aécio tenha essa bola toda, mais ou menos a de assumir a posição de condestável da República.

O peso da oposição tanto na Câmara como no Senado servirão para definir eventuais e proporcionais cargos nas respectivas mesas diretoras.

Noutro plano o senador eleito por Minas Gerais mostra-se disposto a enfrentar desde agora o problema Geraldo Alckmin. A seção paulista do PSDB não desistiu de tentar retomar o controle do Brasil e o governador eleito de São Paulo pode vir a ser o nome do esquema Serra/FHC para as eleições de 2014.

Esse é o pulo do gato.

No meio dessa embrulhada toda, que é meramente tucana, a perspectiva é que Aécio saia do PSDB e funde outro partido, seria mais ou menos a trajetória de Collor, que sem respaldo nos grandes partidos fundou o seu PRN – PARTIDO DA RECONSTRUÇÃO NACIONAL – e deu no que deu. A candidatura à presidência do Senado junta tudo isso num balaio só.

A voracidade com que Aécio se atira – sempre através de alguns “amigos” – à busca de posições no centro do palco sugerem que o mineiro esteja mais para qualquer outra coisa que político mineiro. A não ser que tudo não passe de jogo de cena, ou Aécio esteja apenas se colocando dentro do seu partido. Quem sabe avisando a sua saída?

Chegou a dizer isso antes das eleições.

Um professor do ensino fundamental em Minas Gerais recebe pouco mais que 900 reais de salário. O tal choque de gestão de Aécio foi uma extraordinária máquina publicitária em torno da imagem do então governador, neto de Tancredo Neves, nada além. “Aécio é neto e não Tancredo”, a afirmação foi feita várias vezes por FHC.

A saúde em Minas, depois de quase oito anos de atuação do secretário Marcus Pestana (eleito deputado federal na base de ambulâncias) é um setor privatizado em função de empresas de amigos tucanos, muitas das quais onde o próprio ex-secretário se faz representar por laranjas.

Aécio é uma dessas balelas muito bem vendidas por um forte esquema publicitário e não leva em conta que os estragos de oito anos de nada, mas muros pintados como se tudo tivesse sido feito, terão que ser organizados agora por Antônio Anastasia, um sujeito que entre outras coisas foi o responsável pela criação do fator previdenciário, ou seja, aquele que liquidou com as aposentadorias e pensões no Brasil (era assessor de ministério de deputados e senadores no Congresso Nacional Constituinte, o que à época se chamou CENTRÃO).

No caso específico das eleições em Minas a ordem do bom senso era correr do cruz-credo e o cruz-credo tanto era o senador Hélio Costa, como o governador Anastasia. Uma constatação que é possível não existir o menos pior.

E de quebra ainda levaram para o Senado o patético Itamar Franco. Um projeto pessoal e mais nada.

O ex-quase prefeito de Aracaju.

A preocupação de Aécio é também a de sumir na poeira em meio a outros senadores. Deixa de ser o número um de um importante estado da Federação, Minas e virar um entre oitenta e um senadores.

O Senado, com um ou outro momento de exceção, via de regra escândalo, além de ser um clube de amigos e inimigos cordiais é uma igreja com sino de madeira. Bate, bate e não ecoa. Só nos escândalos.

Aécio precisa de eco para sua movimentação.

Sugiro mandar um currículo para a GLOBO e candidatar-se ao BBB-11, ou tentar uma telenovela da mesma rede.

Ou quem sabe tomar posse com a clássica melancia pendurada no pescoço.

São alternativas para manter-se na ordem do dia, ecoar em todo o Brasil e tentar manter-se vivo tanto dentro do PSDB, como no cenário geral da política.

Essa gente não absorve derrota, não tem características democráticas, são filhos de elites políticas que dominam o Brasil desde Cabral, só pensam em eleições e conquistas de poder, nada além.

Se a coisa aperta, têm sempre pronta uma frase de efeito, uma aparente saída digna.

Mas o professor mineiro continua ganhando salário de fome no milagre que chamam de “choque de gestão”.

Anos atrás havia a mania de faquires. Um brasileiro de nome Silki, se exibia em várias cidades do País e chegou a bater o recorde de dias em jejum, recorde mundial. É uma alternativa, quem sabe?

Pode entrar para ao OPUS DEI também. A turma está louca para tomar o poder no Brasil e reviver a Idade Média. É opção...

Laerte Braga (Jornalista e Analista Político)


(Extraído do site www.cartamaior.com ).

CRIME, CASTIGO E MÍDIAS

Luís Carlos Lopes (*)


O drama da violência urbana continua pairando sobre as cabeças do Brasil, como algo compreendido de modo torto. Nas grandes mídias, predomina a espetacularização. Esta consiste em descrever, narrar e ‘mostrar’ os fatos sem qualquer compromisso maior com suas veracidades e sem um apetite analítico profundo apreciável. Há uma forma – um modo de divulgar – que é seguida melancolicamente.

As notícias, os comentários e as imagens divulgadas constroem versões que pretendem convencer a todos que nada mais deve ser dito. As grandes mídias se postam como oniscientes e onipresentes. Elas seriam capazes de saber exatamente o que ocorreu, para além da necessidade do exame político, social e jurídico que, em alguns casos, continua após a difusão.

As mídias escolhem – pautam – o que deve ser noticiado e comentado, insistem em alguns casos e abandonam outros. Suas versões, isto é, representações, seriam pretensamente as únicas confiáveis. O crime de grande impacto social é divulgado ad nausea. Aproveita-se da comoção social e as manifestações populares são estimuladas e incorporadas ao processo de espetacularização.

No passo seguinte, as notícias vão rareando, os comentários se esvanecendo até serem sepultados. É verdade que esses podem voltar, se isto for necessário à lógica mercantil que preside o jornalismo. Isto se processa em suas imensas variações comunicacionais, proporcionadas pelo rádio, pela TV e pela imprensa escrita. Na Internet, ressoam ecos disto tudo e se podem encontrar notícias, comentários e análises que tentam ir além das superfícies.

A criminalidade e a ação policial são acompanhadas cotidianamente pelas audiências. O espetáculo da violência atrai o grande público e é explorado comercialmente por vários meios de comunicação, inclusive pelo cinema brasileiro. O cinema norte-americano criou uma matriz produtiva com inúmeros filmes e séries para TV que tratam do mesmo assunto. A indústria cultural de lá e, recentemente, a de cá, viram neste filão um meio de faturar audiências e bilheterias, ganhando somas fabulosas com o fenômeno da violência urbana.

O que a ação criminosa fatura é muito pouco comparável com os lucros estupendos auferidos pela difusão jornalística e ficcional. A diferença é que esta última ganha muito sem fazer jorrar uma gota de sangue real. A primeira, além de implicar em gastos estatais altíssimos para sua repressão, consiste em uma atividade humana das mais perigosas que ceifa vidas dos três lados do confronto. São vitimados lumpens, população civil e membros das forças repressivas.

Há quem compare isto a uma guerra, ou mesmo a uma guerra civil. Todavia, pelo menos no Brasil e nos EUA, não é exatamente isto o que ocorre. As guerras nacionais e civis têm bandeiras, interesses territoriais e seguem a lógica da violência entre populações e exércitos mobilizados para tal. O se tem no Brasil são operações sem maior sincronia, com casos contrários excepcionais, envolvendo os foras-da-lei e as forças policiais. Pequenos grupos enfrentam milhares de agentes das forças oficiais.

Nos EUA, ocorre algo similar. Mas, o policiamento ostensivo e menos corrupto de lá garante uma maior proteção dos populares. Os norte-americanos, tributários do puritanismo, vêem o crime como um pecado que precisa de punição exemplar. Acreditam no seu sistema judicial que é bastante duro, principalmente com os mais pobres. Nenhum país do mundo atual ostenta a incrível cifra de mais de dois milhões de prisioneiros sentenciados, muitos com penas altíssimas, alguns com a pena de morte.

No Brasil, a retórica da ressocialização entende o criminoso como alguém que pode ser recuperado, pelo menos em teoria. Isto se traduz em penas mais brandas e o no paradoxo de prisões imundas, próximas do que se pode chamar de inferno. Este é vivido por cerca de quatrocentos mil detentos.

O conceito da bala perdida, das execuções extrajudiciais e de inúmeros erros estratégicos das polícias e da justiça são bem mais respaldados na realidade brasileira. Estes fatos também estão presentes no gigante do norte, em outra escala e com outras conseqüências. Existem inúmeras diferenças e semelhanças de situação entre ambos países. Estas escapam ao objetivo deste pequeno artigo. Nos dois casos, a violência e sua repressão são maiores em determinadas zonas de concentração urbana.

No Brasil, os civis são vitimados fortemente por serem os mais fáceis alvos do crime. Eles são corriqueiramente atingidos nos confrontos entre os grupos armados. Dentre os civis, os mais pobres são estatisticamente os mais afetados. É possível viver décadas em uma grande cidade do Brasil sem jamais ser assaltado ou presenciar um tiroteio. Isto dependerá de onde se mora e de que lugares se freqüenta. Nas regiões mais pobres da cidade e em suas periferias, a violência torna quase impossível viver sem estar próximo de algum ato de barbárie. Ela chega, obviamente, às regiões mais ricas, onde há maior estardalhaço, quando tal acontece. Nos bairros pobres, o estupro, o furto, o assalto à mão armada e o assassinato entraram na normalidade social, tal é sua repetição.

As mídias brasileiras em suas peças destinadas ao grande público tratam do problema da violência urbana de modo bastante irresponsável. Não raro usam de palavras chulas e preconceituosas para se referir à complexa relação entre as polícias e os criminosos. Estes são chamados de ‘vagabundos’, como houvesse trabalho para todo mundo. Quando há tortura, se cunha a expressão ‘esculachar’, para se referir a esta ignomiosa prática. Copiam-se as gírias dos envolvidos. O assassinato puro e simples é chamado de ato de resistência ou de oportunidade e por aí em diante. O ainda mais grave é a demonização de quem invoca os direitos humanos. Estes são denominados como protetores dos criminosos, ironizados e vistos com imensa desconfiança.

O fascismo deste modo de ver o problema é escamoteado das mais diversas maneiras. Diz-se que há uma guerra civil e que cada um deve escolher o seu lado. O consumidor de drogas é visto, não como um doente, e sim como alguém que seria o verdadeiro responsável pelo tráfico. O criminoso, como quem estaria melhor se estivesse morto, justificando-se as inúmeras execuções extrajudiciais. A tal guerra de que falam seria a dos ‘cidadãos de bem’ contra os criminosos e qualquer expediente seria a princípio válido, incluindo-se os possíveis e corriqueiros efeitos colaterais. Defendem que o medo deveria se incutido de modo radical, esquecendo que isto é feito no Brasil desde a época da escravidão e que jamais funcionou. Seus partidários mais radicais não discutem com ninguém estas idéias, simplesmente as impõem com a ajuda das mídias e com apoio de forças políticas importantes.

O ainda mais grave é o desaparecimento da questão social e política. No Brasil, se está apreendendo rápido a lógica norte-americana do crime como fruto do livre-arbítrio bíblico. O criminoso ‘escolheria’ entre o mal e o bem e seria o único responsável por estas escolhas. As suas condições de vida desde do nascimento nada teriam a ver com seus atos. As políticas sociais de Estado em nada influenciariam suas decisões. As pressões midiáticas e publicitárias para que todos comprem de tudo não seriam responsáveis pelos seus atos. O indivíduo, visto como alguém isolado, é que escolheria livremente seu percurso na vida. Esta lenda fortemente defendida nas mídias degenera em efeitos catastróficos.

Os que defendem essas idéias ‘esquecem’ que as taxas de delinqüência são bem menores em países onde a renda nacional é mais dividida. O combate ao desemprego, o acesso à educação e aos bens culturais têm um papel muito significativo na luta contra a barbárie. Uma justiça que se importe com os problemas sociais, seja praticada de modo mais justo e possua o seu controle feito de fora do seu aparato seria de bom alvitre. Governos empenhados em melhorar o nível de vida da população ajudariam bastante.

Por fim, os inimigos de qualquer modernização no tratamento do problema da violência urbana fingem não saber que quando se fala em direitos humanos não se está defendendo criminosos, ao contrário. Estes direitos seriam para todos, incluindo os policiais que também são vítimas de políticas públicas equivocadas. As vítimas, que seriam mais respeitadas e protegidas. Seriam criados direitos de cidadania, no lugar de privilégios de classe, tão comuns no Brasil.

A defesa dos direitos humanos implica prender criminosos de qualquer origem social ou cor com base em uma legislação e uma estrutura prisional que os respeite como pessoas, sem deixar de puni-los exemplarmente por seus crimes. Significa melhorar a distribuição de renda para combater o crime na sua origem. Tem o fito de terminar de uma vez por todas com a tortura e com as execuções extrajudiciais que deveriam ser motivos de vergonha para um país que já está entre as dez nações mais ricas da face da Terra.

(*)Luís Carlos Lopes é professor e escritor.

A HISTÓRIA DA AUSTERIDADE

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (*)



A recente reunião do G-20 em Seul foi um fracasso total. Chegou a ser constrangedora a perda de credibilidade dos EUA, como suposta economia mais poderosa do mundo, e o modo como tentaram acusar a China de comportamentos monetários afinal tão protecionistas quanto os dos EUA. A reunião mostrou que a “ordem” econômico-financeira, criada no final da Segunda Guerra Mundial e já fortemente abalada depois da década de 1970, está a colapsar, sendo de prever a emergência de conflitos comerciais e monetários graves. Mas curiosamente estas divergências não têm eco na opinião pública mundial e, pelo contrário, um pouco por toda a parte os cidadãos vão sendo bombardeados pelas mesmas ideias de crise, de tempo de austeridade, de sacrificos repartidos. Há que analisar o que se esconde por detrás deste unanimismo.

Quem tomar por realidade o que lhe é servido como tal pelos discursos das agências financeiras internacionais e da grande maioria dos Governos nacionais nas diferentes regiões do mundo tenderá a ter sobre a crise econômica e financeira e sobre o modo como ela se repercute na sua vida as seguintes ideias: todos somos culpados da crise porque todos, cidadãos, empresas e Estado, vivemos acima das nossas posses e endividamo-nos em excesso; as dívidas têm de ser pagas e o Estado deve dar o exemplo; como subir os impostos agravaria a crise, a única solução será cortar as despesas do Estado reduzindo os serviços públicos, despedindo funcionários, reduzindo os seus salários e eliminando prestações sociais; estamos num periodo de austeridade que chega a todos e para a enfrentar temos que aguentar o sabor amargo de uma festa em que nos arruinamos e agora acabou; as diferenças ideológicas já não contam, o que conta é o imperativo de salvação nacional, e os políticos e as políticas têm de se juntar num largo consenso, bem no centro do espectro político.

Esta “realidade” é tão evidente que constitui um novo senso comum. E, no entanto, ela só é real na medida em que encobre bem outra realidade de que o cidadão comum tem, quando muito, uma ideia difusa e que reprime para não ser chamado ignorante, pouco patriótico ou mesmo louco. Essa outra realidade diz-nos o seguinte. A crise foi provocada por um sistema financeiro empolado, desregulado, chocantemente lucrativo e tão poderoso que, no momento em que explodiu e provocou um imenso buraco financeiro na economia mundial, conseguiu convencer os Estados (e, portanto, os cidadãos) a salvá-lo da bancarrota e a encher-lhe os cofres sem lhes pedir contas. Com isto, os Estados, já endividados, endividaram-se mais, tiveram de recorrer ao sistema financeiro que tinham acabado de resgatar e este, porque as regras de jogo não foram entretanto alteradas, decidiu que só emprestaria dinheiro nas condições que lhe garantissem lucros fabulosos até à próxima explosão. A preocupação com as dívidas é importante mas, se todos devem (famílias, empresas e Estado) e ninguém pode gastar, quem vai produzir, criar emprego e devolver a esperança às famílias?

Neste cenário, o futuro inevitável é a recessão, o aumento do desemprego e a miséria de quase todos. A história dos anos de 1930 diz-nos que a única solução é o Estado investir, criar emprego, tributar os super-ricos, regular o sistema financeiro. E quem fala de Estado, fala de conjuntos de Estados, como a União Europeia e o Mercosul. Só assim a austeridade será para todos e não apenas para as classes trabalhadoras e médias que mais dependem dos serviços do Estado.

Porque é que esta solução não parece hoje possível? Por uma decisão política dos que controlam o sistema financeiro e, indiretamente, os Estados. Consiste em enfraquecer ainda mais o Estado, liquidar o Estado de bem-estar onde ele ainda existe, debilitar o movimento operário ao ponto de os trabalhadores terem de aceitar trabalho nas condições e com a remuneração unilateralmente impostas pelos patrões. Como o Estado tende a ser um empregador menos autônomo e como as prestações sociais (saúde, educação, pensões, previdencia social) são feitas através de serviços públicos, o ataque deve ser centrado na função pública e nos que mais dependem dos serviços públicos. Para os que neste momento controlam o sistema financeiro é prioritário que os trabalhadores deixem de exigir uma parcela decente do rendimento nacional, e para isso é necessário eliminar todos os direitos que conquistaram depois da Segunda Guerra Mundial. O objetivo é voltar à política de classe pura e dura, ou seja, ao século XIX.

A política de classe conduz inevitávelmente à confrontação social e à violência. Como mostram bem a recentes eleições nos EUA, a crise econômica, em vez de impelir as divergências ideológicas a dissolverem-se no centro político, agrava-as e empurra-as para os extremos. Os políticos centristas (em que se incluem os políticos que se inspiraram na social democracia europeia) seriam prudentes se pensassem que na vigência do modelo que agora domina não há lugar para eles. Ao abraçarem o modelo estão a cometer suicídio. Temos de nos preparar para uma profunda reconstituição das forças políticas, para a reinvenção da mobilização social da resistência e da proposição de alternativas e, em última instância, para a reforma política e para a refundação democrática do Estado.

(*) Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

O BRASIL E OS PACTOS DAS ELITES

Colônia, Monarquia, República: pactos de elite na história brasileira

Tivemos a proclamação da República mais de seis décadas depois da independência, porque esta nos levou de Colônia à Monarquia pelas mãos do monarca português, que ainda nos ofendeu, com as palavras – que repetíamos burocraticamente na escola- “antes que algum aventureiro o faça”. Aventureiros éramos nós, algum outro Tiradentes, ou algum Bolívar, Artigas, Sucre, San Martin O´Higgins, que lideraram revoluções de independência nos seus países, expulsando os colonizadores em processos articulados dos países da região.

Foi o primeiro pacto de elite da nossa história, em que as elites mudam a forma da dominação, para imprimir continuidade a ela, sob outra forma política. Neste caso, impôs-se a monarquia. Tivemos dois monarcas descendentes da família imperial portuguesa, ao invés da República, construindo estados nacionais independentes, expulsando os colonizadores ao invés do “jeitinho” da conciliação.

Como sempre acontece com os pactos de elite, o povo é quem paga o seu preço. Enquanto nos outros países do continente, as guerras de independência terminaram imediatamente com a escravidão, esta se prolongou no Brasil, fazendo com que fossemos o último país a terminar com ela, prolongando-a por várias décadas mais. Nesse intervalo de tempo foi proclamada a Lei de Terras, de 1850, que legalizou – mediante a grilagem, aquela falcatrua em que o documento forjado é deixado na gaveta e o cocô do grilo faz parecer um documento antigo – todas as terras nas mãos dos latifundiários. Assim, quando finalmente terminou a escravidão, não havia terras para os escravos, que se tornaram livres, mas pobres, submetidos à exploração dos donos fajutos das terras.

Dessa forma, a questão colonial se articulou com a questão racial e com a questão agrária. Esse pacto de elite responde pelo prolongado poder do latifúndio e pela discriminação contra a primeira geração de trabalhadores no Brasil, os negros que, trazidos à força da África vieram para produzir riquezas para a nobreza européia como classe inferior. Desqualificava-se ao mesmo tempo o negro e o trabalho.

A República foi proclamada como um golpe militar, que a população assistiu “bestializada”, segundo um cronista da época, sem entender do que se tratava – o segundo grande pacto de elite, que marginalizou o povo das grandes transformações históricas.


EMIR SADER


(Transcrito do Blog do Emir)